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Territórios coletivos e ancestralidade: a luta das mulheres quilombolas

Territórios coletivos e : a luta das mulheres quilombolas

por Selma dos Santos Dealdina
 
Nós, povo negro quilombola, lutamos há séculos contra o racismo que dificulta e, muitas vezes, impede o pleno desenvolvimento de nossos quilombos. Por muitos anos nossa luta não contou com apoio do Estado brasileiro, pois este era quem respaldava e legalizava a exploração monstruosa de nossos corpos e de nosso trabalho, por meio da nefasta escravidão. Nós lutamos e conquistamos a tal há 131 anos, mas ainda temos um longo caminho de lutas para que nosso povo possa viver em paz e com dignidade.

As lutas das mulheres quilombolas entrelaçam as lutas de resistência dos quilombos no Brasil. Historicamente seguimos os passos que vêm de longe com Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela, Maria Aranha, Zacimba Gaba e tantas outras mulheres importantes para a continuidade da luta nos dias atuais. E espelhando nessas mulheres e em tantas outras anônimas do país, que nós, mulheres quilombolas, lutamos contra a invisibilidade da nossa luta contra o racismo, machismo e contra todo tipo de discriminação e violência desta sociedade injusta, racista e desigual. Muitas mulheres quilombolas ocupam os cargos de presidentes das associações, federações e de liderança no quilombo.

Neste contexto, é importante destacar que desde a época em que nossas e nossos antepassados foram escravizadas e escravizados até os dias atuais, as mulheres quilombolas tiveram e têm um papel de extrema importância nas lutas de resistência, manutenção e regularização dos territórios.

Estejam no quilombo ou na cidade, estas mulheres têm sido as guardiãs das tradições da cultural afro-brasileira, além de cuidar da casa, das e dos filhos, das e dos idosos, doentes, da roça, dos animais e da preservação dos recursos naturais. Foram e continuam fundamentais na luta dos quilombos pelos seus direitos. Atualmente, muitas mulheres quilombolas enfrentam a fúria de fazendeiros, grileiros, por muitas vezes pagando com a própria vida a defesa de seus territórios. Também assistem a morte de suas e seus filhos no conflito agrário, na longa e sangrenta luta pela terra.

Políticas públicas

A participação das mulheres quilombolas em espaços de definição de políticas tem garantido a proposição de políticas públicas que levem em conta o recorte de gênero, racial e geracional, uma vez que exercem o papel ativo na sociedade, levam suas demandas e denunciam o racismo institucional, a invisibilidade, a violência doméstica, sexual e psicológica e a do estado nas suas comunidades.

Se essa realidade mudou? Não, não do jeito que merecemos o tratamento do Estado brasileiro, que segundo a Constituição teria que nos proteger, mas ele e é nosso maior violador, numa estrutura racista em suas mais perversas faces. Contudo, lutamos e resistimos, somos mais de 6 mil quilombos no Brasil nos Estados: Alagoas, Amapá, , Bahia, Ceará, Espírito Santo, , Maranhão, , Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Piauí, Paraíba, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Sergipe, Santa Catarina, e Tocantins.

Um Brasil negro rural que se destaca num processo coletivo, de partilha e ancestral. Referência de luta resiliência, nestes espaços sagrados que cultuamos a nossa ancestralidade, nosso modo de viver, preservando as matas e florestas, os rios, mares, não contaminando a terra que nos alimenta e nos mantém de pé, diante de tantos retrocessos, retiradas de direitos e assistimos sem acreditar rasgarem a Constituição Federal à luz do dia.

Esquecidas pelo Estado brasileiro e apenas com a Constituição de 1988 é que tiveram seus direitos reconhecidos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) 68. Ora, apenas quem nunca conheceu um quilombo ou que, apenas veja as terras do Brasil sob o olhar do mercado, é que não reconheceram a legitimidade desse direito.

Desde a formação do Quilombo de Palmares na Serra da Barriga em Alagoas, Quilombo de Quarterê onde hoje é a cidade de Cuiabá em Mato Grosso, Quilombo de Urubu na Bahia, Quilombo de Mola em Tocantins, até os dias atuais Territórios Alcântara no Maranhão, Kalunga em Goiás, passando pelos quilombos Rio dos Macacos na Bahia, Marambaia no Rio de Janeiro, Vale do Ribeira em São Paulo, Jalapão em Tocantins as lutas se somam, pois todas querem permanecer em seus respectivos territórios que vivem em constantes ameaças, assassinatos de lideranças e uma que pesa a mão ao decidir despejar dezenas de famílias de um território que legitimamente por nós está ocupado.

Resistências

Os quilombos foram uma forma de resistência ao sangrento processo de 350 anos de escravização de negras e negros no Brasil que, retirados de suas terras na África, foram trazidos à força para essas terras. Esses grupos mantiveram-se em seus territórios, produzindo e desenvolvendo modos de criar, fazer e viver.

A organicidade dos quilombos na atualidade se destaca pela proposta de agregar para além das e dos negros que romperam o processo da escravização, nossos ancestrais que orgulhosamente seguimos seus ensinamentos, num território ancestral que nos ensina a coletividade, partilha, reflexões tão importantes dos dias atuais, só quem pisou descalço num território sagrado sabe a entrega e a vida que pulsa nas batidas do coração e no sangue pulsando, entenderá do que estou falando.

Palmares foi o primeiro plano e ou projeto de uma auto titulação e reforma agrária bem sucedida a fim de que todas vivessem dividindo o pouco que tinham e as produções fartas que garantia o sustento do quilombo. Após as longas travessias aquelas e aqueles que resistiram, corpos violados e violentados pelos castigos nas senzalas, encontravam a paz de espírito, a cura da alma, entre as e os seus. Um alento para quem não tinha o direito de decidir sobre seu próprio corpo.

Infelizmente o racismo colonialista forjado em mais de 350 anos de escravidão ainda domina o Estado e impregna a mente e as ações das elites políticas e econômicas desse país. Mas quem rompeu os grilhões da escravidão com a força de seu povo não deixará de lutar, mesmo quando as condições de mostrarem adversas. A história de luta de Acotirene, Dandara, Zumbi dos Palmares e de Negra Anastácia, entre tantas outras lutadoras e lutadores, é a força e a inspiração que nos leva à labuta diária.

Estamos assegurados pela Constituição Federal e conforme Art. 68 do ADCT “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Portanto, nós não somos invasoras de terras, e sim verdadeiras donas do território onde vivemos.

Autodeterminação

Tivemos uma importante vitória no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 3239, que discutia a constitucionalidade do Decreto Federal n° 4887/0. A decisão representa uma importante garantia institucional para os territórios quilombolas, tanto os já titulados quanto os reivindicados pelos quilombolas, haja vista contemplar o critério da autoatribuição para identificação enquanto quilombo, bem como não impor qualquer tipo de restrição temporal à reivindicação de qualquer território quilombola.

A ADI foi julgado improcedente, decidindo o Supremo Tribunal Federal (STF) pela constitucionalidade do Decreto Federal n° 4887/03, sem quaisquer alterações. Esta decisão cristaliza institucionalmente a conquista obtida pelos quilombolas no que concerne à garantia de seus territórios, em que pese todo o cenário de desmantelamento do Incra, mas não tem como consequência imediata a titulação dos territórios que aguardam há anos pela conquista definitiva.

“Se hoje existem territórios quilombolas é por que em um momento histórico dado um grupo se posicionou aproveitando uma correlação de forças políticas favoráveis e institui um direito que fez multiplicar os sujeitos sociais e as disputas territoriais, e a CONAQ participou ativamente de todas as lutas e conquistas ainda que tímidas para a melhoria da vida dos quilombolas. 

As comunidades quilombolas ao se organizarem pelo direito aos territórios ancestrais, elas não estão apenas lutando por demarcação de terras, as quais elas têm absoluto direito, mas, sobretudo elas estão fazendo valer seus direitos a um modo de vida. 

O movimento de luta pela garantia dos direitos quilombolas é histórico e político. Traz em seu íntimo uma dimensão secular de resistência, na qual homens e mulheres negros buscavam o quilombo como possibilidade de se manterem física, social e culturalmente, em contraponto à lógica colonial e pós-colonial.  

As comunidades quilombolas (negras) no Brasil enfrentam diversos obstáculos na garantia de direitos aos seus territórios ancestrais e neste contexto de lutas identidades político/culturais são criadas, recriadas ou inventadas. 

É necessário então entender a constituição da identidade quilombola face à necessidade de luta pela manutenção ou reconquista de um território material e simbólico, pois o processo de territorialização pressupõe a tensão nas relações estabelecidas.”   (SOUZA 2016) 1

É evidente que o Estado brasileiro tem deixado de praticar ato vinculado (expedição de decretos de desapropriação) por interesses que não são os dos quilombos e que atentam diretamente contra a Constituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e o Pacto de São José da Costa Rica. A seletividade do Estado brasileiro mais uma vez prejudica os quilombos, em franca violação ao direito à duração razoável do processo, pois sem a expedição de decretos de desapropriação os andamentos dos procedimentos administrativos ficam totalmente paralisados.

Neste momento, em que tudo está sem caminho certo por conta da , os corpos negros ainda precisam suportar mais essa mazela, criminalização e morte. As coisas não pioraram com o vírus, elas sempre foram ruins para o povo negro, nos quilombos a já é precária. Não podemos exigir que as pessoas lavem as mãos quando as torneiras estão secas ou os córregos estão secos pelo desenvolvimento desordenado, em nome de um progresso que é racista e excludente. Esse vírus revela ainda mais as facetas do racismo que perpetua para que essa sociedade machista, racista e genocida, mantivessem seus privilégios.

Justiça

Seguimos nesta luta solitária, dura, árdua e embrutecedora, mas tentamos manter a ternura nas trocas de experiências, nas histórias de superação, recarregando as energias para continuar escrevendo o destino nas páginas da história apagadas pelo racismo. Nós temos a voz e nós vamos falar: estamos na labuta por igualdade e justiça.

Em nome de tantas mulheres quilombolas que se encontram privadas de sua liberdade ou ameaçadas de morte; por todas que tombaram na luta, que tiveram seu sangue derramado pelo conflito agrário e pela violência doméstica; em nome de cada menina que nasce; em nome de cada mulher que assume o papel transformador na sociedade que não está preparada para nós, existimos porque resistimos.

No que parece o fim do túnel, eis que surge a solidariedade, e não posso deixar de citar a solidariedade que a Conaq vem recebendo nesses dias tão difíceis, vai desde assessoria jurídica com dezenas de entidades que compõe o Coletivo Jurídico da Conaq ‘Joãozinho de Mangal’, passando pelo Coletivo de comunicação da Conaq com apoio de várias entidades da comunicação, apoio com alimentos e avakinha virtual da Uneafro Brasil, que gentilmente incluiu a Conaq na campanha que pretende levar comida a quem tem fome, medo, sede e que está morrendo. Na esperança que tudo passe, que a responsabilidade seja norte para aqueles que tem o poder da caneta, porque precisamos afirmar que Vidas quilombolas importam

Selma dos Santos Dealdina é do Quilombo Angelim III – Território quilombola do Sapê do Norte em São Mateus/ES), assistente social, bolsista do ProUni pela Faculdade Anhanguera – Vitória no estado do ES, graduanda em História. Secretária Executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – (Conaq), Assessoria da Coordenação Estadual das Comunidades quilombolas do Espírito Santo ‘Zacimba Gaba’; Coletivo de Mulheres da Conaq e da Via Campesina, Conselheira da Anistia Internacional, Conselheira do Fundo Socioambiental Casa, Membro do Instituto ELIMU Professor Cleber Maciel, do Núcleo da Marcha das Mulheres Negras do ES, da Comissão Espírito Santense de Folclore e Coalizão Negra por Direitos.

1 SOUZA, Bárbara Oliveira (2016) livro: Aquilombar-se panorama sobre o movimento quilombola brasileiro.

Fonte: diplomatique.org.br

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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