30 anos da TI Yanomami: "Que nossa luta contra o garimpo seja exemplo para futuras gerações"

30 anos da TI Yanomami: “Que nossa luta contra o garimpo seja exemplo para futuras gerações”

30 anos da TI Yanomami: “Que nossa luta contra o garimpo seja exemplo para futuras gerações”
 
Seguindo os passos de Davi Kopenawa, Maurício Yekuana espera que sacrifícios de hoje garantam o do território…

Por Murilo Pajolla/via Brasil de Fato

A marcha dos acontecimentos obrigou Maurício Yekuana a deixar seu lar, na comunidade Fuduwaduinha, região de Auaris, Indígena (TI) Yanomami. Os habitantes da TI o escolheram para defender seus interesses em meio à hostil dos não indígenas. 
Hoje com 36 anos, ele mora em Boa Vista (RR). E era uma criança quando a TI foi homologada, há três décadas. Agora, mais ameaçado do que nunca, o território depende, dentre outros fatores, do ativismo de indígenas como Maurício para sobreviver à maior invasão garimpeira de sua história. “Que nós sejamos um exemplo exemplo dessa luta”, projeta para os próximos 30 anos. 
“Nos anos 80 e no início de 90 teve a corrida de ouro na Terra Yanomami. E esse tempo chegou de novo”, diz Maurício, o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, a principal organização dos povos da TI. Ele diz seguir os passos do presidente da Hutukara, Davi Kopenawa. Líder histórico da região, a atuação de Kopenawa nos anos 90 foi decisiva para a demarcação da TI Yanomami.
“Como diz o Davi [Kopenawa], a gente está na mira da cobra grande. Nós conquistamos um espaço, o direito dos povos indígenas. E hoje a cobra grande está nascendo, cresceu e agora está tentando engolir o que nós conquistamos”, descreve a liderança, em entrevista exclusiva abaixo. 
Maurício é do povo Yekuana, um dos parentes que compartilham o território com os Yanomami. Suas atribuições o levaram a se tornar quase um especialista na atividade garimpeira, monitorada de perto pela Hutukara. Não é para menos: o garimpo nunca destruiu com tanta força os recursos naturais e a cultura dos habitantes da TI, nem mesmo na época da tragédia social que levou à demarcação. 
“Nessa época [anos 80 e 90], os garimpeiros enterraram muitos maquinários pesados, cobertos por lona. E eles estão recuperando isso. Levam as peças pequenas e restauram [as máquinas desenterradas]”, afirma Yekuana. 
Ao Brasil de Fato, Maurício detalha como o garimpo acaba com o bem viver indígena e descreve como a atividade se modernizou, aumentando seu poder destrutivo. Fala também de uma realidade ausente dos noticiários, mas abundante no interior da TI: a diversidade dos ritos e celebrações ancestrais, praticados cotidianamente nas áreas onde o garimpo não conseguiu chegar. 
Brasil de Fato: Diante da tragédia social provocada pelo garimpo na TI Yanomami, há clima para celebração dos 30 anos do reconhecimento da TI Yanomami pelo brasileiro?
Maurício Yekuana: Essa data comemorativa é importante. Seria mais importante se a Terra estivesse 100% fiscalizada por parte do governo. Há muita pressão por parte do governo federal. Acho que os presidentes anteriores [a Jair Bolsonaro] deram, digamos, não apoio, mas tinham um pouco de consciência. Não eram focados em atacar diretamente os povos indígenas, não tinham esse ódio direcionado aos povos indígenas. 
Hoje a gente vê que é para os garimpeiros que o presidente fala. Quando ele fez campanha, ele falou que ia fazer o que ele está fazendo. “Eu não vou demarcar nenhum centímetro da Terra Indígena”. E ele está fazendo até o contrário de demarcar, que são os Projetos de Lei 191 e o 490, justamente para reduzir as terras indígenas que já foram demarcadas. 
O direito dos povos indígenas na está engavetado, o artigo 231. Por que isso não está sendo discutido por parte do governo dentro do Congresso? Por que que eles estão colocando essas propostas novas agora para acabar com os
Está tendo muito retrocesso. O que nós conquistamos está que nem caranguejo, andando para trás. Como diz o Davi [Kopenawa], a gente está na mira da cobra grande. Nós conquistamos um espaço, o direito dos povos indígenas. E hoje a cobra grande está nascendo, cresceu e agora está tentando engolir o que nós conquistamos. Está colocando tudo na barriga dela”.
Mineração e garimpo em terra indígena, isso é muito perigoso para a gente. E aí está o governo incentivando empresários do garimpo. E também a cooptar lideranças indígenas que estão na cidade. Muitos estão sendo bem pagos para isso. E os nossos jovens estão sendo atraídos. 
Os nossos jovens estão caindo nessa boca da cobra grande. E aí, junto eles, estão indo com os nossos direitos. Então, eles estão enfraquecendo a luta dos povos indígenas. Algumas lideranças dizem que são representantes dos povos. Mas não são lideranças indígenas.  
Garimpo não é cultura indígena, porque nós trabalhamos na preservação da natureza, em manter a floresta em pé. E o garimpo estraga, leva a doença. Parece simples, mas o estrago é muito grande. Então é isso. Está tendo um retrocesso do que foi conquistado. Já está sendo engolido pela cobra grande, como eu falei. 
A situação que levou à demarcação do território Yanomami era ruim, mas hoje tudo indica que está ainda pior. De lá para cá, o que mudou e o que continuou como estava?
Nos anos 80 e no início de 90 teve a corrida de ouro na Terra Yanomami. E esse tempo chegou de novo. Porque está tendo aumento de quantidade de garimpeiros. Está tendo interesse dos empresários que vendem maquinários na cidade, empresários que lucram muito nisso. Políticos partidários crescendo o olho e que financiam muito isso.  
Parece que a gente está nos anos 80 de novo. Tem aumento de aeronave [do garimpo]. Estimamos que tem 120 aeronaves rodando dentro da Terra Yanomami. E da onde vêm essas aeronaves? É porque os empresários estão ali, fazendo negócio, contratos de empresários de aeronaves. 
Então o garimpo inflacionou. Inflacionou as fábricas e as peças de aeronaves, a manutenção de aeronaves. O garimpo compra muitas aeronaves. As que custavam mais ou menos 90 milhões de dólares estão custando 230 milhões agora. 
O garimpeiro também é um inocente. Quem ganha muito é o empresário. O garimpeiro está sendo escravizado, mão de obra que está sendo usada, enquanto o empresário que está na cidade ganha muito dinheiro. O cara na cidade fica com 80%, e o que está trabalhando lá, extraindo ouro, fica com 20%. 
Antigamente o garimpeiro mergulhador ficava lá com aquele jato, mergulhando debaixo da água, por umas oito horas. Hoje, quem faz isso? É a máquina. Porque o cara consegue fazer isso monitorando com a câmera, pilotando que nem o drone. 
O que chama muita atenção hoje é que em cada lugar do garimpo já tem os pontos de wi-fi. E de lá eles conseguem fazer os negócios, contatos mais próximos. Quando a Polícia Federal e o Exército planejam uma ação, em dois segundos eles já estão sabendo que vai ter. 
Na época [anos 80 e 90], os garimpeiros enterraram muitos maquinários pesados, cobertos por lona. E eles estão recuperando isso. Levam as peças pequenas e restauram [as máquinas desenterradas]. Muitos pilotos aposentados foram atraídos para ganhar muito dinheiro. Eles têm muita experiência de pousar onde tem uma pista pequena e levar muita carga. Dizem que a oferta para o piloto é de 150 mil reais por mês. 
Como você imagina e deseja que a TI Yanomami estará daqui 30 anos? 
Olha, eu espero que o trabalho que a gente está fazendo tenha um resultado. Que nós sejamos um exemplo dessa luta. Que nós sejamos biblioteca para os nossos jovens, para o futuro daqui 30 anos. Seria uma honra falar para eles da nossa luta, nosso combate. 
Eu acho que o que eu espero futuramente é que estaremos mais tranquilos. Que não tenha mais essa invasão de garimpo. E até lá vamos ter nossos jovens capacitados, entender melhor os problemas. Que os nossos jovens entendam a importância de ter a luta, a importância de ter multiplicadores, a importância de ser lideranças indígenas, lutar pelo seu povo. Não a favor de si mesmo.  
Eu tenho dito, eu estou aqui [em Boa Vista, Roraima], não porque eu quero ficar morando na cidade. Eu quero ficar morando na comunidade, dentro da minha família, dentro da minha comunidade, fazendo as coisas que eu quero fazer. Mas isso não consigo fazer, por causa do meu povo. Eles me escolheram para ficar aqui.  
Que a do nosso povo seja mais tranquila, os projetos bem executados, a melhore. Que sejam feitas infraestruturas de postos de saúde. E que não tenha mais contaminações dos rios. Que a natureza também se recupere e que nós tenhamos um projeto de recuperar as áreas degradadas. Espero que a nossa terra continue nos próximos 30 anos. 
A riqueza da cultura indígena costuma ficar de fora do noticiário, soterrada pelo volume de denúncias, cada dia piores, de crimes relacionados ao garimpo. Quem são os habitantes da TI Yanomami? E como o garimpo mudou a vida de vocês? 
Primeiro, tem dois povos diferentes. Yanomami é o mais conhecido, em termos tanto nacional quanto internacional. E tem o meu povo, o Yekuana.  
Mas quem é o Yanomami realmente? Yanomami hoje ainda tem a cultura muito forte. As suas práticas, as suas crenças, pajelanças xamânicas. Ele mantém a sua cultura. É a questão de caça, de pesca, a questão de coleta de frutos. Esse é o modelo de bem viver do povo Yanomami. É dessa maneira que o povo Yanomami quer viver. Caçando, coletando frutas, trabalhando, fazendo sua própria roça, pescando, tomando banho e tomando água. 
O que afetou o povo Yanomami? É o garimpo, sempre foi o garimpo. Sempre foi porque o garimpo chega oferecendo uma coisa que não faz bem para a cultura deles. Ele vai levar outras coisas que vão interferir na cultura desse povo, que vai manipular o pensamento desse povo. Que é a bebida alcoólica, que são as drogas oferecidas para os jovens. Isso muda totalmente o comportamento de uma pessoa. E quando o comportamento da pessoa é mudado, criam-se problemas, doenças de saúde mental na família, principalmente na mãe e na desse rapaz que está no garimpo.  
E o Yekuana? O Yekuana é um povo que faz suas próprias canoas, que constrói sua própria casa, que faz sua próprias roças, faz plantio, colhe o que e consome dentro da comunidade.  
Mas o povo que foi atingido pelo garimpo mudou geral. Não tem mais aquela prática xamânica, não tem mais aquilo de construir sua canoa, não tem mais como construir a casa do jeito tradicional. Então isso é o garimpo. Porque o garimpeiro chega lá e fala: “vou te pagar tantos reais”. Se você vai comprar um barco, vai ter um motor de popa, você não vai mais sofrer remando. Você vai ter um motor. 
Você vai ter um motor de ralar mandioca, você vai ter maquinários para fazer produção dentro da sua própria roça. Você vai comprar as telhas para construir a sua própria casa. E aí, inspirado nisso, o cara vai lá trabalhar no garimpo. 
E a cultura do povo tem suas crenças, suas culturas rituais. A cerimônia das roças, cerimônia de alteração da casa. Ainda temos muito forte isso, as pajelanças, as convivências, os diálogos cerimoniais. Isso é o ponto cultural forte do povo Yanomami. 
E o Yekuana com cerimônias tradicionais noturnas, conversas longas. Os mais velhos trocam a experiência que eles aprenderam no passado, o que eles podem fazer hoje e o que eles podem deixar para o futuro. Os jovens que estão no garimpo não querem mais ouvir essas histórias.  
Então mudou o comportamento total, mas ainda tem outros lugares que mantêm essas culturas bem fortes. Se você for, por exemplo, para o Surucucu, lá para a região do Tototopi, lá para Balauaú… Nesses lugares, nossa, é felicidade total! É outra coisa, é outra história. É o que a gente sempre fala: não tem estresse, só tem felicidades. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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