Júlia Feitoza, Júlia do Acre
A chegada na casa da Júlia Feitoza tem capivaras no meio da rua e, no portão, uma seringueira soltando sementes. Localizado em uma área já bastante urbanizada, o terreno mantém uma aparência de sítio.
Por Marcos Jorge Dias
Mangueira, bananeiras, acerola, pitanga, carambola, tangerina, romã, goiaba, jabuticaba, coco, cacau, uva, biribá, uva, araçá e amora são algumas das frutíferas que rodeiam a moradia.
Aposentada, Júlia não para de inventar coisas para fazer. Faz bolos, cocadas, biscoitos de castanha, bombons, salame de cupuaçu e geleias. Às vezes para vender, mas quase sempre pelo puro prazer em presentear os muitos amigos e amigas que tem no Acre, pelo Brasil e no mundo.
Quando saiu do seringal Bom Destino (onde nasceu) e veio para Rio Branco, capital do Acre, Júlia não deixou a floresta. Ela trouxe a floresta dentro de si. E, à medida que foi se constituindo mulher urbana não permitiu que esse processo a distanciasse de suas raízes.
Quando chegou à cidade, aos 10 anos de idade, sem saber ler nem escrever, foi matriculada na escola Darcy Vargas, (que existe até hoje nas proximidades do local onde mora). Mal tinha aprendido as primeiras letras, foi levada para o Rio de Janeiro na condição de “quase da família”, onde ficou por dez anos.
Mas, mesmo na condição de empregada doméstica, não parou de estudar, e foi na cidade maravilhosa que deu os primeiros passos na militância que viria se consolidar no Acre anos depois.
Quando retornou a Rio Branco se engajou nas Comunidades Eclesiais de Base; fez novos amigos com os quais criou uma célula clandestina do “PRC”; fez teatro; entrou para o curso de História na Universidade Federal do Acre.
Militou ativamente no movimento estudantil; caminhou com Chico Mendes nos varadouros das matas de Xapuri e do Alto Acre; junto com o Abrahim Farhat (o Lhé), organizou as primeiras reuniões para a organização do Partido dos Trabalhadores no Acre e acompanhou o Lula na “Caravana da Cidadania” até a cidade de Assis Brasil, na tríplice fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru.
Em um dia em que estava “quase para morrer de dor de dente” foi fazer o concurso do Ministério da Saúde. Aprovada e servidora pública federal, organizou o Sindicato da categoria, do qual foi presidente por dois mandatos; participou da criação e fundação da CUT/Acre.
Com um livro “embaixo do braço” coletou assinaturas para a criação do Partido dos Trabalhadores, no Acre; arrecadou recursos para a permanência dos seringueiros liderados por Chico nos empates, ganhou pessoas para a causa da defesa da Amazônia.
Junto com Raimunda Bezerra, Gomercindo Rodrigues, Lhé, o apoio do bispo Dom Moacyr e outras entidades do movimento social, organizou o Comitê Chico Mendes, que foi essencial para o julgamento dos assassinos do companheiro; foi presidente do Centro dos Trabalhadores da Amazônia – CTA, organização não governamental que foi referência nacional e que serviu de escola para muitos profissionais que hoje atuam no movimento ambientalista.
Júlia é uma mulher que não consegue ficar parada. Atualmente faz parte do Comitê e da Coordenação do Memorial Chico Mendes; é militante do Movimento Negro Unificado – MNU – e do Centro de Defesa de Direitos Humanos e Educação Popular do Acre – CDDHEP/Acre.
Filha de Oxóssi, sua relação com a natureza e com a abundância de alimentos que a floresta oferece são impressionantes. Quem chega em sua casa sempre é recebido com algum suco ou quitute preparado por ela. Enquanto conversamos, descasca os buritis que coletou no quintal para fazer vinho.
Em sua trajetória de vida não faltam histórias de superação, resistência, lutas, vitórias, algumas decepções, mas também de muito companheirismo. É comum em Rio Branco chegarem pessoas de vários lugares procurando pela “Júlia, do Acre”.
Marcos Jorge Dias – Escritor e poeta acreano. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri.