A latitude da moralidade
A mulher maometana, se acaso se deixa surpreender por um estranho, mesmo quando sumariamente vestida, o seu primeiro gesto é cobrir o rosto e não o corpo…
Achamos isso estranho, embora o gesto dela seja consistente com o nosso hábito de usar uma máscara no Carnaval, quando nos parece oportuna a proteção do anonimato. O véu que as muçulmanas usam em público é a exaltação desse mesmo desejo de encobrir a personalidade, ainda que as suas motivações sejam diferentes das de um folião.
Há não muito tempo, em Damasco, uma turba enfurecida, atirando pedras e disparando tiros, forçou a entrada em um teatro onde se exibia uma companhia francesa, em protesto contra o rosto – e não o corpo – despido das atrizes. Da mesma forma, em fins do século passado, por ocasião de um baile de máscaras em Nova York, os convivas foram apedrejados exatamente pelo motivo oposto. E ao recorrerem à polícia, essa os advertiu que não tinham direito à sua proteção, pois estavam fora da lei.
A intensidade do senso de vergonha, como se pode deduzir dos exemplos acima, varia conforme a região. Entretanto, os modernos meios de transporte, encurtando distâncias e tornando acessíveis localidades anteriormente isoladas, tendem cada vez mais a equiparar o senso da moral. Há não muitos anos, era hábito de vários povos banharem-se em público, sem roupa alguma. Mas esse costume está rapidamente desaparecendo devido a protestos de viajantes estrangeiros.
À primeira vista, a virtude parece ser uma virtude tão absoluta e indivisível quanto, digamos, a honestidade. Na realidade, porém, a decência apresenta uma variedade de formas que dependem de fatores divergentes, como idade, hábitos, costumes, leis, época, clima, hora do dia (já imaginaram um biquíni num baile de gala?) e outros. Cada fator traz um significado adicional que desafia uma interpretação diferente.
Assim, são vagos e confusos os limites da moral, que só pode ser julgada de acordo com a sua latitude geográfica e histórica. E, mesmo assim, o julgamento é sempre precário…
Clarice Lispector – Escritora, em Correio Feminino. Organização Maria Aparecida Nunes. Editora Rocco, 1977.
Saiba mais sobre a escritora Clarice Lispector:
Escritora brasileira (por naturalização), pernambucana (por autodeclararão), nascida na Ucrânia, em 1920. Escreveu romances, contos e ensaios, em sua maioria sobre cenas cotidianas simples e momentos leves do dia-a-dia.
Chegou ao Brasil em 1922, fugida da Guerra Civil Russa, com dois anos de idade. Depois de um breve período em Maceió, a família de Clarice mudou para Recife, onde viveu até os 14 anos de idade. Daí, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou Direito, trabalhou como tradutora e se consagrou como escritora e jornalista.
Perto do coração selvagem foi seu livro de estreia. A hora da estrela e Um sonho de vida foram seus últimos livros publicados.
Clarice partiu desse mundo em 1977, no Rio de Janeiro, de um câncer, um dia antes de completar 57 anos.
FRASES DE CLARICE LISPECTOR
“Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho”.
“Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”.
“Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso. E que essa tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada porque metade de mim é o que penso mas a outra metade é vulcão.”
“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.