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SIMÓN BOLÍVAR NOS SENDEIROS DA MÚSICA ANDINA

SIMÓN BOLÍVAR NOS SENDEIROS DA MÚSICA ANDINA

Simón Bolívar nos sendeiros da música andina

Adiós pueblo de Ayacucho, perlaschallay. Ya me voy, ya me estoy yendo, perlaschallay. Ciertas malas voluntades, perlaschallay, hacen que yo me retire, perlaschallay. (Huayno. Autor Anônimo)

Por José Bessa Freire – TaQuiPraTi 

Simón Bolivar o Libertador, venezuelano e líder da independência de vários países hispano-americanos, viajava em junho de 1824 no seu cavalo Palomo por um sendeiro andino do Departamento de Ancash, Peru.

No meio do caminho, se deparou com uma festa local: casais de com ponchos e saias coloridas cantavam em quéchua um wayno (ou huayno) sob o som talvez de um charango e bailavam graciosamente com lenços brancos girando no ar.

Deslumbrado, perguntou:

– Que música tão linda é essa?

A resposta foi dada agora, dois séculos depois, por Ladislao Landa Vásquez no livro “Los Caminos de la Música”, que discute as mudanças ao longo do tempo dos gêneros do cancioneiro andino e dos instrumentos musicais. O Peru profundo emerge, quando o autor registra os vários estilos de wayno – “o gênero mais representativo do país” e destaca o charango – “o instrumento mais querido de indígenas e mestiços”, citando o escritor José Maria Arguedas, que sabe tudo.  

Quem sabe pouco sobre música andina é o Brasil. Nos anos 1970, alguns exilados brasileiros fomos ao Coliseu Nacional, em Lima, para um espetáculo folclórico de música e dança. Lá, um economista paulistano que fazia parte do grupo, com ouvido pobre e mente limitada. manifestou sentimento oposto ao do Bolívar. Ouviu um wayno cantado não lembro mais se pela Pastorita Huaracina ou pela Flor Pucarina e decretou peremptoriamente:  

– Isso não é música.

Seu etnocentrismo não permitiu, coitado, que apreciasse o som dos Andes. Mas a maioria dos brasileiros no exílio soubemos curti-lo, incluindo a antropóloga Berta Ribeiro, também exilada, que ficou escandalizada quando soube dessa história.  

Lendo Landa

Li o livro de Landa, interrompendo a leitura dezenas de vezes para escutar no You Tube cada música por ele citada. Antes de discorrer sobre o seu conteúdo, convém dizer quem é o autor, qual a sua ligação com o Brasil e como organizou sua pesquisa.

Doutor pela de (2001) e professor, desde 2017, da Universidade Federal de Integração Latino-Americana (UNILA) em Foz do Iguaçu (PR), Landa nasceu em Coracora, distrito da Província de Parinacochas, Departamento de Ayacucho – berço do “charango laminado” e dos mais ardorosos charanguistas do Peru” como lembrou no séc. XIX Ricardo Palma, autor de Tradiciones Peruanas.

Desde os dez anos Landa toca guitarra – sua “língua materna em música”, mas logo se tornou “bilingue” com o charango como segunda língua, que hoje é o seu xodó.

Com o irmão Andrés Landa e outros dois músicos, ele formou o grupo Yawarmayu, que durante 40 anos tocou em vários países, onde atuou também como solista. Tivemos o privilégio de ouvi-lo em um recital caseiro e informal durante o I Colóquio de Etnohistória e na América Latina realizado no final de junho, em Foz do Iguaçu.

Será que o charango de Landa foi afinado pela Mãe D´Água nas cataratas do Iguaçu para onde ele foi dirigindo seu intrépido fusquinha? Reza a andina que os músicos levam aos rios seus instrumentos musicais para serem afinados por sereias que habitam suas águas.

Quem ouve os acordes harmoniosos de Landa, logo identifica no seu dó-ré-mi os dedos de um ser mitológico. Não seria exagerado dizer dele o que Arguedas escreve em seu romance Todas las sangres sobre o personagem inspirado no famoso charanguista Jaime Guardia:

– Os olhos saudáveis ​​​​do músico brilham, afogando em luz radiante tudo o que nele é vida. Dessa luz surgem as notas límpidas de cada corda, os dedos tocam com suavidade e energia insuperáveis. De que profundezas da terra e de qual fusão do homem andino com o europeu chegam essas notas em que, chorando, o universo noturno se reinventa?  

O charango

SIMÓN BOLÍVAR NOS SENDEIROS DA MÚSICA ANDINA
Reprodução/Internet

Pesquisador do Instituto Nacional de (INC), Ladislao Landa teve papel decisivo, em 2007, quando deu parecer conclusivo para declarar o charango patrimônio nacional do Peru.

Acumulou experiências em encontros e festivais de charango, instrumento que aflora em todas as páginas do seu livro, especialmente na segunda parte, em que descreve a trajetória do charango por vários países andinos e destaca os tocadores e seus estilos.

No Brasil, o tatu peba só serviu para inspirar o cantor João do Vale na canção “Peba na pimenta”, que mistura forró com culinária.

No Peru, o tatu peludo deu som ao charango, confeccionado tradicionalmente com sua carapaça e com as cordas de tripas de bode.

Lá, seu casco produzia – imaginem – um som refinado. Acontece que este animal peludo conhecido como kirkinchu de puna entrou na lista das espécies em extinção e aí o charango passou a ser feito de madeira, com caixa acústica côncava.

– O luthier de cada região fabrica o charango a seu modo, em função de seus cantos e do tipo de afinação desejado. Escolhe e mede o tamanho, a caixa e o braço de forma diferente em cada lugar.  

É por isso que o charango de Ayacucho, que só tem quatro cordas de tripa grossa, não serve para tocar o wayno de Collao, que exige o charango de 15 cordas de aço – diz Landa, citando Arguedas. 

Os caminhos da música percorrem a criação artística, a materialidade do charango, a criatividade e as variedades musicais, além das singularidades locais de estilos e técnicas de execuções e as formas como os músicos impregnaram suas culturas musicais com esse instrumento.

O requebro da mula

Embora não existam ainda estudos para determinar a origem exata do charango, ele é “uma peça historicamente andina que, em última instância, expressa uma adaptação de instrumentos musicais europeus à cultura dos povos de Abya Yala, similar ao que ocorreu com a apropriação pelo mundo de outros instrumentos” – escreve Ladislao Landa.

Fácil de levar em viagens, o charango e os gêneros musicais que saiam de suas cordas, se espalharam por todo o Peru.

– No comercio que cobria do norte da Argentina até Lima circulavam mercadorias, instrumentos, música e dança. Nesta rota nasceram alguns gêneros musicais e danças cultivados até hoje, como a melancólica muliza, cujo nome seria herança do requebro ritmado das mulas, que transportavam em seus lombos diferentes produtos – informa Landa.

Foi dessa forma que o charango chegou a Parinacochas, terra de arrieiros, e ali adquiriu características próprias até chegar aos braços de Landa. Um capítulo do livro é dedicado à “identidade do charango parinacochano” e sua difusão nacional nos anos 1950, quando Jaime Guardia e a Lira Paucina gravaram para o selo Odeon grandes clássicos, entre outras, a canção Madrecita linda.  

Mas o autor registra também a presença de outros instrumentos na música andina: acordeon, guitarra, violino, harpa, o chinlili – cordofone de Ayacucho usado para tocar chimaychas, cujas letras costumam ser tristes – a tradicional quena, o pinkillo ou flauta, além de instrumentos de percussão como o bongó, o güiro, o cajón – este último presente no “wayno acrioulado”.

O wayno

SIMÓN BOLÍVAR NOS SENDEIROS DA MÚSICA ANDINA
Reprodução/Internet

O autor retoma o mapa das áreas musicais do país e agrupa o wayno e os demais gêneros por vertentes oriundas de diferentes espaços geográficos, cada um com suas tradições musicais, que ele denomina de “escolas”, enumerando as oito mais significativas: Cajarmaquina, Ancashina, Huanca, Cajatambina, Ayacuchana, Cusqueña, Arequipeña e Puneña.

De raiz pré-hispânica, o wayno está para a identidade peruana como o samba para a brasileira, guardando as diferenças regionais.

Landa aborda músicas com pré-colombianas, entre outras a valicha – wayno do Cusco, o yaravi de Arequipa denominado de triste na região nortetakirari de Puno, entre outros. Discute o processo de modificação do wayno na estrutura de suas melodias, especialmente em âmbito urbano como resultado das migrações da serra para a cidade de Lima.

A adequação ao mercado e à indústria cultural, a gravação de discos e a transmissão radiofônica trouxeram influências de outras músicas difundidas em Lima: a salsa do Caribe, a cumbia colombiana, o tango argentino, a rancheira e o bolero mexicano, o rock e – pasmem – até a música sertaneja e a bossa nova.

A minha geração – escreve Landa – testemunhou a ascensão deste quase gênero híbrido que poderia ser rotulado como wayno moderno-baladístico-bolerístico. Ele se refere ainda às tentativas de “rockear o andino” e considera que o wayno criollo estereotipado “perdeu o sabor andino”, não entrou na alma dos camponeses da serra e se limitou ao ambiente dos mestiços urbanos. Também o instrumento basicamente rural do mundo andino se modifica quando muda para a cidade:  

– Podemos dizer que, da mesma forma que muitas línguas foram extintas no mundo, segundo a Unesco, embora tenham deixado marcas na forma de falar de línguas dominantes, é possível que ocorra fenômeno similar com o charango ayacuchano e talvez peruano – escreve.

Mama Paulina

O livro traz breves biografias de cantoras, cantores e conjuntos musicais, que se tornaram ícones nacionais, como é o caso de Mama Paulina, que tocava charango, guitarra, acordeon e piano. Nascida na zona mineira de Pullo, apesar de cega, viajava de povoado em povoado, tocando em aniversários e festas até se mudar para Lima, onde morreu em 1968, depois de gravar discos de acetato e de participar de festivais e apresentações em coliseus. “Sua imagem impregnou a memória oral de Parinacochas” – diz Landa.

O pesquisador entrevistou músicos e cantores, transcritos como apêndice do livro. Cruzou os dados com os das fitas cassetes gravadas por camponeses e com centenas de discos de acetato e de vinil do arquivo do Centro Peruano de Estudos Sociais (CEPES), cujo acervo possui mais de 600 discos, o que lhe permitiu fazer uma breve história do disco no Peru, estudar as formas melódicas, as letras e mensagens nelas contidas, bem como identificar as influências internacionais e o fenômeno musical urbano de origem provinciana.

Esses discos fazem parte da coleção do programa radiofônico Tierra Fecunda (Ruru Allpa), transmitido na década de 1980 em . Deste acervo fazem parte três tipos de discos: música tradicional, música ritual e a gravada apenas com fins comerciais. As limitações desse material – diz Landa – residem no fato de que muitos discos não trazem datas de gravação, nem informações sobre os instrumentos usados e muito menos os nomes de músicos que executam os instrumentos.

Ele pesquisou ainda nos arquivos da Escuela Nacional Superior de Folklore José Maria Arguedas, que registrou 6.050 intérpretes e 500 grupos musicais. O resultado foi “um texto cheio de esperança, de carinho, de requinte e reflexão, mas sobretudo de Música e deve ser lido, comentado, escutado, cantado e bailado por quem, como o autor, crê que através da Música se pode conhecer a peruana atual”, como afirma Carlos Leyva no prefácio.

Traz elementos para discutir o lugar da canção peruana na música universal. Em verdade, em verdade vos digo:  a leitura do livro nos mostra que a música peruana é tão rica, diversificada e saborosa como a sua culinária. Quem morrer sem conhecê-la, não saberá o que perdeu por nunca ter fruído música “tan chusca¨, na expressão de Bolívar ao se referir à sua beleza, usando um termo venezuelano da época. Por isso, o wayno de Ancash foi rebatizado como “la chuscada”.

Referência:

Ladislao Landa Vásquez. Los Caminos de la Música. Géneros populares andinos en la segunda mitad del siglo XX. Lima – Foz do Iguaçu. Y. Carlesse. 2022. 277 pgs.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

revista 119

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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