Cágado: O antióbvio
Vê-se que não comeu sebo de égua o cágado. À procura de água, desce o cerrado, no pino do sol, tardoso e raro. É o próprio esquisitão que aprendeu paciência sem cartilha. O ínvio nato. O antióbvio.
Está ali esse pobre diabo. Desmancha cem anos, dizem, no seu desviver. Pois o suco do amor até hoje ninguém viu escorrer dos seus lábios. Não tem lábios nem artes. Penso no seco do verde quando o encontro. Dá-me a impressão de alguém obscuro que vem de lugar nenhum e vai para nada todos os dias. E penso na voz de chão podre que tem nos seus abismos.
Seu jeito de andar é de quem está chegando de um bueiro. Há sempre sinais de incêndios e de limos na sua casca loteada. E um crespo ardor de chuvas extintas.
Está aí esse indivíduo cágado. Sem poder criar raízes sobre nada. Seu corpo não conhece o espojar-se na terra e nem o frescor das águas. Toma banho de casca e tudo. A mim me parece um castigo alguém não conhecer na carne o frescor de águas correntes.
É cheio de vestígios do começo do mundo, por isso nos parece inacabado. Mas quando metade da terra estava por decidir se seria de pedra ou de água – já estava decidida a sua desforma. E quando ainda ninguém ousava de prever se o inseto nasceria de uma planta ou de uma larva – já ele estava deformado e pronto. O cágado é pois uma coisa sem margens; feio por igual; feio sem defeito.
Só quando acha no cerrado um ninho de pitangas, exulta-se o cágado. E se nos paus apodrecidos um coró abre para ele suas folhas brancas – aí dança de lado. E deita o pescoço pra fora. E sente os odores do sol.
Agora está aí o pobre cágado. Alguém o trouxe do campo e o largou no quintal, em volta da cozinha, no chão rico de restos de comida e crianças.
No começo os meninos suspenderam o fôlego. Ficaram de longe cubando. Veio a galinha xereta, arrastou asa, mexericou com as outras, arriscou uma bicada no casco, e saiu ciscando como se visse macaco venéreo.
Depois o cachorro, cauto, cheirou o indefinido e foi deitar-se, de guarda. Papagaio espiou e saiu andando de lado. Papagaio quando anda de lado examina. Um garoto estava de cócoras defronte da janelinha do cágado e via a cabeça mover-se obscena.
Logo porém se acostumaram todos. O cágado já comia folhas de alface. E os meninos começaram a montar.
Só não conseguiram apertar a chincha!
Manoel de Barros – Escritor pantaneiro. Em Livro de Pré-Coisas. Editora Record, 1997.
O QUE É CÁCADO?
Os cágados possuem hábitos semiaquáticos, ou seja, a vida se divide entre ficar na terra e na água doce. O casco é achatado e as patas traseiras são espalmadas, com unhas e membranas interdigitais. No entanto, esses quelônios conseguem apenas retrair o pescoço lateralmente (subordem Pleurodira), como se o dobrasse rente ao casco.