As sertanejas são, antes de tudo, umas fortes

As sertanejas são, antes de tudo, umas fortes
Em fevereiro saímos em uma viagem de carro pelo sertão da . Tínhamos a intenção de conversar com sobre suas experiências com políticas sociais. Depois de quinze dias e 2.400 km rodados havíamos conhecido paisagens inóspitas, lugares deslumbrantes e pessoas, em particular mulheres, fortes e generosas…
Por Teresa Sacchet e Julia Spatuzzi Felmanas
São 4 horas da manhã e Jucélia1 acorda embaixo de uma grande tenda de plástico, em uma roça de sisal na região de Lage dos Negros, pensando que, se tivesse feito faculdade, talvez não precisasse enfrentar doze horas de trabalho por dia. Com 21 anos, ela tem os braços e as mãos marcadas pelo fio cortante da . O acampamento onde dorme abriga também seu pai, sua e outros trabalhadores, e será sua morada por cinco dias da semana. Não há água tratada nem banheiro. Os banhos acontecem em dias alternados, pois a água é insuficiente. Sua cama é feita de sisal, e as refeições, ela mesma tem de providenciar.
Se trabalhasse a semana inteira, Jucélia receberia em torno de R$ 50. Porém, ela cortou dois dias de trabalho para fazer um curso de corte e costura em uma associação de mulheres local, e seu ganho semanal caiu para menos de R$ 30. Jucélia nos conta que às vezes nem recebe. Foi o que aconteceu umas semanas antes do nosso encontro. Segundo ela, o patrão disse que não tinha recebido nada na venda da palha, pois sua qualidade era muito baixa, e ficou por isso mesmo. Ela demonstra certa indignação e afirma: “É humilhante trabalhar a semana inteira e não receber nada. Isso é trabalho escravo”.

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Essas e outras histórias nos foram narradas em encontros que estabelecemos com mulheres quando, em fevereiro deste ano, saímos em uma viagem de carro pelo sertão da Bahia. Tínhamos um roteiro minimamente definido com a ajuda de amigos, que incluía lugares de luta como Canudos e Uauá, o Quilombo de Lage dos Negros, o e a intenção de conversar com mulheres sobre suas experiências com políticas sociais. A própria viagem, alguns contatos iniciais e outros estabelecidos no caminho foram definindo o rumo trilhado. Depois de quinze dias e 2.400 km rodados havíamos conhecido paisagens inóspitas, lugares deslumbrantes e pessoas, em particular mulheres, fortes e generosas, que nos ofereceram e bebida e dividiram conosco suas histórias e experiências de vida e luta, as quais contamos aqui.
O anseio por melhores tempos é coletivo no Quilombo de Laje dos Negros. Solange e Maria, moradoras da Vila Alagadiço onde criamos uma espécie de grupo focal com recebedoras do Bolsa Família (BF), poderiam ser ali consideradas privilegiadas, pois tiveram oportunidade de cursar faculdade.
Nenhuma das duas, porém, trabalha em suas áreas de formação. Vivem do BF, da roça, quando a chuva permite plantar e colher, e de outras poucas atividades de rendimento baixo e incerto. Solange, que fez Pedagogia, tem uma pequena venda onde se podem encontrar uns poucos mantimentos secos, como farinha, biscoitos e balas. Mas, em uma comunidade de tão baixa renda, seu estabelecimento quase não dá retorno.
Maria, que cursou Serviço Social, tem três filhos pequenos e, além da roça, faz artesanato com o sisal, que vende ocasionalmente na feira local. “A falta de oportunidades faz com que talentos sejam desperdiçados”, diz Socorro, e complementa: “Tem dois artistas aqui que fazem coisas lindas. Um é pintor; o outro, desenhista. Mas eles não têm como progredir aqui, não”.
Há poucas e disputadas oportunidades de trabalho mais especializado na região. Conceição, que tem pós-graduação e é líder comunitária, contou-nos que “os postos mais qualificados são quase sempre ocupados por pessoas da cidade”, e, segundo Maria, “profissionais como assistentes sociais e pedagogas são normalmente indicados pelo grupo político que estiver no poder”. Assim, se a questão for melhorar de vida, ter ou não feito faculdade parece fazer pouca diferença na localidade.

Perda e resiliência

Apesar da incerteza da colheita, a roça é a principal atividade produtiva. “Se chove, vai todo plantar, aí vem a seca e morre tudo. Choveu, a gente planta de novo. Se chovesse hoje vocês iam ver, ia todo mundo pra roça”, diz Solange. “Não tem ninguém preguiçoso aqui, não”, afirma ela, olhando para nós como que a confrontar o estereótipo do nordestino para os sulistas.
Esse plantar e não colher nos foi relatado em muitas ocasiões. A mesma sina de morte com a seca é frequente entre os animais. O tenta evitar a perda dos bichos utilizando-se de artifícios desenvolvidos localmente.
No canto de um terreno árido, sob um telhadinho de Brasilit, vimos uma vaca amarrada, presa entre varas, e sustentada de pé por uma cangalha encaixada à sua barriga. Com a , se não fosse mantida erguida, ela cairia de fraqueza, não conseguiria mais se levantar e morreria.
Transtornado pela imobilidade e pelo calor escaldante, o se debatia. Estava sendo alimentado ali por quase um mês, mas o destino de sua vida ainda era incerto.
Em Vidas secas, Graciliano Ramos fala de desesperança, de falta de recursos, de como o próprio vocábulo é escasso no sertão, tornando-se um desejo entre pessoas que, sem educação formal, não encontram palavras para expressar seus sentimentos e denunciar a humilhação que sofrem. No sertão de hoje, as pessoas parecem mais “empoderadas”.
As mulheres com quem conversamos contaram suas histórias com palavras que expressavam entendimentos claros e capazes de refletir dimensões profundas de suas experiências de vida. Aquelas com maior nível de escolaridade consideram os “benefícios” que recebem como um direito, e não como uma benesse.
No entanto, como na época do romance, ainda há poucas possibilidades de fuga das condições de pobreza. Essas mulheres trabalham duro, são resilientes e querem melhorar de vida como qualquer um de nós. Mas sem água não é possível plantar e colher, e sem comércio ou indústria não há perspectiva de outras ocupações rentáveis.
Fonte: Diplomatique

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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