Procura
Fechar esta caixa de pesquisa.

Valéria Lúcia dos Santos: A ficha do racismo só caiu quando eu estava no chão, algemada

“A ficha do racismo só caiu quando eu estava no chão, algemada. Os policiais me pegaram cada um por um braço na sala de audiência e me arrastaram em pé até o corredor. Não fui violenta com ninguém, só não me movi. Quando chegou do lado de fora da sala, me deram uma rasteira e eu caí sentada. Depois colocaram as algemas.

Nesse momento chegou o delegado da OAB. Ele foi muito firme: “Tira a algema dela agora!”. Os policiais obedeceram na hora. Já eram quatro a essa altura. Aí você pensa: Como é a formação da nossa sociedade? Vamos dar os nomes: tem o senhor de engenho, a senhorinha, o capitão do mato. E quem estava no chão algemado? Eu.

O Estado é racista, entendeu? Mas se eu falo isso é mimimi, é vitimismo, por isso que eu não queria atrelar esse caso a racismo, porque eu não quero ouvir essa resposta. A minha luta ali era garantir o meu direito de trabalhar. O racismo vai voltar a acontecer. Eu tento abstrair, ignoro. Mas não dá para tirar o meu ganha pão.

Naquele dia, a juíza leiga já tinha começado a audiência com uma pergunta não muito amigável. A minha cliente também é negra, e a juíza falou: “vocês são irmãs?”. A cliente respondeu, eu fingi que não tinha ouvido e continuei o meu trabalho.

Episódios assim acontecem quase todo dia, mas muitos colegas não falam porque acham que não vale a pena ou não querem criar problema. Vou dar um exemplo simples. O direito tem várias formalidades. Tem uma cadeira para o advogado e uma para o cliente. Eu sento na cadeira do advogado e os juízes me perguntam: “a senhora é o quê?”. Ou eles falam para os outros advogados na sala que já os conhece, mas eu preciso mostrar a carteira da OAB. Não adianta eu dar o número, preciso mostrar o documento.

Não vou te enganar, eu entro nas audiências e não me sinto representada. A gente está em minoria na estrutura institucional do Judiciário. A última vez que um desses episódios aconteceu, eu me acovardei, não quis arrumar tumulto. Naquele dia em Caxias, decidi que isso não ia se repetir. Eu tinha direito de ver a peça da defesa.

A juíza leiga negou. Eu saí da audiência para buscar o delegado da OAB, mas ele não estava na sala dele. Avisei à atendente. Quando voltei, a juíza tinha encerrado a audiência e me mandou esperar do lado de fora. Me recusei. Disse que eles, como representantes do Estado, não estavam respeitando a lei. Ela decidiu chamar a força policial.

Tanto foi uma violação que a audiência foi remarcada, com um juiz togado. Aquele ato ali, tanto meu, se eu extrapolei, quanto o dela, foi anulado. Na hora eu não chorei, mas por dentro eu chorava. Fiquei muito mal. Quando cheguei em casa, sozinha, desabei.

Na OAB, quando uma outra advogada negra me abraçou e disse que tinha se sentido representada pela minha atitude, também fiquei muito comovida. Não esperava essa acolhida.

No dia seguinte tentei espairecer, fazer a minha corrida em Mesquita, na Baixada Fluminense, onde eu moro. Eu sempre fui atleta. Fiz atletismo e joguei basquete profissionalmente, muito antes do Direito chegar na minha vida. Meu pai era caminhoneiro e minha mãe, costureira.

Na adolescência, fui convidada para jogar no Iguaçu Basquete Clube e no América. Aos 17, me mudei para Santa Catarina para ser atleta em Criciúma e depois em Concórdia. Morava em uma república de jogadoras, treinava de manhã, ia para escola, estudava de tarde e treinava de novo. Recebia um salário, tudo direitinho. Joguei contra a Paula, a Hortência, várias atletas famosas.

Com 24, voltei para o Rio para fazer faculdade. Comecei com fisioterapia, depois mudei para física na Federal Rural. Fui a primeira da família a entrar na faculdade.

Antes de concluir, recebi uma bolsa para estudar e jogar nos , na Oral Roberts University, em Tulsa, Oklahoma. Morei lá dez anos, casei com um americano e tive dois filhos. Quando fiquei grávida, perdi a bolsa. Fiz um curso técnico e me tornei auxiliar de enfermagem.

Em 2005, minha mãe foi diagnosticada com câncer de pulmão, e eu decidi voltar ao . Meu casamento já não estava bom, e nos divorciamos. As crianças vieram comigo, conheceram a . Retornei para a Baixada e segui com a enfermagem.

Aos poucos, o desejo de terminar a faculdade voltou. A no Brasil estava muito precária e escolhi cursar direito. Passei em uma universidade particular, com o Prouni. Mas me angustiava com a situação dos meus filhos.

Infelizmente, com a implantação das UPPs na cidade do Rio, a Baixada ficou muito perigosa. Meus dois irmãos foram assassinados em Mesquita. Eu olhava para os meus filhos dormindo e pensava: ‘Meu Deus…’ Eles faziam várias atividades, futebol, natação, judô, mas eu tinha aquele receio . Eu trabalhava muito, fazia faculdade. Pensava: ‘E se eu vacilar, não for tão atenta? Com o tráfico e aquela toda…’

O Brasil não investe no ser humano, e eles vão ficando pelo meio do caminho. Tem uns que têm uma força muito grande e, mesmo com todas as dificuldades, conseguem quebrar barreiras. Outros não, e são esses que nós perdemos.

Então na época eu liguei para o meu ex-marido e chegamos a um acordo. Era melhor para os nossos filhos que eles voltassem para os EUA. Não consegui viajar para visitá-los ainda, faz sete anos que não os vejo. Sou advogada autônoma, no começo da carreira, me formei em 2016. Ganho pouco, cerca de R$ 1.500 por mês. Trabalho de casa, em Mesquita, e duas vezes por semana em um escritório de Caxias.

Foi uma decisão radical mandar meus filhos para os EUA, mas foi a melhor opção. Um está começando a faculdade de engenharia, na Carolina do Norte, e o outro está terminando o segundo grau. É difícil para mim falar disso [fica em silêncio, suspira]. Tenho saudade, mas vejo que eles estão evoluindo lá. O mais velho conseguiu uma bolsa de estudos. Então foi doloroso sim, mas valeu a pena.

Como meus pais já faleceram e meus filhos estão fora, a minha referência aqui são os meus tios. Foi com um deles que fui conversar depois do que aconteceu no fórum. Porque as pessoas mais velhas, mesmo sem , são muito sábias. Ele me disse: “Você é igual à sua mãe, não leva desaforo para casa”. E me deu o melhor conselho: “Não abaixa a cabeça, segue em frente”.

Val%C3%A9ria Santos

ANOTE:

FONTE: Matéria publicada no Jornal Folha de https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/09/o-estado-e-racista-mas-se-falo-isso-e-mimimi-diz-advogada-algemada-no-rio.shtml

Cópia transcrita de posts na Internet.

Foto de divulgação, acompanhada da matéria.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

PARCERIAS

CONTATO

logo xapuri

posts relacionados

REVISTA