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JOSÉ DIRCEU: MEMÓRIAS DE 1964

JOSÉ DIRCEU: MEMÓRIAS DE 1964

José Dirceu: Memórias de 1964

Em memória dos nossos companheiros e companheiras que deram o único bem que tinham, a vida, na luta contra a ditadura militar, vítimas da tortura, assassinatos e desaparecimento aos quais não se fez justiça com a punição dos torturadores e assassinos, com a responsabilização das Forças Armadas.

Por José Dirceu

Em 31 de março de 1964, eu era auxiliar administrativo num escritório na Praça da República e vi descendo a Avenida Ipiranga, vindo da Rua Maria Antônia, uma passeata de estudantes do Mackenzie. Era a elite paulista festejando o golpe. De imediato tomei posição contra: eu não era daquela classe.

De novo, na Rua Maria Antônia, já em plena ditadura, e eu de novo frente a direita armada pela ditadura, Deops e CCC, enfrentando a tentativa de uma minoria de estudantes de direita de tomarem o prédio da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, da USP.

E, por fim, depois do fim da ditadura, na luta pelas Diretas Já, a devolução do prédio da faculdade, na Maria Antônia, para os estudantes, com a criação de um espaço cultural e de memória da luta dos estudantes pela democracia.

1964 começou bem antes e teve como principal ator o partido militar: o Exército à frente da Aeronáutica e Marinha. Não era a primeira vez e não seria a última que os militares como partido político se impunham pelas armas e governavam.

Em outras épocas, outro Exército em outro Brasil, já havia feito a República, os governos Deodoro e Floriano, a Revolução de 30 que começa com o levante dos Dezoito do Forte de 1922, com a Revolução Paulista de 1924 e a Coluna Prestes.

1930 consolida o predomínio dos tenentes no Exército e leva Getúlio ao poder. Ele enfrenta o levante paulista de 32, faz a Constituinte de 34, dá o golpe do Estado Novo, em 1937, e governa com o Estado Maior do Exército, tendo ao lado Góes Monteiro. Seu chefe era chamado de “O Condestável” do Estado Novo, cuja Constituição outorgada era chamada de Polaca por copiar a da Polônia Fascista.

Mas são militares e exércitos diferentes.

O Brasil foi se industrializando, urbanizando e a classe operária industrial e trabalhadora foi se constituindo como agente político e social. Até a Segunda Guerra Mundial, grosso modo, tínhamos um Exército que se profissionalizava e defendia o Estado Nacional e a industrialização. Era autoritário, mas nacionalista.

Com a Segunda Guerra Mundial, vem a entrada do Brasil ao lado dos Aliados. Mas não sem grande divisão no Estado Maior do Exército, onde muitos generais eram adeptos do nazifascismo. De volta da Itália, onde a FEB combateu, os generais e coronéis trazem nas mochilas a ideologia e a influência norte-americana. E, depois, a da Guerra Fria, do mundo cristão e ocidental, o anticomunismo e a adesão à hegemonia norte-americana.

Eles depõem Vargas, de quem foram sócios principais na onda de democratização pós-guerra. Em seguida, Dutra é eleito com apoio de Vargas e faz um governo conservador, católico, pró-Estados Unidos e repressivo aos sindicatos e esquerdas.

Mas Getúlio volta nos braços do povo e recomeça o ciclo nacionalista e industrializante. Tem apoio nas classes populares e funda as bases do Brasil moderno – BNDES, Camex, Sumoc, Petrobras e Eletrobras …

Aqui começa o Golpe de 64. A direita católica, udenista, militar e empresarial, a mídia e a Igreja Católica tentaram dar o Golpe já em 1950, com a tese da maioria absoluta que Getúlio não obtivera e nem era uma exigência constitucional. Acabaram levando-o ao suicídio.

E só não tomam o poder pelo levante popular. Aqui vamos lembrar dois fatos que dizem tudo: o Manifesto dos Coronéis, na pratica exigindo a renúncia de Vargas; e a Republica do Galeão, quando os brigadeiros tomaram em suas mãos a Justiça, a investigação e o processo sobre a atentado contra Lacerda que levou à morte do Major Vaz. Era ele quem fazia sua segurança. E isso nos remete à “República de Curitiba” nos dias de hoje.

A direita e os militares golpistas perderam a eleição para Juscelino Kubitschek e tentaram de novo um golpe, derrotado por um contragolpe do chefe do Exército, o General Lott. Vejam que os candidatos da UDN foram Eduardo Gomes e Juarez Távora, ambos ex-tenentes. E, em 1960, o candidato das forças nacionalistas era o mesmo Lott.

Nossa direita pró-Estados Unidos e católica consegue, enfim, eleger Jânio Quadros, cuja bandeira, atenção, era a luta contra a corrupção que já fora a principal contra Getúlio e JK.

Mas o Brasil de 61 era um país de luta social e política com uma classe trabalhadora organizada e partidos comunistas e socialistas ativos. Tínhamos ali entidades fortes, como o CGT, a UNE, as Ligas Camponesas.

No Exército, Marinha e Aeronáutica, conviviam diferentes correntes politicas e ideológicas, democratas nacionalistas, socialista e a direita militar. Havia governadores progressistas, como Brizola e Arraes, Hugo Borges, Seixas Dória. E aqueles de direita, como Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e Magalhães Pinto.

Com a renúncia de Jânio, de novo a vem a ameaça da intervenção militar aberta e direta. Mas, com o Exército dividido de novo, há nova tentativa de Golpe. Uma junta militar assume o poder e impede a volta e a posse do vice-presidente constitucional eleito diretamente, João Goulart, do PTB, herdeiro do varguismo. Brizola arma o povo gaúcho, divide o Terceiro Exército e chama a rebelião com a Cadeia da Legalidade, usando a rádio para criar a resistência nacional.

Um compromisso em torno do parlamentarismo leva à posse de Jango, que antecipa o plebiscito e retoma os poderes presidenciais em 1963. Aqui, a aliança que hoje de novo nos assombra se consolida: grandes proprietários de terra, parte do empresariado industrial, as classes médias católicas e conservadoras, a imprensa – Estadão e Globo à frente –Igreja Católica, militares de direita, a embaixada do Estados Unidos, seu governo e Departamento de Estado. Todos se unem para dar um golpe com apoio dos governadores de direita – Lacerda, Ademar e Magalhaes Pinto.

O resto é História. A aliança entre a direita e a religião fez as famosas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Ontem, como hoje, a exploração da família e da religião tem fins golpistas. Com apoio da mídia, encobriram o apoio popular a Jango e o fato que JK venceria a eleição de 65, que não aconteceu. Mas a eleição dos governos de Minas e Rio foram vencidas pela oposição ao golpe.

O Brasil viveu 21 anos sob a ditadura militar, que veio para impedir as reformas de base, a agrária, o Estatuto do Trabalhador Rural, a financeira, a tributária, e educacional, para acabar com o analfabetismo e adotar uma nova educação. De novo, a luta entre dois Brasil: o das elites e a do povo trabalhador. A luta entre o nacionalismo e o entreguismo, entre a democracia e a ditadura.

Era a disputa distributiva e o conflito de classes, a questão nacional e democrática. Era a luta pela participação da classe trabalhadora na riqueza, renda e patrimônio nacional. Foi a luta pela soberania e independência nacional, por um projeto de desenvolvimento nacional com distribuição de renda. A luta pela indústria e pela revolução científico-tecnológica, pela libertação do nosso povo. Era a luta para alterar nossa estrutura econômica e social e dependência externa.

Hoje, como em 1964, as mesmas forças se uniram para dar o Golpe de 2016 para depor Dilma, uma presidente constitucionalmente eleita como há 57 anos. Fizeram a Lava Jato. Por um processo ilegal, político e de exceção, operadores da máquina do Estado julgaram e prenderam Lula, impedindo-o de governar o Brasil e retomar o fio da História.

Substitua a mídia pelas redes, fake news e TVs– Globo à frente, de novo –, o latifúndio pelo agronegócio, a Igreja Católica pelas neopentecostais. Substitua as Forças Armadas expurgadas em 1964 com a expulsão de centenas de oficiais democratas e nacionalistas, as facções industriais pelo capital financeiro bancário e as novas classes médias, a UDN pela coalizão PSDB-DEM, a corrupção pela Lava Jato, e temos a aliança que deu o golpe que nos levou a essa tragédia humanitária e risco real de ditadura com Jair Bolsonaro.

Lá como cá a presença e o apoio dos Estados Unidos foram fundamentais. A questão nacional e democrática, o papel do Brasil na América do Sul, nossa política externa altiva e ativa, o potencial do Brasil para se desenvolver e ocupar um lugar no mundo, a força e a consciência política que se consolidava nas classes trabalhadoras, essas são as verdadeiras razões para o Golpe de 2016, como foram para 1964.

De novo, para enterrar a Era Vargas e, agora, Lula. De novo, um anticomunismo tardio, agora travestido de fundamentalismo religioso, negacionismo e obscurantismo. De novo, a submissão de nossa política externa aos Estados Unidos. De novo o desmonte do Estado Nacional e das conquistas sociais e políticas das classes trabalhadoras. A história se repete.

José Dirceu – Ex-ministro da Casa Civil no governo Lula, líder estudantil nos anos de chumbo. Foi preso político e trocado pelo embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick. Artigo originalmente publicado na revista Focus, da Fundação Perseu Abramo, e reproduzido pelo blog do PT em 31/03/2021. Capa: Agência Brasil.


 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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