“Um lamento amazônico”

“Um lamento amazônico”
 
Por Fernando Gabeira
 
Nos últimos dias de uma nova viagem pela , leio que o Facebook derrubou uma rede de perfis falsos que espalhavam fake news sobre a região, composta, entre outros, por dois militares da ativa. Lembrei-me de uma das tarefas básicas para salvar a Amazônia de uma destruição irreversível: convencer as Forças Armadas e obter uma sintonia de todas as energias nacionais nesta gigantesca tarefa.
 
Creio que é necessário intensificar o debate. A visão de da Amazônia articulada no governo militar não corresponde à realidade dos fatos. Considerar a floresta um inferno verde e supor que o melhor caminho é construir estradas e levar para ali o que chamamos de civilização é equívoco não só econômico, mas também estratégico.
 
Passei três semanas falando com empreendedores na floresta. Eles são incontáveis na Amazônia, desde produtores de chocolate até criadores de abelhas, dizimadas pela plantação de soja, sem falar em quem trabalha com o açaí e a castanha, dois produtos vitoriosos inclusive no mercado internacional.
 
É uma região fabulosa para o turismo, com uma infra ainda precária, e tem 15% das águas do . É mais ou menos como ter, no século passado, 15% das reservas planetárias de . A diferença é que água é vida.
Atuei mais uma vez com as principais ONGs que operam na região e considero um equívoco supor que estejam a serviço de forças estrangeiras que cobiçam nossas riquezas minerais.
 
Creio que todos esses mitos estão por trás da rede de fake news composta por militares, embora os dois estivessem atuando, ao que tudo indica, por iniciativa própria, sem consentimento da cúpula.
 
A única saída é atrair as Forcas Armadas para um debate cordial. A Aeronáutica, por exemplo, colocou Jacareacanga no mapa nacional. Construiu um aeroporto no lugar. O nome de Jacareacanga era o destino dos oficiais rebelados contra o governo, na década de 1950. Hoje, Jacareacanga é um lugar onde se explora ouro. Mas o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade é um dos piores do País. Como defender isso?
 
As populações ribeirinhas de Santarém e de outros pontos do Pará são contaminadas pelo mercúrio no Rio Tapajós. O ouro enriquece poucos e empobrece e ameaça a de muitos.
 
Creio que é necessário, também, falar um pouco da retenção de . Conheci uma árvore chamada castanha-de-macaco, da família do jequitibá, que tem 1.400 anos de idade e 47 metros de altura. Pesquisa baseada no seu diâmetro indica que, derrubada, ela vai emitir a mesma quantidade de emissões anuais de 4 mil brasileiros. A dimensão econômica da retenção do carbono é uma decorrência de sua importância ambiental.
 
Não é possível que todos esses argumentos escapem aos militares, que ainda veem a floresta como centro da cobiça estrangeira e concentram suas críticas nas ONGs que, na verdade, são financiadas por indivíduos no inteiro preocupados com o aquecimento global.
 
Uma das ONGs, a Renctas, por exemplo, dedica-se ao combate ao tráfico de . Parece algo simples, mas não é. Os traficantes exportam micos até em garrafas de café. O movimento descontrolado de animais para a cidade é um perigo. Ao lado do , é a grande ameaça de novas epidemias.
 
Sou favorável a uma exposição transparente do trabalho das ONGs. Mas o governo não as vê da mesma maneira. Missionários, por sua vez, atuam ali de forma descontrolada. Relata-se que o encontro do grupo norte-americano New Tribes Mission pode ter trazido para os zoés. Os índios fugiram para a mata e decidiram não se reproduzir, até ganharem confiança novamente. Só recentemente voltaram a nascer zoés.
 
A razão da disparidade de tratamento é simples: os missionários representam uma posição cara ao governo Bolsonaro e à cúpula militar: a integração e dissolução dos índios na sociedade abrangente.
 
A ideia de conversar e convencer parece romântica. Mas os fatos demonstram o contrário. Durante a pandemia, governo e ONGs atuaram em conjunto na Amazônia. Avião e barcos do Greenpeace levaram medicamentos, comida, oxigênio. Da mesma forma, no Pará, a ONG Saúde e Alegria, que é dirigida por um médico, trabalhou intensamente na região numa vasta área banhada pelo Tapajós.
 
Se uma indiscutível emergência foi capaz de quebrar os preconceitos, por que não rompê-los também por meio do debate? A preservação da Amazônia é uma grande causa planetária e pode representar, simultaneamente, uma importante saída econômica para a região.
 
Do ponto de vista da defesa nacional, creio ser importante também levar às Forças Armadas os dados da nova realidade: aquecimento global, eventos extremos, elevação do nível dos mares. Sem considerar essa realidade, assim como a da guerra cibernética, o País estará se preparando para situações que aconteceram no passado, mas que não se repetem.
 
Não vamos combater de novo os paraguaios, espero. A propósito, no momento em que o noticiário nacional foca nos gastos do Ministério da Defesa, jornais destacam a compra de uma grande quantidade de Viagra e de remédio contra a calvície.
 
É preciso superar esses problemas conjunturais e chegar à essência do problema: sem a adesão das Forças Armadas, a Amazônia será destruída com mais rapidez e o desmatamento nos levará a um ponto de não retorno.
 
Texto publicado no Estadão. Por ler e considerar seus argumentos, não significa que concorde 100% com o autor. Nota da Xapuri: nós também não concordamos, mas achamos que vale o debate. Capa: DW. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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