Memórias de um casarão onde morei na rua Visconde de Porto Seguro
Minha família e eu chegamos a Formosa no início dos anos 1970. Pra quem tinha apenas 15 anos e vinha de São Francisco de Sales, no lado mineiro do rio Grande, onde meu pai plantava roça, e de Riolândia, cidadezinha paulista minúscula, de umas poucas mil almas, onde a gente estudava, na outra barranca do rio, os casarões de Formosa pareciam coisa do outro mundo.
Por Zezé Weiss
Moramos em dois deles, ambos lindos, esplêndidos, com seus assoalhos de tábuas, telhados coberto por telhas comuns e lindos janelões coloniais, pintados de azul. Um dava começo à rua do cartório do Clarival de Miranda, saindo da Praça da Matriz, ali onde fica agora o prédio modernoso em que funciona a Caixa Econômica Federal.
O outro, do meu maior agrado, ficava bem na esquina da Rua Visconde de Porto Seguro com a Emílio Póvoa. Era imenso, crescia na lateral até dar de frente com a Casa Domingues, loja do seu Antero Domingues, que já existia naquele tempo. O dono do casarão era o seu Odílio Braga, pai da Taninha e sogro do Mário Miguel, que moravam e tinham uma loja de móveis também na Visconde, do outro lado da rua.
Bem à moda antiga, ao lado do meu quarto existia na casa um alpendre, que se estendia até a entrada de um salão ensolarado e enorme, uma espécie de porta de acesso para os demais quartos e para o restante da casa de quintal esparso, mas com terra o bastante para o plantio de uma pequena horta e uns quantos pés de mamão.
Ali dormia o Antônio Latinha (ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira na II Guerra – segundo diziam), que chegava todo dia antes da meia noite, retirava sua tralha de uma mala surrada e se acomodava para o sono. Em volta do leito improvisado ele colocava muitas latinhas, como que cercando o território do seu “abrigo de guerra”.
Bem cedinho, Antônio começava um ritual de bater as latinhas no chão e umas nas outras, ao tempo em que murmurava palavras incompreensíveis, enquanto guardava tudo na mala. Era o nosso despertador, e muitas vezes saíamos para a escola com ele ainda lá, batendo as latinhas. Nenhum medo, só um respeito enorme por aquele homem, cuja história ninguém sabia direito, mas seguramente era de muita importância, dizia nossa mãe.
Foi ali naquele casarão, com seu Odílio que descobri o sofisticado ritual da procissão do enterro, tão diferente dos raros e singelos funerais dos tempos de Riolândia. Em Formosa, grande parte dos sepultamentos eram precedidos de procissão, a pé, da Catedral até o cemitério da Praça da Concórdia, com seu Odílio à frente, puxando as rezas, organizando a procissão. Em respeito ao finado, as lojas cerravam as portas para a passagem, os homens tiravam os chapéus, coisa ainda em voga naquela época.
Na mesma Visconde, bem mais pra baixo, na esquina onde morava o catireiro Geraldo Alarcão, bom de dança e de folia da roça, existia um outro ser humano ímpar, chamado Miguel das Abóboras. Não sei bem como o conheci, mas foi de Miguel das Abóboras que ouvi pela primeira vez a palavra ciclovia. Mangavam muito dele por conta daquela ideia fixa de fazer de Formosa uma cidade ecológica, movida a bicicletas.
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Zezé Weiss – Jornalista. O texto foi publicado originalmente em 10 de dezembro de 2021.