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Shane Kaya: Os pássaros azuis voaram...

SHANE KAYA: OS PÁSSAROS AZUIS VOARAM…

Shane Kaya: Os pássaros azuis voaram…

e eu voei com eles, de novo, no pré-lançamento do CD Xikari Niiti Shane Kaya, na festa anual da comunidade.

Por Jairo Lima  

Passou-se uma semana… Mas eu ainda estou na emanação do que foi, ao menos para mim, mais uma linda vivência em uma das muitas comunidades indígenas desse amado e inexplorado Juruá (socialmente inexplorado, para ser mais exato).

Certamente que estou me referindo à festa de pré-lançamento do CD Xikari Niiti Shane Kaya, que ‘tomou corpo e nasceu' sob a  batuta da Professora Cristiane De Bortoli (IFAC) – a quem  neste texto me refiro  como Cris – , contando com a participação do Sananga Records e, claro, da comunidade Shane Kaya. Foi certamente uma experiência gratificante para todos…

Eu já havia escrito um texto anterior sobre esta comunidade que, desde minha primeira visita lá, tomou-me de assalto, e pela qual desenvolvi os mais ternos sentimentos e, também, a ‘curiosidade' de estudar e conhecer mais sobre a estética, material e imaterial do povo Shanenawa (Povo do Passarinho Azul, em tradução livre – Shane = pássaro azul e; Nawa = Povo).

Shane Kaya: Os pássaros azuis voaram...

Chegar lá, a partir de Cruzeiro do Sul não deixa de ser uma aventura, pois, cruzar esta BR 364 até o município de Feijó, onde se localiza a Terra Indígena Katukina/, onde a aldeia fica, é, sem dúvida um verdadeiro exercício de paciência, coragem, ânimo e um bom bocado de energia, pois, infelizmente, essa artéria que atravessa o de uma ponta a outra, carece de constantes cuidados e, desde sua abertura nos anos 90, nunca esteve totalmente terminada.

Pra ser sincero, acho esta rodovia um ‘ser mutante', pois é incrível como esta se transforma em poucos dias. Saímos em um pequeno cortejo de carros, ansiosos pela chegada, mas cientes do mundão que teríamos que atravessar.

Em sua travessia, com o som do carro dando a cadência dos pensamentos, eu observava os vilarejos e casas ao longo da sinuosa rodovia. Observava algumas pessoas que, por vezes, trafegavam sob o sol escaldante que pintava de diferentes cores o ambiente.

Ficava imaginando o dia-a-dia dessa galera toda, seus anseios, sonhos, ambições… e essa curiosidade só aumentava quando, vez ou outra, Cris – para os que não sabem, minha esposa –  contava algum detalhes das casas ou vilarejos que passávamos. Conhecimento este adquirido nas inúmeras viagens realizadas entre Tarauacá e Cruzeiro do Sul ao longo dos últimos quatro anos.

Confesso que após umas cinco horas de viagem, com a poeira subindo e o sol torrando a testa da gente, a coisa fica um bocado enfadonha mas… fazer o quê… eu queria mesmo era chegar.

Chegando em Feijó à noite, não foi possível ir direto pra aldeia, e decidimos pernoitar por Feijó, num simples, porém confortável hotel, com o insinuante nome de Açaí,  localizado logo na entrada da cidade (indico). Somente no dia seguinte, após o quebra-jejum seguimos ao nosso destino.

Como já sabia, e também já havia presenciado a cena inúmeras vezes em muitas comunidades em dia de festa, a aldeia toda estava tomada pela dinâmica típica: carros chegando, pessoas saindo de suas casas todas pintadas e preparadas para a festa, cheiro de atsa (macaxeira) cozinhando, o som inconfundível de gargalhadas e falas tanto em português quanto em língua indígena…

De pronto fomos recebidos com muita alegria e carinho, sentimento este construído ao longo de muitos anos. Abracei e sorri a cada encontro com rostos conhecidos e sorridentes que me chamavam pelo nome que recebi nessa comunidade: Shaneyhu.

Shane Kaya: Os pássaros azuis voaram...

Assim como eu, todos os ‘' de nosso cortejo tiveram uma recepção muito boa e logo me dei conta de que meu filho já não estava ao meu lado, pois, como pude ver ao longe, este já estava correndo ‘morro abaixo' (as casas na aldeia ficam sobre pequenos morros, com um ‘terreiro' central na parte baixa, entre estes morros), já misturado com as crianças da aldeia.

Ele estava muito feliz e não deixava de falar para os amigos que conosco foram para a festa, que ele tinha um ‘irmão' na aldeia, se referindo a um dos músicos da comunidade, Yawakumã, figura sorridente e muito querida por todos que, claro, ao ver meu filhote, logo fez festa, abraçando-o e chamando-o de irmão.

Vamos chegando todos, para darmos início à nossa festa!! – A voz da Edina Shanenawa avisava nos auto falantes instalados ao lado de um vistoso palco, por onde os artistas da casa e os visitantes se apresentariam ao longo das próximas 24 horas.

Taí uma informação curiosa: apesar de ser a festa de pré-lançamento do CD, esta não ocorreu em uma data dedicada somente à mesma, pois escolheu-se o dia da festa anual da comunidade para este evento. Evento este que, ao contrário das demais comunidades indígenas do Juruá, dura somente exatas vinte e quatro horas! – Pois é, tudo o que tiver de rolar na festa deve ocorrer dentro deste período. Achei isso bem interessante, pois, certamente, tem uma dinâmica singular e intensa. Dinâmica essa que pude comprovar.

Som de fogos indicavam a chegada de visitantes que, como me informaram, chegariam no decorrer do dia e da noite, de acordo com as atividades previstas, tendo seu encerramento, logicamente, com um ritual de Uni () que duraria até o sol raiar.

E assim foram chegando os ‘parentes' das demais aldeias da Terra Indígena, tanto do Povo Shanenawa quanto do Povo , além de alguns visitantes de mais distantes, como Puyanawa e Madija.

E assim começou a festança…

Shane Kaya: Os pássaros azuis voaram...

Músicas embalavam as danças que levantavam muita poeira no terreiro, sendo necessário um diligente ‘regador oficial' que circulava harmoniosamente entre as rodas e coreografias com uma mangueira na mão, molhando a terra. Interessante que isso não atrapalhava a dança, nem sequer desanimava seus participantes, que não paravam.

Maitês (cocares) encimando em corpos brilhantes de suor, com pinturas em urucum e jenipapo, misturavam-se em coreografias que, como já descrevi em texto anterior, possuíam muitas singularidades em relação às danças tradicionais que estamos acostumados a ver: “É uma ‘releitura/ressignificação' da estética cultural, espiritual e material deste Povo” – Foi um dos pontos de conversa e reflexão que tive semanas antes da festa, em minha casa, num agradável e instrutivo repasto que tive com o Prof. Domingos Bueno, quando passamos o dia trocando impressões sobre o assunto.

Apesar de já estarem há mais de cem anos em contato com a chamada ‘sociedade envolvente' dos nawa os Shanenawa, assim como outros povos aqui do Juruá, como os Shawãdawa e Madija, possuem pouquíssimas referências que possam ser consultadas. Experimente: faça uma busca na internet sobre estes povos e encontrará pouca coisa que realmente possa ser chamada de ‘referência'.

Mas voltando à festa…

Se você está acostumado (ou se imagina) com vivências entre os indígenas como algo ‘zen-gourmet', com toda a glamourização do ‘sagrado' como se estes fossem seres de outro planeta, realmente, participar de uma festa entre os Shanenawa não é para você, brother, pois, creia-me: a coisa é intensa. A velocidade da festividade é algo surreal, sem tempo para descanso. Passamos de um dia intenso de danças e brincadeiras para uma noite intensa de uni (Ayahuasca) e cantoria.

  

Esse movimento todo era alimentado, durante o dia pelo rosado e muito consumido matxu (caiçuma fermentada), e a noite pelo vinho cor de caramelo, o Uni. E a cantoria era ininterrupta, com grupos de cantores, de diferentes aldeias e povos se revezando durante as 24 horas do evento.

Barracas, redes e muitas mulheres e crianças rodeavam todo o espaço principal da festa.

Essa foi minha primeira festa deste porte junto aos Shanenawa e confesso: não dei conta. Lá pelas 00:00, após a pressão do Uni ‘baixar', fui esgueirando-me até encontrar uma rede ‘esquecida', onde pude sentar e apreciar meu cachimbo, olhando o movimento e captando as percepções energéticas e magnéticas do ambiente ao redor. Depois, já pela madrugada, discretamente fui vencendo a distância entre o ‘terreiro' e minha convidativa barraca, sob o céu estrelado e lindo que fazia – com direito a uma enorme lua cheia – aguardava-me solicitamente.

Não sei se dormi, com certeza não, pois fiquei ouvindo os sons da festa, que alternavam-se entre vozes e instrumentos que embalavam-me em um torpor que, se por um lado não ‘dormi mesmo', por outro, foi suficiente para descansar.

E assim raiou o dia, com o movimento frenético de pessoas sorridentes indo em carros, caminhões, motos ou andando para suas casas e aldeias. Eu, assim como os que comigo estavam, fomos à cozinha da casa da querida Cacique Edna Shanenawa, para um delicioso e revigorante repasto matutino, onde nossa anfitriã, nitidamente cansada, nos fez as honras até nossa partida, poucas horas depois.

E foi isso… um dia de revoada intensa com esses pássaros azuis que, a cada dia que tenho contato com estes, encantam-me cada vez mais, levando-me a sensação de leveza de espírito  que poucas vezes experimentei nos últimos anos.

As palavras aqui não fazem jus à beleza do que foi esta festa, com os saitês  (canções tradicionais) lindos e cheios de harmonia, contribuindo com essa ‘sinfonia' maravilhosa, simbolizada por esta interação tanto entre os povos quanto com a natureza e… despedindo-me, só tenho a dizer: Shavá! Shavá!*

Shane Kaya: Os pássaros azuis voaram...

 

Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, na região do Juruá, Acre.

Notas do autor

* Shavá! é uma saudação comum entre os Shanenawa.

Todas as imagens são de autoria da fotógrafa (e querida amiga) Alessandra Melo.


 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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