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Thiago de Mello: Partiu para a ancestralidade o poeta da Floresta

Thiago de Mello: Partiu para a ancestralidade o poeta da Floresta

Por Zezé Weiss

Thiago de Mello, poeta maior do Brasil e da Amazônia, partiu para a ancestralidade na  manhã desta sexta-feira, 14 de janeiro. Aos 95 anos, Thiago voou de Manaus, capital do seu amado estado do Amazonas, coração da sua “Amazônia, pátria das águas”, para virar pó de estrela nos mistérios do infinito.  

Devo muito ao Thiago. Aprendi, com ele, o sentido do esperançar, desde os versos de “Madrugada Camponesa”, poema que fez como forma da resistência à ditadura. “Faz escuro, mas eu canto” é uma espécie de mantra que me acompanha nos momentos difíceis da minha própria existência e da conjuntura política que insiste em golpear os sonhos de liberdade pelos quais Thiago sempre esperançou e lutou. 

Generoso, a meu pedido escreveu o poema “O Sonho que Cresce no Chão da Floresta”,  para o livro “Vozes da Floresta”, produzido por nós da Xapuri e lançado nos 20 anos do assassinato de Chico Mendes.  Thiago me entregou o poema em uma daquelas  tardes úmidas e quentes de Manaus, com uma única exigência: ‘Eu quero ir para o lançamento do livro”. Em dezembro de 2008, a convite do governador Binho Marques, Thiago chegou ao Acre para o lançamento do Vozes.

O plano era fazer uma homenagem a ele na capital e depois seguirmos juntos para Xapuri, onde receberia novo carinho do povo acreano. Infelizmente, Thiago não pôde estar conosco em nenhuma das celebrações. Enfermo, teve que ser hospitalizado. Binho, Julia Feitoza e eu estivemos por perto o tempo todo, até passar o risco de morte e ele embarcar de volta para Manaus. 

Durante o lançamento em Rio Branco, crianças acreanas das escolas públicas leram o poema em forma de jogral. No dia seguinte, pela manhã, Júlia e eu levamos ao hospital as fotos e a gravação do áudio (que deve estar perdido em algum arquivo do governo do estado do Acre). Thiago, que dias antes havia bronqueado comigo pelo formato do livro (“grande demais!”) me olhou sério e disse: “Este livro é um grande acerto, é 100% Chico Mendes, você não pense em mexer em nada nele, nem uma linha!”,  e mudou de assunto. 

Em singela homenagem para este gigante que passou por nossas vidas, segue o poema-homenagem  “O Sonho que Cresce no Chão da Floresta”, o belíssimo hino que Thiago fez para o amigo Chico Mendes. 

O SONHO QUE CRESCE NO CHÃO DA FLORESTA

Thiago de Mello

Não frequentas mais,

de corpo comovido,

os espaços do mundo.

A medida do tempo não te alcança.

Já ganhaste a dimensão do sonho,

és luzeiro da esperança.

 

Trinta anos são só um sinal

Que a memória nos serve

para dizer que te amamos,

Irmão dos mananciais.

 

Chegado foste ao mundo,

De coração já acreano

— a fronte estrelada,

O peito caudaloso –,

para que te cumprisses

na construção do triunfo

do que no homem é grandeza,

é orvalho e lúcida bondade.

 

Atendias e atendes altivos chamados:

a floresta e os seus povos

e, deixa que eu te diga,

o povo geral do mundo,

precisava e precisam

constantes da esperança

com que semeavas e semeias

o poder da descoberta

de que o amor é possível.

 

Os inimigos da vida,

com medo da aurora,

ceifaram ferozes

o teu caminho escrito

por indeléveis letras.

Só porque tiveste

O dom de sonhar,

Como convém e é bom,

com os pés fincados

na verde verdade do chão

de cada dia.

 

Doidos por te dar sumiço

cuidavam que podiam

amordaçar a fé

no reinado da justiça

e converter em moeda

o esplendor da primavera.

 

Nem pressentir podiam

que és da estirpe de seres

destinados a durar

No caminho dos homens.

Agora inabalável,

Prescindes do corpo

Para prosseguir plantando

e repartindo sementes.

Perduras e és conosco.

Nos levas, te levamos.

Eis que a vida do homem

é o que ele faz e fala,

escreve e canta: Vives:

dás fundamento ao por vir.

 

A tua própria morte

nos alcança a fundura

mais azul do peito

com um brado companheiro,

que nos chama, nos clama,

é chama que nos chama

para amassar o barro,

preparar a pizzarra

aparelhar os esteios

de massaranduba,

Itaúba, pau d´arco

e, pacientes, construir

as esplêndidas cidades.

 

Com a mão da sagrada ira

escreves os algarismos sinistros

dos hectares de esmeraldas

devorados pela hedionda lâmina

de gás, fogo e ingratidão.

E logo nos atravessas

a espessura das cinzas

desviando os apelos

das veredas injustas.

 

Por isso te canto, irmão.

Tu nos fazes capazes

(o ferrão da fera dói)

de cuidar do chão e do céu

deste reino da claridão

nosso berço e morada,

que nela e dela vivemos.

 

Avançamos pelas sendas

que ajudaste a abrir

e para que não nos percamos,

cuidadosos dos atalhos,

deixaste os candeeiros

da perseverança acesos

nos troncos das seringueiras,

nas sacopemas das sumaumeiras,

nas palmas das inajazeiras,

nas folhas das imbaúbas

que guardam o segredo do sol

e até nas favas morenas

da acapurana menina

tua companheira de empate.

 

É preciso dizer que às vezes

nos morde a sombra do desânimo

e nos estremece a fúria

dos terçados da opulência

que não dorme e é cheia de olhos.

É quando os pássaros da floresta

nos acodem confiantes

(as corujas prolongam

as suas despedidas das estrelas)

cantando as sílabas alegres

do teu nome de menino.

 

Vêm no meu canto o rumor

dos remos dos pescadores

a alegria da palmeira

abraçada pelo vento;

o papagaio banda-de-asa

dos meninos da várzea,

barrigudinhos, magrelos,

mas que já estão na escola

(às vezes dormem com fome,

Viva o chibé de erva-cidreira).

 

Trago o grito ensandecido

dos pássaros de asas queimadas

pelas brasas dos desumanos;

o suor contente das quebradeiras de coco,

das fazedoras de farinha d´água

das amassadoras de açaí.

 

E termino este aceno de mão agradecida

com o abraço das crianças amazônicas

que ainda vão nascer, abençoadas

pelo majestoso arco-íris de amor.

pelo majestoso arco-íris do amor

que se segue, úmido de seiva,

das terras firmes do alto-Xapuri

com as cores de todas as raçaas humanas.

Thiago de Mello – Poeta maior do Brasil e da Amazônia. Poema publicado no livro Vozes da Floresta, Editora Xapuri, 2008.oto Foto de Capa desta matéria: Portal Vermelho. Fotos internas: Portal do Amazonas e Senado Federal. 


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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