Bichos de pena: pássaros e passarinhos
As aves são conhecidas pelos seringueiros da Amazônia como bichos de pena. Todos os bichos de pena botam ovos e voam. Alguns voam alto, outros baixo, uns voam em socos, mas todos voam.
Por Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida
“Todo bicho de pena, quem choca é o macho, mas isso só vale para os bichos da mata; dos bichos de criação, quem choca é a fêmea. Pode acontecer de algum bicho da mata que quem choca é a fêmea, mas é difícil.” (seu Lico).
Todos os bichos de pena têm visão apurada: “Bicho de cabelo sente mais cheiro e escuta melhor do que vê; bicho de pena enxerga bem (principalmente saracura e macucau), mas não escuta direito e o faro também não é muito bom.” (seu Lico).
O amplo grupo de aves é dividido, conforme o tamanho, em duas grandes categorias: os pássaros e os passarinhos. Os informantes explicam como classificar: “Da juriti pra cima, são pássaros. Os menores que a juriti são passarinhos.” (seu Lico).
Em alguns casos, as famílias correspondem a determinado gênero pela classificação biológica científica, e as qualidades são equivalentes às espécies. Outras vezes, as etnofamílias correspondem diretamente às espécies, e as qualidades são variações da própria espécie.
Na maioria dos casos, são reunidos grupos muito distantes entre si pela classificação científica, mas há sempre uma lógica de agrupamento. Isso ocorre porque as características não são “pesadas”, ou seja, os grupos não são comparados por um parâmetro único.
Podem ocorrer as duas categorias – pássaros e passarinhos – numa mesma família, como entre os tucanos. Na verdade, a categoria dos passarinhos define-se em oposição à categoria das embiaras: somente os pássaros são utilizados como alimento ou caça.
BICHOS DE CABELO: OS “DA MATA” E OS “DE CASA”
Os bichos de cabelo, que correspondem aproximadamente aos mamíferos, subdividem-se em “famílias” de animais agrupados a partir dos critérios mencionados na morfologia, nos hábitos e ambientes.
Assim, dentro do grupo dos bichos de cabelo, há os grupos dos gatos, dos cachorros, dos ratos, dos porcos (todos com membros, “da mata” e “de casa”); dos macacos, dos tamanduás, das mucuras (sem equivalentes “de casa”); há tipos isolados (o cuandu) e os grandes animais – antas e veados – que, embora haja análogos “de casa”, não têm nome em comum com eles.
No interior desses amplos grupos de animais aparentados, existem categorias que apontam para tipos (macaco-de-cheiro, soim-branco, paca-concha ou paca-china); e finalmente há “qualidades”.
O grupo dos macacos compreende os macacos propriamente ditos (distinguindo-se os macacos dos macacos-soins) e também animais eventualmente classificados como macacos por suas características morfológicas, de hábito e ambiente – por exemplo preguiças, quati, bule-bule (ou quincaju).
Analogamente, o grupo dos ratos compreende os ratos legítimos (os ratos da mata e os de casa); ao raciocinar e refletir sobre as categorias de animais, o grupo dos ratos é ampliado para incluir bichos que “são ratos” por sua morfologia e hábitos:
“Todos os bichos que roem são um tipo de rato: a paca, a cutia, o quatipuru… Todo bicho que rói só tem dois dentes, dois em cima e dois embaixo; eles só têm amolagem (dentes incisivos)”, diz Seu Lico seringueiro. Os morcegos são às vezes assimilados aos ratos (porque são gerados “de rato”).
Os grupos dos porcos, gatos, cachorros e ratos compreendem claramente os grupos silvestres e domésticos. Pelo contexto, sabe-se quando o seringueiro se refere aos bichos da mata ao falar “porco”, “gato” ou “rato”, é mais comum qualificar dizendo “porco de casa” ou “gato de casa” do que acrescentar “porco da mata” ou “gato da mata”.
O grupo que reúne a anta, o veado e os porcos (caititu e queixada) não têm um nome único baseado no critério de morfologia e hábito, embora os seringueiros reconheçam que são “bichos de unha”; nesse caso, o termo “caça” coincide com esse grupo morfológico.
Os bichos de cabelo caracterizam-se por terem quatro pés – ficam assim excluídos os botos – e serem animais que dão à luz e mamam.
Manuela Carneiro da Cunha – Antropóloga, em Enciclopédia da Floresta – O Alto Juruá: Práticas e Conhecimento das Populações – Organizadora. Editora Companhia das Letras, 2002.
Mauro Almeida – Antropólogo, em Enciclopédia da Floresta – O Alto Juruá: Práticas e Conhecimento das Populações – Organizador. Editora Companhia das Letras, 2002.