Xadrez de Lula e a esfinge: ou me decifra ou te devoro
Por Luis Nassif
O quadro que Lula enfrenta, na sua volta, é um xadrez que desafia qualquer grande mestre
Peça 1 – a volta de Vargas
Getúlio Vargas caiu em 1945. Voltou eleito em 1950. Já não possuía o mesmo tirocínio político da primeira fase. Idade? Novas circunstâncias?
Em 1930 assumiu o país no bojo de uma Revolução. Em 1937 ampliou seu poder com o Estado Novo. Nos dois momentos era Poder, com amplo espaço para montar sua rede de alianças que passava pelo empresariado paulista, os militares de Góes Monteiro, a nova elite nordestina.
Quando retornou em 1950 o quadro era outro. A ascensão de um partido trabalhista, o PTB, do novo sindicalismo, o clima de guerra fria pós-Segunda Guerra, a ampliação extraordinária da influência americana – especialmente nas Forças Armadas e na mídia -, tudo isso criava uma situação totalmente nova, um espaço para a radicalização que foi bem aproveitado pela oposição.
Foi alvo de uma campanha diuturna, que afastou os empresários aliados, abortou a tentativa de montar uma mídia aliada e tornou os aliados alvos da polícia e de procuradores.
A maneira de enfrentar politicamente os adversários foi o suicídio, que garantiu mais alguns anos de governo democrático, com JK e Jango.
Peça 2 – a volta de Lula
De certo modo, Lula vive problema semelhante, um novo momento, diferente daquele em que ele se formou, e a idade, que pode (ou não) afetar seu instinto político.
Lula surge na ditadura e se consolida na democracia. Sempre foi um conciliador e um filho da industrialização paulista. Seu objetivo maior era inserir a classe trabalhadora no jogo político convencional, um modelo espelhado na socialdemocracia europeia, especialmente na alemã.
Dava-se bem com as multinacionais, que sempre foram melhores empregadoras, com as lideranças empresariais paulistas. Sua rede internacional de contatos era com centrais sindicais de países democráticos.
Desde cedo praticou o sindicalismo de resultados, que consistia em jogar dentro das regras do jogo e obter ganhos incrementais para a classe trabalhadora e, no governo, para os mais pobres.
Não ousou nenhuma reforma mais necessária. Não apoiou a justiça de transição, não mexeu nos ganhos de mercado, não tentou uma reforma que inaugurasse a justiça fiscal, não recorreu sequer aos cuidados de qualquer governante democrático, de assegurar aliados na Suprema Corte e no Ministério Público, não afrontou nenhum dos cânones do modelo, respeitando os 3 Ms, a trindade que se consolidou – mercado, mídia e militares. Por outro lado, conseguiu um espaço político que lhe permitiu entregar um país menos desigual e com uma notável inclusão social.
Mesmo assim foi alvo de uma campanha inclemente, que o marcou como aliado de Cuba, da Venezuela, agente da bolivarização. E nem se debite essas maluquices apenas à era Olavo de Carvalho. Essa mistificação foi alimentada dia após dia pelo conjunto da mídia, quando Veja inaugurou a estratégia de fake News, mais tarde assimilada pelas redes sociais.
O modelo Lula de conciliação – mais os erros na sucessão – levou ao quadro atual: ascensão do bolsonarismo, desmonte de todas as conquistas democráticas, derrota política das esquerdas de uma maneira geral. É quase um consenso entre lideranças do PT e o próprio Lula.
Qual o Lula que ressurge dessa hecatombe?
Peça 3 – o novo cenário político
O quadro que Lula enfrenta, na sua volta, é um xadrez que desafia qualquer grande mestre. Tem as seguintes peças no jogo:
Antipetismo – graças ao mensalão e a Lava Jato, consolidou-se em parte considerável da opinião pública a demonização do PT, como partido corrupto, defensor de ditaduras comunistas. Hoje em dia, o antipetismo se tornou sentimento dominante no Judiciário, Ministério Público, meio empresarial, mídia, além das corporações militares, historicamente críticas do sindicalismo. Em Minas Gerais, por exemplo, há uma debandada de prefeitos petistas indo para o PSB, PDT e outros, mantendo os laços com o partido, mas para se desvencilhar da pesada herança antipetista.
Estratificação do PT – o PT é um partido que passou a viver exclusivamente em função de Lula, seu bem, seu mal. Não precisava se preocupar em ouvir as bases, em estender laços para setores empresariais, em entender as novas tecnologias sociais, porque na hora decisiva o carisma de Lula resolvia tudo.
O partido atravessou três crises gravíssimas – a do mensalão, da Lava Jato e do impeachment de Dilma Rousseff – sem dispor sequer de um comitê estratégico, capaz de analisar a conjuntura, formular estratégias, corrigir caminhos errados.
Durante algum tempo, José Dirceu cumpria a função de enxergar o jogo de poder no todo e formular estratégias. Bastou um tiro, do mensalão, para deixar o PT órfão de estratégias.
E nem se debite essas vulnerabilidades apenas à campanha sistemática da mídia. O PT passou ao largo da revolução das mídias sociais. Sem base social, recorrendo a algoritmos, a direita logrou montar uma rede nacional. Com uma base nacional de militantes, contando com a estrutura dos sindicatos, o PT jamais se preocupou em montar sua própria base de dados e em passar e receber informações da sua militância. Os petistas foram derrotados não apenas na periferia, mas nos embates familiares.
Quem inaugurou a militância digital foram os jovens progressistas. No entanto, o PT não montou uma política sequer para a militância jovem, fechou as portas para o MPL (Movimento Passe Livre), assim como para o extraordinário Ocupe as Escolas, dos secundaristas de São Paulo, e manteve movimentos essenciais, como o Movimento dos Sem Terra e dos Sem Teto personagens secundários, e a reboque, da luta política. Na era Dilma, atritou-se com os movimentos LBTGs, movimento negro, movimentos ligados ao meio ambiente.
Nas últimas eleições, a renovação política se deu com Youtubers de direita, não com os jovens progressistas pioneiros. E a força que emergiu da periferia e da classe média foi a dos evangélicos.
No entanto, o PT ainda é o grande partido da esquerda nacional. E, se não fosse o ativismo político do Supremo Tribunal Federal e do TRF-4, Lula teria sido eleito presidente.
O centralismo – todos os grandes movimentos políticos, desde os anos 80, tiveram como mote principal o combate à centralização de Brasília. Foi assim com as diretas, na eleição de Fernando Collor – e, posteriormente, na campanha do impeachment -, na eleição de FHC e do próprio Lula. Navegando no boom das commodities, o governo Dilma Rousseff retomou a centralização de forma exacerbada, acabando com conselhos de participação empresarial e social. Hoje em dia, a pecha da centralização está pespegada no PT, e é a bandeira central de que se vale Paulo Guedes para o desmonte irracional do estado nacional, com apoio do empresariado.
O sindicalismo – também enfrenta seus demônios. Um, a mudança no perfil do trabalho, com a indústria 4:0 e a uberização da economia. Outro, o isolamento cada vez maior e a incapacidade das direções de interagir com outros atores políticos.
Fonte: Jornal GGN