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Elza Soares: A voz rouca do morro ainda encanta

Elza Soares: A voz rouca do morro ainda encanta

Naquele tempo, os programas de auditório ainda eram no rádio e os animadores, em geral, tinham alto gabarito cultural. Um deles era o compositor Ary Barroso (“Aquarela do Brasil”), que apresentava o “Calouros em Desfile”, na Rádio Tupy do Rio de Janeiro. Tinha enorme audiência.

Corria o ano de 1952. Numa bela tarde de domingo, uma menina de uns 15 anos se candidatou pra cantar. Toda desgrenhada, malvestida, cabelos revoltos, despenteados, provocou risos da plateia. Ary entrou no clima e, em tom irônico, perguntou à candidata:

– De que você é, minha jovem?

Ela respondeu:

– Do mesmo que o do senhor, seu Ary…

– E que planeta é o meu?, insistiu o apresentador.

E ela, de pronto, respondeu:

– Do planeta fome, seu Ary!

A plateia silenciou e o animador, agora em tom sério, pediu que ela cantasse. Já nos primeiros acordes, a escolhida parecia ter sido encomendada pra voz estridente e rouca da menina. E o auditório aplaudiu de pé.

A música era “Lama”, de Aylce Chaves e Paulo Marques, que na época fazia sucesso na voz de Linda Rodrigues e depois foi regravada por outras grandes intérpretes, como Clara Nunes e Bethânia. Mas ficou marcada mesmo, na história da música brasileira, como a composição que deu início à carreira de Elza da Conceição Soares, ou Elza Soares, como todos a conhecem, 80 anos (23 de junho), ainda fazendo shows mundo afora.

No Exterior

Sua voz inconfundível e composições fortes são marcas de uma carreira que perpassa todas as fases da música canarinha desde a década de 1950. Embora identificada com samba autêntico dos morros cariocas, seu primeiro sucesso foi “Se acaso Você Chegasse”, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, em disco gravado pela Odeon, em 1960.

Sem conhecer nada do que se produzia nos meios musicais dos Estados Unidos, seu estilo sincopado, um balanço muito próprio dela, e a impostação da voz tinham algo que a identificava com o jazz. Isto a aproximou da Bossa-Nova, gênero musical brasileiro marcante naquele período. Tanto que seu segundo disco, lançado em 1961, tem o nome de “A Bossa Negra”, em que ela esbanja vocalizações que imitam instrumentos musicais, em solfejos sem letras.

No ano seguinte, Elza Soares fez parte da comitiva de artistas brasileiros que representaram o País na Copa do Mundo de Futebol do Chile, em que o Brasil foi campeão. Lá, ela conheceu pessoalmente Louis Armstrong, o símbolo maior do jazz, mas foi ele quem se disse encantado com a intérprete tupiniquim.

“Queria levá-la embora pros Estados Unidos, mas ela não quer ir”, disse. O  fato é que, a partir dali, seu trabalho passou a ser admirado no mundo inteiro. Este prestígio foi confirmado quatro décadas depois, quando a respeitada BBC de Londres a classificou como “A Cantora do Milênio”, em programa especial que marcou a entrada do ano 2000. Coroava, assim, uma carreira de presença permanente nos meios musicais, mas que ainda teria muito caminho pela frente, segundo registros da mídia, na época.

Seu último disco foi lançado em 2015, com músicas inéditas, compostas por José Miguel Wisnik, Rômulo Fróes e Celso Sim, com arranjos primorosos, bem ao seu estilo, e o título de “A Mulher do Fim do Mundo”. As letras falam de temas que Elza sempre valorizou, como , negritude, doméstica e sexualidade. Muito premiado e elogiado pela crítica, esse álbum serve de lastro a novas apresentações da cantora no Brasil e no exterior.

Em 2016, Elza participou da abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, interpretando “O Canto de Ossanha”, clássico de Baden Powel e Vinícius de Morais, de 1966. E no momento faz nova revoada de apresentações em vários estados e no exterior, alguns deles em Portugal.

Guerreira

Sempre sorridente, bem-disposta, vestindo trajes elegantes, coloridos e brilhantes, Elza Soares tem uma vida repleta de sucessos, mas com muitos dissabores também. Em qualquer situação, contudo, ela é a mesma guerreira, valorizando sua arte.

Ela nasceu na de Moça Bonita, em Padre Miguel, hoje Vila Vintém, subúrbio do Rio de Janeiro. Seu pai era operário da construção civil e sua mãe lavadeira de roupas dos outros, que enfrentavam dificuldades pra criar os seis filhos que puseram no mundo.

Mesmo assim, Elza estudava e brincava com as pipas e piões da meninada pobre e brigava até com os meninos, de igual pra igual. Mas cantar fazia parte daquela vida. “Eu cantava feito uma cigarra, o tempo todo”, relembra ela, sempre que fala daqueles tempos. Mas a foi interrompida aos 12 anos, quando seu pai a obrigou a se casar com Lourdes Antônio Soares e ela engravidou e teve um filho um ano depois. Mas a morreu logo em seguida.

Ela engravidou novamente e teve outro filho, que era bebê quando ela se apresentou no programa de Ary Barroso, contra a vontade do marido e do pai. O dinheiro que ganhou por cantar no programa ela gastou com remédios pro menino, também muito frágil e doentio, mas ele não resistiu.

Com o marido muito doente, vítima de uma tuberculose quase crônica, ela era forçada a trabalhar fora. Passou vários anos como faxineira, lavadeira e operária de uma fábrica de sabão e encarando uma gravidez atrás da outra. De modo que, quando ele morreu, ela estava com 21 anos e tinha cinco filhos pra criar. No entanto, seguiu em frente.

As oportunidades na música foram surgindo naturalmente, graças a seu talento nato. Após passar pelo crivo da academia do Joaquim Negli, foi contratada pela Orquestra de Bailes Garan, o que fez com se tornasse conhecida, inserida no mercado, digamos. E logo passou a fazer parte dos quadros permanentes do Teatro João Caetano, a coqueluche de então.

Em 1958, Elza fez longa temporada na Argentina, no musical “Jou-Jou-Frou-Frou”, que rodou o país por mais de seis meses. De volta ao Brasil, o compositor Moreira da Silva a levou pra Rádio Tupy, onde ela conheceu Sílvia Teles e Aloysio de Oliveira, que viabilizaram a gravação de seu primeiro disco, amplificando os horizontes de sua carreira.

Garrincha

Durante a Copa do Chile, Elza foi o maior destaque entre os artistas brasileiros que lá se apresentaram. Mas no campo, no trato com a bola, o grande destaque foi Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, a “alegria do povo”, como diziam os narradores esportivos, especialmente após a contusão que tirou Pelé dos gramados.

Coincidência ou não, aquele evento esportivo é apontado por biógrafos como o momento em que os dois, Elza e Garrincha, iniciaram pra valer um relacionamento amoroso prolongado. Em verdade, eles se conheceram um pouco antes, ainda nos preparativos da Copa, mas foi ali que ficou explícito.

No começo, foi tumultuado e sofrido, principalmente por conta do preconceito da mídia, que a acusava de estar destruindo o casamento do grande craque. Ele era casado com Nair dos Santos, sua amiga de infância, e com ela teve oito filhos. Um casamento sólido, segundo se dizia. Elza chegou a ser bastante hostilizada em público por essa razão.

Garrincha separou-se de Nair e passou a viver com Elza, o que era um escândalo, já que a legislação de então não contemplava uma nova união legal. No entanto, em 1966, eles se aproveitaram de uma brecha na lei e se casaram formalmente na embaixada da Bolívia, e viveram juntos até 1982, um ano antes da morte do craque.

Com apoio da opinião pública, que se ajustou aos novos tempos, formaram um casal muito feliz, admirado. Viveram dois anos na Itália, que serviu de base a dezenas de apresentações da cantora por países europeus.

Na volta ao Brasil, em 1972, Elza foi a atração do Carnaval da Bahia, arrastando uma multidão atrás do trio-elétrico em que desfilou e exaltou a figura de seu companheiro.

Contudo, Garrincha se embrenhou no alcoolismo e entrou em decadência como esportista. Nesse período, Elza chegou a pedir a donos de bares conhecidos que não vendessem bebida a ele, mas em vão.

Assim, por força das circunstâncias, ela se contrapunha a uma de suas composições mais famosas, dentre as cerca de uma centena que compôs, sozinha ou em parceria com alguém. É a música “Eu Bebo Sim”, cujo refrão diz “Eu bebo sim/Estou vivendo/Tem gente que não bebe/E está morrendo”.

Ecletismo

O ecletismo é uma marca registrada da carreira de Elza Soares. Ele sempre se relacionou com o que de melhor havia em cada fase de sua carreira. Já gravou músicas dos autores mais diversos e participou de espetáculos ou programas de TV com gente dos mais variados matizes, do samba ao rock, rap ou forró.

E que continue assim por muitos e muitos anos ainda.

– Jornalista. Fundador da Revista Xapuri. Encantado em 14/07/2021. Matéria publicada originalmente em 21/06/2017.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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