POR QUE A FAVELA É CIDADE

Relatório Oxfam: Austericídio econômico desanda quadro de desigualdades no Brasil

Relatório Oxfam 2018: Austericídio econômico desanda quadro de desigualdades no país

Por:  Paulo Kliass

É fato amplamente sabido e reconhecido a desigualdade estrutural que sempre caracterizou a sociedade brasileira. O enfoque pode ser centrado na distribuição de renda, na distribuição do patrimônio, na distribuição da terra, na distribuição dos imóveis urbanos ou qualquer outro tipo de mensuração do fenômeno. Pouca importa o objeto avaliado, o resultado dos níveis de concentração é sempre impressionante. Trata-se de um país profundamente desigual, atributo infelizmente secular que nos acompanha ao longo da História.

Há um bom tempo que as universidades e as instituições de pesquisa se debruçam ao estudo e em busca de uma compreensão mais elaborada a respeito do tema. Como tudo nas ciências sociais, há uma permanente polêmica e muito debate a respeito das causas que estariam na base de tanta diferença e tamanha marginalização da maioria da população. Também são objeto de bastante discussão as metodologias e os índices utilizados para descrever essa realidade inquestionável.

Mas não nos iludamos, pois vivemos tempos estranhos, em que se tenta ressuscitar a própria teoria criacionista ou se questiona o fato da Terra ter sua forma arredondada. Assim, é bem possível que algum grupo saia por aí afirmando que essa coisa de desigualdade nada mais é do que outra manifestação desse “marxismo cultural” (sic) que nos domina e que a solução passa por impor a “escola sem partido” para impedir que se continue a praticar lavagem cerebral em nossas escolas. Pobres crianças que crescem deformadas por conta desses professores diabólicos e vermelhinhos.

Oxfam

Relatório Oxfam: quadro piorou

Mas o fato é que acaba de ser divulgado mais um importante relatório abordando o tema das desigualdades em nossas terras. O documento “País estagnado – Um retrato das desigualdades brasileiras – 2018” é um prato cheio para quem pretende conhecer mais de perto esse nossa triste realidade. O relatório foi elaborado pela Oxfam, uma importante e reconhecida organização não governamental que se dedica a esse tipo de trabalho.

O texto recebeu contribuição de pesquisadores de várias instituições e transmite aos leitores toda a segurança necessária para fundamentar as suas conclusões. O material analisado se dedicou a verificar a evolução do quadro das desigualdades na comparação entre os anos mais recentes, em particular o verificado entre 2016 e 2017.

Um indicador bastante utilizado para esse tipo de medição é o chamado índice de Gini. Ele pode variar entre 0 e 1, sendo que quando mais próximo da unidade, mais grave será o retrato da desigualdade analisada. Um dos dados que mais chamou a atenção foi a interrupção da queda do Gini da renda (medido de acordo com os dados da PNAD do IBGE). Desde 2002 havia uma pequena redução aferida a cada ano, indicando uma melhoria generalizada no padrão da distribuição de renda. Entre 2016 e 2017 essa queda foi estagnada.

Por mais questionável que possa ser considerada o uso da metodologia dos dados dessa pesquisa do IBGE, o fato é que desde 2002 a concentração de renda em geral vinha mesmo diminuindo. Esse processo tem tudo a ver com as políticas de valorização do salário mínimo, ampliação dos acessos à previdência social, à extensão dos benefícios do Bolsa Família e, principalmente, ao aumento da taxa de formalização do mercado de trabalho e às melhorias salariais. A partir de 2015, no entanto, a adoção da estratégia do austericídio pôs tudo a perder. Logo depois de reeleita para um segundo mandato, Dilma Roussef cometeu o famoso estelionato eleitoral e indicou Joaquim Levy para comandar o Ministério da Fazenda. Nelson Barbosa deu sequência ao estrago e, depois do golpeachment, Henrique Meirelles se esbaldou na maldade criminosa.

Austericídio e concentração

Com essa súbita mudança na orientação da política econômica, o Brasil passou a perder em pouco tempo tudo aquilo que foi conquistado durante anos de políticas públicas afirmativas. Não foi por mero acaso que as consequências do extremismo conservador e fiscalista no comando das áreas econômicas do governo começaram a apresentar sua fatura logo na sequência, em 2016. Assim, as estatísticas oficiais vieram a revelar aquilo que a sensibilidade de análise das políticas sociais já escancarava a olhos nus. Miséria, desemprego, precariedade. Os setores mais desprotegidos da nossa estrutura social foram os mais atingidos e as melhorias obtidas nos níveis de desigualdade recuaram no tempo.

Se as informações coletadas comparassem, por exemplo, a concentração no topo da pirâmide socioeconômica (1% ou 0,5% dos mais ricos) com o restante, a situação seria ainda mais dramática. Isso porque o fenômeno concentrador se revelaria com toda a sua perversidade. Ao analisar o ocorrido com os chamados equivocadamente de “10% mais ricos” da PNAD, corre-se o risco de incluir como “ricos” um contingente expressivo de trabalhadores de salários melhores e setores de classe média. Além disso, na metodologia do IBGE, existe uma clara subdeclaração de outros rendimentos que não os do trabalho ou de aposentadorias. Essa é a razão pela qual cada vez mais se pressiona os órgãos da Receita Federal para obtenção de dados da declaração de imposto de renda de pessoas física (IRPF). Ali estão informações mais completas sobre os rendimentos totais e também de evolução de patrimônio.

O estudo da Oxfam faz uma tentativa de adicionar dados do IRPF à pesquisa da PNAD. Com isso, obtêm-se dois resultados interessantes. Em primeiro lugar, o valor do Gini aumenta em quase 10% no período posterior a 2007, revelando maior concentração de renda. Por outro lado, ao incluir tais informações tributárias, percebe-se que a estagnação na queda da desigualdade teve início antes mesmo da estratégia do austericídio, ou seja, ela já manifestava em 2012.

O documento apresenta outras informações para confirmar a virada de tendência da desigualdade. Os cenários para 2017 apontam para uma regressão na equiparação de renda entre mulheres e homens, bem como na comparação dos rendimentos entre brancos e negros. Além disso, os índices de mortalidade infantil apresentam piora expressiva, combinada à deterioração nos indicadores de pobreza. Para finalizar, o Brasil ainda recuou uma posição em termos de comparação internacional, caindo da 10ª para a 9ª pior distribuição entre países analisados. Enfim, nada a comemorar.

Crônica de uma tragédia anunciada.

O relatório apresenta também importante contribuição ao debate ao enfatizar os problemas associados à nossa estrutura tributária e aos mecanismos de despesa pública em programas sociais como ferramentas relevantes para atenuar os malefícios da concentração estrutural. A natureza regressiva de nosso sistema de impostos acaba por penalizar ainda mais as camadas de menor renda e aliviar os setores do alto da pirâmide quanto à sua contribuição para os cofres públicos. O modelo adotado na Constituição de 1988 foi bastante influenciado pela ideia de um de Estado de Bem Estar. Não obstante todas as dificuldades encontradas para sua implementação ao longo dessas três décadas de vigência, o fato concreto é que as politicas governamentais de ofertas de serviços públicos amplos e universais contribuíram para minorar os efeitos da desigualdade.

Esse quadro de deterioração, no entanto, corre o sério risco de ser ainda mais aprofundado com o resultado das eleições e os anúncios declarados de responsáveis pelo futuro governo de Bolsonaro. A opção declarada e assumida pela redução do protagonismo do Estado e pela abordagem ainda mais extremista na condução da austeridade fiscal deverá agravar o quadro da concentração e da desigualdade. A opção liberaloide por uma crença irresponsável no mercado como única entidade capaz de solucionar os problemas nacionais nos leva mais uma vez à narrativa de uma crônica de uma tragédia anunciada.

O único caminho pra impedir essa degradação é o esclarecimento do grave risco que a maioria da população enfrenta caso nada seja feito em sentido contrário. A mobilização política ampla e a pressão do movimento sindical também devem se dirigir ao Congresso Nacional para sugerir mudança na pauta para 2019. Um dos primeiros movimentos deveria ser pela revogação da EC 95, que congela os gastos públicos por longos 20 anos e chancela como inevitável a opção pelo desmonte do Estado e das políticas sociais.

ANOTE AÍ: 

Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Fonte: Carta Maior

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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