O projeto Escola sem Partido pode ter sido soterrado, pelo menos nas aparências, mas outro tipo de ensino público, também terrível, irá vigorar já em 2018 – o da escola sem dinheiro. É o que se deduz dos drásticos cortes de recursos da área da Educação neste ano, previstos na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), proposta pelo governo e aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro passado, e em outras medidas governamentais.
A parte destinada a investimentos (ampliação e construção de unidades, aquisição de equipamentos e material escolar etc.) sofreu uma queda de 32% em relação aos valores reais de 2017. Caiu de R$ 6,6 bilhões no ano passado pra pouco mais de R$ 4,5 bilhões em 2018, ou seja, cortes que somam R$ 2,1 bilhões, algo de forte impacto, que frustra até as expectativas mais modestas do setor.
Em vez de pelo menos acompanhar a inflação, o volume geral de recursos destinados à Educação em 2018 fez foi decair. Serão 7% a menos do que no exercício passado. Isso inclui as verbas de custeio da rede pública de ensino fundamental e médio, mas especialmente as universidades, segundo cálculos de instituições ligadas ao ensino superior. O total destinado ao próprio Ministério da Educação (MEC), o funcionamento da máquina, se manteve estável, em R$ 44 bilhões.
Medidas anunciadas de modo fragmentado nos dão conta de que programas específicos, de bolsas de estudo e de financiamentos, por exemplo, também estão sendo afetados. Programas de cunho social como o Universidade Para Todos (ProUni) e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) estão praticamente extintos, segundo a Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
Esses programas foram mecanismos criados pra facilitar o acesso da nova classe média que surgia no país, suprindo a deficiência de vagas em universidades e escolas públicas. Com as recentes mudanças nos programas de geração de renda e nas condições econômicas do país, cresceu rapidamente o número de inadimplentes entre os usuários desses recursos, mudando também as regras do financiamento.
Na complexidade do sistema educacional brasileiro, é certo que quando há medidas, em especial cortes de verbas, no plano federal, elas irão se refletir nas esferas estadual e municipal. Mesmo tendo-se em conta que os governos locais têm certa alça de voo pra tomarem iniciativas adequadas a cada local e apresentem acertos e defeitos particulares de gestão.
CORTES E REGULAGENS
Quanto à Escola sem Partido, tenhamos a certeza de que o propósito continua vivo. Está na ideia de uma educação voltada à formação técnica específica, geradora de mão de obra, em que se evitam os conteúdos humanistas e o pensamento crítico, formadores de cidadãos. Em verdade, ela está sendo colocada em prática por três caminhos básicos, que são a orientação das direções das escolas, a formação direcionada de professores e a produção do livro didático.
A nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que determina o que deve ser ensinado na educação infantil e fundamental, foi lançada em 20 de dezembro pelo presidente Michel Temer. Ela fixa linhas gerais e será posta em prática progressivamente, ano após ano, na medida em que for sendo regulamentada, de modo que ainda não se sabe ao certo todo seu alcance.
Ainda em 2016, havia sido aprovada pelo Congresso a emenda constitucional conhecida como PEC do Teto, que fixa um limite máximo aos gastos anuais do governo federal até 2036, com forte impacto sobre a área social.
Já a partir de 2018, o teto da Educação, que era de 0,9% do Produto Interno Bruto (PIB) anual, cai pra 0,7%, o que significa um arrocho com respaldo constitucional. A medida altera até mesmo o Plano Nacional de Educação, também aprovado há dois anos, que estabelecia como meta gastar 10% do PIB com Educação.
Algo parecido vem ocorrendo com os royalties do Pré-sal, que não estão chegando ao setor Educação. Por decisão do governo federal de 2013, as empresas concessionárias da exploração de petróleo e gás natural na faixa oceânica pagariam 15% dos lucros à União, dois terços dos quais seriam destinados a projetos educacionais.
Contudo, sob a alegação de mudança no cenário internacional, com queda no preço do óleo, o volume de royalties também teria diminuído, o fato é que eles não têm chegado ao destino. Em verdade, ao cair no caixa da União, o dinheiro pago pelas petroleiras ganha outras destinações.
São iniciativas que demonstram a intenção do governo de ir matando a escola pública e gratuita aos poucos, por asfixia financeira. De outro lado, vai aumentando o volume de benefícios à rede privada de ensino, da pré-escola à pós-graduação, e esta pode ensinar o que bem entender, da forma que quiser.
Assim, torna-se mais vivo do que nunca o debate sobre o ensino público e gratuito, a muito custo implantado no Brasil na primeira metade do século passado, como resultado de um movimento liderado por Anísio Teixeira. Ele se baseou nos exemplos daquela época na Europa e nos Estados Unidos, como única forma de assegurar o direito à educação às camadas mais pobres da sociedade.
“Um regime socialmente justo é alicerçado na educação. Se através de impostos é possível uma melhor distribuição de renda, por meio da educação pública e gratuita se promove a distribuição de conhecimento”, repetiu Anísio muitas vezes em seus escritos.
ELITES MEDROSAS
É impressionante o tanto que as elites conservadoras do Brasil têm medo, verdadeiro pavor da Educação, de um povo educado. Preferem que os e as zés-manés fiquem no obscurantismo de modo passivo e se sujeitem a condições degradantes de trabalho e de vida. Afinal, uma pessoa letrada sabe mais sobre tudo, inclusive sobre direitos trabalhistas.
O caso do próprio Anísio Spínola Teixeira é exemplar. Ele nasceu em Caetité, no sertão da Bahia, em 1900, filho de famílias tradicionais. Estudou em colégio católico, de padres jesuítas, e chegou a se enveredar pela vida religiosa. Mas foi impedido pelo pai, médico e chefe político local, que via no filho um sucessor civil.
Cursou Direito na Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ), se distanciando dos jesuítas. Mesmo assim, era tido como uma eminência da congregação e chegou a ser levado a Roma, pra uma conversa com o papa, em 1925. Aproveitou a viagem e visitou vários países, buscando saber como era a Educação em cada um deles.
No entanto, ao amadurecer ainda mais suas ideias sobre o ensino público, ele passou a ver na própria Igreja o uso da Educação como fator de exclusão. Foi, então, cursar pós-graduação nos Estados Unidos, onde se aproximou de pensadores da área e chegou a traduzir ao português dois livros do pedagogo e filósofo John Dewey, sobre a Pedagogia naquele país.
Durante o Estado Novo, o período autoritário da era Getúlio Vargas (1937-1945), foi perseguido, mas ressurgiu em 1945, exercendo vários cargos públicos nesta área. E foi indo até receber a tarefa de estruturar a Universidade de Brasília (UnB), da qual foi o primeiro reitor, em 1963, mas deixou o cargo no ano seguinte, por imposição do regime militar que se implantou após o golpe de 1964, e foi morar novamente nos Estados Unidos.
Voltou ao Brasil em 1966 e atuou em organismos internacionais até iniciar negociações pra ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1971. Após uma reunião na sede da entidade no Rio, em 11 de março, ele desapareceu. Três dias depois, foi encontrado morto no elevador do prédio onde morava, supostamente vítima de algum acidente.
Contudo, segundo o político e escritor Luiz Viana Filho, então membro da ABL, ele havia sido preso por militares e levado a um quartel da Aeronáutica, numa operação comandada pelo brigadeiro João Paulo Burnier, conhecido pela sua truculência. Desaparecia, assim, o pai da escola pública e gratuita no país.
PRIVATISMO
Um dos principais colaboradores de Anísio desde a década de 1950, o antropólogo Darcy Ribeiro, participou da organização da UnB, foi ministro da Educação e chefe da Casa Civil nos governos dos presidentes Jânio Quadros e João Goulart. Mas também foi posto pra correr em 1964 e seguiu rumo ao exílio no Chile e Uruguai, onde permaneceu até 1976, quando voltou ao torrão tupiniquim debilitado por um câncer.
Ele não se cansava de dizer que não entendia por que era tratada como crime grave por aqui a defesa do ensino público, algo tão comum nos países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos.
Tampouco compreendia a volúpia com que os donos de escolas tratavam a educação como qualquer mercadoria, vendida ao bel-prazer. Produto de luxo, que a grande maioria da população não podia comprar.
Darcy explicava desta forma a dicotomia entre escola pública e privada (“O Brasil como problema”, Editora UnB, 2010):
“Escola pública versus privatismo, que condena o povo à ignorância. A escola privada pode e deve existir, como um direito de cada um de montar a escola com a coloração que quiser, mas o problema é o setor privado meter a mão no dinheiro público pra fazer a escola que quiser, voltada aos seus interesses…”
A Constituição Federal de 1988, em vigor, diz que o ensino deve ser ministrado de acordo com o princípio “de pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”, na “coexistência de instituições públicas e privadas”. Mas estabelece, também, que os recursos públicos podem ser “destinados às modalidades não lucrativas da iniciativa privada em educação” (Art. 209).
Parte, contudo, do princípio básico de que a educação “é um direito de todos e um dever do Estado e da família”. Se a família não tem condições e o Estado não pode, em algumas circunstâncias, cabe a este terceirizar a tarefa. Ou seja, o governo paga alguma entidade ou empresa pra fazer aquilo que ele não pode ou não quer fazer.
Mesmo ações criadas com objetivos sociais, como o ProUni, tornaram pequenas faculdades em poderosos grupos educacionais. E surgiu grande quantidade de cursos que antes eram mais restritos, como os da área de Ciências da Saúde, inclusive de Medicina, e de Ciências Jurídicas, especialmente o de Direito. As mensalidades são altas, de modo geral, e a qualidade frequentemente colocada em dúvida pelas entidades profissionais desses setores.
Segundo dados do MEC, o país tem hoje 298 instituições públicas de ensino superior e 2066 privadas, grande parte delas em cidades do interior, nas 27 unidades da federação. Juntas elas oferecem 33.500 cursos de graduação.
O interesse do setor privado é grande, também, na outra ponta da cadeia educacional, a das creches. Segundo o último censo escolar anual do Inep-MEC, das 64,5 mil dessas unidades existentes no Brasil, 41% são privadas. O restante, 59%, são tocadas pelos governos municipais. Na educação básica (até o ensino médio), a participação do setor privado é de 21,5% do total de escolas existentes no país (186 mil unidades).
Segundo estudo recente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil é um dos países que menos gastam com alunos do ensino fundamental e médio, Por ano, o Brasil gasta 3,8 mil dólares (R$ 11,7 mil) por criança do primeiro ciclo do ensino fundamental (até a 5ª série).
Isso é menos da metade do que se gasta na Europa e fica atrás de outros países considerados emergentes, como Argentina e África do Sul. A pesquisa abarca os 35 países europeus afiliados à entidade, mais 10 outras nações.
ANALFABETISMO
O Brasil ainda tem 11,8 milhões de analfabetos, conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada às vésperas do Natal de 2017 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa taxa se mantém estável há três anos, em desacordo com o Plano Nacional de Educação (PNE), de 2014, que previa a erradicação do analfabetismo em 7 anos. E é considerada muito elevada por qualquer parâmetro que se analise.
São vários os fatores apontados por estudiosos do assunto como causas desse índice. Por exemplo: a econômica, porque a vítima tem que trabalhar desde muito cedo; a de mobilidade, pelas distâncias e acessibilidade das escolas; e a cultural, por ela ser levada a crer que não tem capacidade, que não vai dar conta de ler e escrever.
No entanto, há evidências suficientes que nos dão conta de que a causa principal está no método de ensino. Muitas vezes distante da realidade do aluno, priorizando a decoreba em lugar da verdadeira compreensão, com vocabulário exótico, a forma de ensinar torna muito difícil o aprendizado, afastando os estudantes.
Dados do MEC revelam o alto índice de abandono da escola atualmente no país. Em média, 8% dos estudantes que se matriculam no ensino fundamental e 13% dos que iniciam o ensino médio desistem da escola sem completar o ensino básico. Isso dá um total de mais de 3 milhões de crianças e jovens, todos os anos.
É bem verdade que, segundo o portal do Ministério na Internet, ‘a porcentagem de jovens que concluem o ensino médio na idade certa – até os 17 anos – aumentou em 10 anos, passando de 5%, em 2004, para 19%, em 2014”. Revela, também, que no mesmo período houve uma série histórica, progressiva, de queda na evasão escolar.
Uma vez mais, nos deparamos com um tema em que o Brasil tem tradição, tem história e personagem. O educador Paulo Freire é reconhecido mundialmente como um dos maiores pensadores do século XX, recebeu títulos de Doutor Honoris Causa de 29 universidades da Europa e das Américas e é, por lei, o Patrono da Educação Brasileira. “Pedagogia do Oprimido”, seu livro mais conhecido, já foi editado em mais de 20 diferentes idiomas.
Mais uma vez, também, foi vítima de perseguição das elites retrógradas que temos e teve que morar no exílio durante a ditadura militar. A grosso modo, sua teoria, aceita e usada mundo afora, é o inverso da Escola sem Partido apregoada por aqui, pois condena o ensino impositivo, de pura transferência de informações escolhidas ao critério de quem repassa. “A alfabetização é um ato de conhecimento, de criação e não de memorização mecânica”, dizia ele.
Freire começou justamente com a alfabetização de adultos e mudou o conceito de Educação de um modo geral. Seu primeiro trabalho nesta área foi como funcionário do Serviço Social da Indústria (SESI) em Recife, Pernambuco, estado onde nasceu, em 1921, e cresceu. No início dos anos 1960, foi coordenador do Programa Nacional de Alfabetização, do governo federal.
BRUMAS
Ao chegarem à escola após as férias, neste início de novo ano, os estudantes já deverão sentir um clima um tanto diferente. Várias pessoas que vivem o dia a dia do ambiente escolar, professores e servidores, atestam que as mudanças já foram iniciadas em 2016, talvez por influência das mudanças nos gabinetes de Brasília.
Isso, no que diz respeito às escolas públicas, inclusive as de nível superior, onde a própria redução de recursos financeiros, que nunca foram muito fartos, já se faz sentir de modo acentuado. Várias universidades federais, por exemplo, tiveram dificuldades pra fazer os vestibulares no final do ano e nos laboratórios e pesquisas de campo o sequeiro já deu sua cara, como sinal de alerta ao que virá adiante.
No primeiro dia útil de 2018, 2 de janeiro, o presidente Michel Temer reafirmou sua disposição de arrocho ao sancionar a lei que institui o Orçamento Geral da União deste ano. Seu conteúdo já havia sido fartamente debatido no governo e no Congresso, mas, contrariando a tradição, em vez de usar apenas a caneta pra ratificar a previsão de receitas e despesas, ele usou também a tesoura.
Em todo o calhamaço, ele vetou apenas um ponto, que era um aporte extra de R$ 1,5 bilhão no Fundo de Manutenção do Ensino Básico. Era um recurso pra assegurar principalmente o funcionamento da rede de ensino fundamental em todo o país, cuja gestão, em sua quase totalidade, está a cargo das prefeituras municipais.
O que se avista são brumas.