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CAIOÁ: "TERRA E ESPÍRITO

CAIOÁ: “TERRA E ESPÍRITO

Caioá: “Terra e Espírito”

O povo Guarani-Kaiowá do jovem Caioá é um povo originário dos espaços da floresta e tem o costume de buscar constantemente espaços (espaços que consideram “terras sem males”) onde imaginam poder encontrar a imortalidade. A terra é a origem da vida na concepção deste povo.

Por Nádia Aparecida Pires

Depois de um sonho impactante com seu avô, o jovem Caioá tornou-se mais atento, observador e questionador.

O avô fez Caioá pensar sobre o ser nativo e preservar seus costumes: crença, dança culinária, artesanato, bem como ir para a cidade estudar e se inteirar dos costumes do não índio, saber mais sobre as pragas do mundo moderno, aprender a conviver e adquirir conhecimento sobre formas de defender seu povo.

Quanto mais via seu povo morrendo por doenças, com a falta de água potável, falta de terras cultiváveis, dormindo dependurados em árvores para nunca mais acordar e ficarem encantados, com isso Caioá se sentia mais inquieto.

Seu povo – vitimado – sem condições de defesa, tudo estava sendo tomado por fazendeiros, posseiros, grileiros com as invasões ilegais.

Estavam já sobrevivendo às custas de doações de cestas básicas, a desnutrição infantil se acentuando e muitos jovens quietinhos em redes por dias e dias, deprimidos, sem conversar, sem
comer. Caioá indagava sobre os por quês e para quês de tudo isso, e a expressão “terra e espírito” martelava na sua mente.

O povo Guarani-Kaiwá é um povo originário dos espaços da floresta e tem o costume de buscar constantemente espaços (espaços que consideram “terras sem males”) onde imaginam poder encontrar a imortalidade. A terra é a origem da vida na concepção deste povo.

Muitos jovens entre 12 a 14 anos haviam decidido dependurar em árvores e dormir até ficarem encantados, pois para o indígena Caioá, o vínculo com a terra onde vivem é muito forte e dessa forma acreditavam que impediriam que o espírito saísse do corpo e assim preservariam sua cultura milenar e salvaguardariam seus ancestrais.

O sentimento do povo Caioá é inspirado na terra, como se fossem como as árvores nativas do lugar, e é dessa maneira que acreditam que vão salvar suas terras, o lugar onde nasceram e cresceram e cultuaram seus antepassados.

Os que vivem em acampamentos superlotados, passam dificuldades com a adaptação, em
manter seus hábitos, porque cada tribo tem suas peculiaridades e diferentes líderes. Isso tudo afeta os indígenas em sua identidade cultural.

O jovem ficava confuso, se sentindo desamparado com as ameaças ao seu povo, o que acontecia também em outros acampamentos. Pensava: – Então… quantos problemas, e quanta perversidade a serem solucionados ou não!

Certo dia, na beira do rio, ora olhando para água, ora para as serras, ele ouviu na outra margem um menino não-índio brincando e cantando:

Em terra de guarani
Tem jaci, yara, rudá, guaraci
O jaboti come pouco aqui
a jaboticaba que é a comida do jaboti
enquanto a índia pega o jacá
Jaçanã nada como os patos
pra lá e para cá dando risadas
já vem o jacaré com olhar parado
desconfiado observa seus atos
outro curumim rompeu na mata
com o voo barulhento da ararinha
e o gemido da juriti na baraúna
ao serem espreitadas pela jaguaruna
um trovão estremeceu no céu
Arani! A bicharada ficou jururu
Socorro cavaleiro guaicuru!

Caioá ficou espreitando atrás das folhagens, ele já entendia várias palavras devido ao contato frequente com não índios que intermediavam os problemas na aldeia. Mas achou estranho, e pensava onde aquele menino aprendera canção com palavras indígenas e dizendo que o jaboti só comia jaboticaba (isso deve ser lá na cidade).

Ficou matutando: o que será que ele sabe sobre o índio Caioá e por que seus familiares nos detestam, ameaçam, perseguem e roubam há tantos anos?

Ele sempre ouvia histórias contadas pelos caciques e não índios amigos que falavam sobre a Carta de Pero Vaz de Caminha, sobre o Marechal Rondon e se inteirava sobre as histórias sobre seu povo.

O povo guarani-Caioá tem o costume de plantar banana, mandioca, palmeira e principalmente o milho. Valorizam a água, entendem que a mata preserva a água e seu volume. Usam cachimbo para se comunicar com os espíritos (essa é a bíblia do pajé), transmitem cantos, rituais religiosos (Jeroky-quasu), dança, ensinam sobre os adornos, flechas, sobre as plantas que servem para comer e para remédios. Tudo isso para o jovem Caioá e seu povo era muito significativo e valoroso, mas onde estavam, não oferecia condições para manterem com segurança seus costumes.

Para o povo Caioá, o guardião da terra vigia a terra e dá-lhe o sustento, por isso sente-se responsável para gerenciar e proteger os meios oferecidos pela terra. Ele já tinha ouvido o depoimento de vários caciques de outras aldeias, atordoados com a relação de consumo por estarem muito próximos das cidades, pois a maioria dos indígenas não estavam treinados e nem adaptados para lidar com dinheiro e nem aptos em serviço de não índio.

Contratados como peões, auxiliares de edificações, construções de estradas carregadores, sempre explorados e tratados como boias-frias. Muitos, por não suportarem as contradições e sentindo oprimidos, coagidos a desprenderem-se de suas crenças estavam se tornando alcoolistas. Como é difícil conviver com as lembranças ruins…

Eles viviam sua própria cultura, até que fazendeiros, grileiros começaram a comprar as terras ocupadas por meeiros, posseiros que eram com isso forçados a abrir novas frentes. Dessa forma
desmatavam mais matas, florestas, em busca de novos espaços para ocuparem e assim surgiram as vilas, as cidadezinhas, as metrópoles dos não índios que aumentaram sua população e em contrapartida, os povos indígenas tiveram seus espaços reduzidos e suas vidas ceifadas, algumas tribos foram dizimadas sem deixar vestígios.

Outrora, os desbravadores, fincadores de bandeiras para marcar território por onde passavam, provocaram desinstalações de tribos e desorganização das mesmas causando intriga entre elas e delas com não índios. Além da desestruturação social, linguística e econômica, quando muitos foram pegos a laço, outros se renderam e outros perderam a vida, morreram, estes são resultados deploráveis provocados pela colonização.

Entretanto, o jovem Caioá sempre recorria aos mais velhos e as memórias de seu avô. Tinha certeza que os ataques do bicho não índio estavam muito constantes, o temor se
alastrando com os desastres cometidos por essas feras temidas que usam armas de fogo, sem controle, enquanto seu povo entoava cantos chorosos nos acampamentos.

Quanto mais ele conhecia sobre o Movimento Indígena no Brasil, criado por Marcos Terena, nascido no Pantanal/MS, mais se sentia incentivado e esperançoso e mais ainda quando conheceu Ailton Krenak, do povo Krenak, da Reserva do Vale do Rio Doce, na divisa de Minas Gerais com Espírito Santo, um indígena admirado por tanta gente, de muito conhecimento, capaz de discursar e ser ouvido, um guerreiro já entrosado no mundo do não índio, mas que nunca parou de protestar em defesa dos indígenas.

Conheceu também Iwaí um dos últimos avá canoeiro que vivenciou horrores com a família e amigos, mas sobreviveu e deixou netos.De tanto ouvir a “história da ave misteriosa, gemedeira, que pia triste, injuriada e vive nas touceiras dos tajãs – a Juriti pequena – que na crença de alguns povos indígenas, habita a imagem de uma pomba invisível que anuncia coisa ruim, com isso ele passou a conversar mais com o Pajé, para esclarecer sobre as intuições. Soube que o mau agouro pode ser evitado por um capacitado feiticeiro, antes que a coisa ruim aconteça.” 1

Enfim, o jovem Caioá decidiu que seria sim uma boa ideia ir estudar na cidade, tentar faculdade em uma área que favorecesse seu povo e pudesse sempre prestar ajuda a eles. Pensou em enfermagem, medicina, direito e comunicação. Sobretudo pensou firmemente em apoiar outros amigos e parentes a seguirem esse novo caminho, com outras dificuldades e particularidades, mesmo sabendo que ainda seriam poucos, contudo sabia dessa necessidade e tinha dentro de si o amor e estaria sempre apoiando seu povo, suas raízes.

Sua decisão também foi estimulada pelo COVID-19, uma doença viral, que infectou muitos anciãos levando-os a morte. Perder anciãos na cultura indígena é como perder várias enciclopédias e até bibliotecas, ele se preocupava:

– Quem vai sobrar para contar histórias e passar conhecimento às crianças e jovens? Sua decisão foi bem aceita pela família, ele superou as dificuldades enfrentando um novo desafio.

Desde então, quando vai ao acampamento, gosta de dormir dentro da canoa, esperando comunicar com seu avô em sonho, seu conselheiro sereno e determinado. Quando rompe a aurora, ele olha no espelho d’água e em seguida para a serra ao longe, renovando a esperança e animando sua coragem.

A última vez que sonhou com seu avô, seu avô deixou uma mensagem reflexiva com relação ao Covid-19. Ele disse a Caioá que de tudo podemos tirar uma lição, uma delas era a importância
urgente em cuidar das florestas, das águas porque essa gripe partia do desequilíbrio ambiental, então mais que nunca as pessoas deveriam entender essa realidade. Outro ponto na observação foi que ele olhou bem nos olhos de Caioá e disse: – Com o uso da máscara, os não índios estão aprendendo a olhar nos olhos uns dos outros, isto também é um grande aprendizado.

Caioá riu de um jeito compreensivo, sacudindo a cabeça, concordando com seu avô.

Vocabulário:
Guarani – tronco linguístico falado por algumas tribos
Jaci – lua, filha de Tupã
Yara – senhora da água
Rudá – divindade do amor
Guaraci – sol-marido de jaci
Jacá – cesto trançado de cipó ou taquara
Baraúna – madeira preta -árvore
Jaguaruna – onça parda
Jururu – triste, desiludido
Arani – mau tempo
Guaicuru – índios valentes que habitavam os estados do Mato Grosso do Sul, Goiás e no
Paraguai na região do Chaco.
Tupã – espírito do trovão

Nadia Pires

Nádia Aparecida Pires – Vilaboense. Natural da Cidade de Goiás/Go, reside em Goiânia. Graduada em Educação Física com especialização lato sensu em Saúde Pública; Educação; Psicopedagogia. Oficineira e Autora de Livros e de Artes Visuais , Musicista. Colaboradora da Alaneg/RIDE e da Xapuri.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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