E daí? Diga lá, Babu, o que fazer?

E daí? Diga lá, Babu, o que fazer?

Por José Ribamar Bessa Freire

“Meu Deus do céu, como é bom viver! Mas agora, a vida fica tão sangrenta e tão desumana, que dá vontade de desistir dela. Diga lá, Babu! Diga lá! O que fazer?”

(NazimHikmet – 1935)

Nos dias de chuva forte, era infernal o barulho no teto de zinco do Centro Torü Nguepataü (Nossa Casa de Estudos) em Benjamin Constant (AM), na aldeia Filadélfia, onde nasceu Aldenor Basques Félix Gutchicü (1976-2020). Eu tinha de gritar nas aulas de que ministrei, em fevereiro de 1995, para 226 alunos do Curso de Formação de Professores Ticuna.

Eram tantos, que agora recorro às fotos para tentar me lembrar do Aldenor, então com 19 anos e muita de viver. Na terça (28), ele morreu em Manaus vítima do coronavírus e de governantes corruptos que durante meio século vêm se apropriando das verbas da Saúde. Foi enterrado na vala coletiva do Cemitério do Tarumã.

Quem conviveu com ele foi a cantora Djuena Tikuna, que dá seu testemunho em sua página do Facebook:

Carinhosamente chamado de Babu, era um grande entusiasta da nossa cultura. Músico autodidata, tocava violão. Compositor, criamos juntos algumas canções que falam do . Esbanjava um sorriso de luz. A primeira geração de crianças Tikuna nascidas em Manaus deve a ele o cultivo da língua nativa. Não merecia esse triste fim, morrer dentro do Uber, longe da família que ficou no Alto Solimões. Amanhã sentirei saudade, hoje só consigo sentir dor, indignação, revolta.

VIVA LA MUERTE!

Babu? Esse apelido do Aldenor me remeteu imediatamente ao escritor turco Nazim Hikmet que, em 1935, dirigiu a um homônimo o seu Viver”, o que nos permite fazer uma ponte entre o Babu dele e o nosso:

Meu Deus do céu, como é bom viver! Viver como se canta em harmonia uma canção de alegria. E no entanto, que negócio estranho, Taranta Babu! Que história mais esquisita de ver que essa coisa tão bela, tão alegre, se tornou hoje terrivelmente nojenta. Há momentos estranhos, como agora, em que os bandidos dão as cartas e a vida fica tão sangrenta, tão desumana e tão insuportável que dá vontade de desistir dela. O que fazer?

Os bandidos aludidos eram os adeptos do nazismo, do fascismo e do racismo, era a indústria bélica e de “arminhas” que logo faria mais de 40 milhões de mortos na Segunda Guerra. Era o grito fascista “Viva la muerte”, versão que antecedeu o “E daí?”. O triunfo do obscurantismo e do desprezo pela vida chocaram o poeta, que amava a vida e foi preso político da ditadura militar turca durante quinze anos.

O nosso Babu do povo Magüta (Tikuna) – nos conta Clayton Rodrigues, pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia – pertencia à nação (clã) de Mutum, da linhagem de penas. Ele participou intensamente das atividades da comunidade Wotchimaücü, no bairro Cidade de Deus, zona norte de Manaus, da qual se tornou vice-cacique. Lá as mulheres confeccionavam , as crianças da primeira geração nascidas na cidade tinham aulas da língua Tikuna, as lideranças realizavam suas assembleias e reuniões para reivindicar seus direitos.

O Centro Cultural Wotchimaücü desenvolve várias atividades de música, de dança, de , curtidas pelas 45 famílias que lá vivem e por visitantes indígenas e não indígenas. Aldenor, o Babu, participou como músico e compositor da gravação de “Cantigas Tikuna Wotchimaücü” em um CD que teve boa receptividade. Nos últimos anos, atuou como indígena na Comunidade de São Leopoldo, em Benjamin Constant, retornando a Manaus no final de 2019.

– Professor, músico, pai, esposo, parente, amigo, Aldenor deixa escrita uma trajetória de luta e resistência de seu povo na cidade de Manaus. Faleceu após apresentar todos os sintomas graves da , sem ter tido a possibilidade de fazer o teste. Sua morte revela a dura situação de ser indígena na cidade. Morreu numa insistente busca de assistência médica, diferenciada ou não, nestes tempos de pandemia em que o sistema de saúde apresenta sinais evidentes de esgotamento e os indígenas veem-se abandonados à sua própria . “Além de falecer sem assistência médica apropriada, o corpo de Aldenor permaneceu insepulto por quase 48 horas” – escreveu Clayton.

OS NOSSOS MORTOS

Com ele ainda vivo, com a respiração fraca, os Tikuna chamaram o SAMU. Inútil. Contrataram um Uber para levar Aldenor ao Hospital Platão Araújo. Lá, o seu acompanhante teve dificuldades de explicar a urgência da situação por não ser fluente em português.

“O motorista do Uber precisou ir até a recepção do hospital e explicar o que estava acontecendo, mas nem chegaram a tirá-lo do carro. Não tinha vaga no hospital e não adiantava mais. O mesmo Uber que levou ele ao hospital o trouxe de volta para a comunidade” – contou Aguinilson Tikuna, em matéria publicada pela Agência Amazônia Real. Enquanto aguardavam a chegada do serviço SOS Funeral, da Prefeitura de Manaus, os moradores da comunidade acomodaram o corpo de Aldenor Félix em duas mesas instaladas dentro da igreja evangélica da comunidade Wotchimaücü.

No espaço do jornal, como nos cemitérios, já não cabem tantos corpos. Enquanto eu escrevia esse texto, minha amiga Verônica Manauara, que reside no Alto Solimões, me enviou notícia de muitas outras mortes de Kokama e Tikuna, alguns professores, que morreram em suas casas, sem atendimento médico, entre eles outro ex-aluno, o professor Anselmo Samias Kokama, que lecionava História na Escola Municipal Indígena Marechal Rondon. A subnotificação acaba distorcendo os dados. A lista da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), embora incompleta, cresce a cada hora.

O povo Kokama perdeu, entre outros, Anselmo Samias, Augustinho Samias, Delvanir Marinho, irmã do cacique da Comunidade Nova Esperança, Idelfonso Tananta, Antônio Frazão, Antônio Castilho, Lindava Moura, Lucildo Pedrosa da Costa, Maria Vargas. De outras etnias, Aldevan Baniwa, Aldenor Tikuna, Abezio Flores Tikuna, Valter Elizardo Tikuna, Ozaniel Mura, Adilson Apurinã, Clevelande Apurinã, Domingos Baré, Otávio Sateré-Mawé, Jorge Pereira Tukano, ex-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).

Cada morte deixa um rastro de dor, de sofrimento, de aflição. Em Manaus, morreram também dois professores da UFAM – Oswaldo Coelho e João Bosco Barreto. Não está sendo possível nem prantear os nossos mortos, que no Brasil se aproximam dos 7 mil. Quando se trata de morte de indígenas, tem um agravante: se morrerem 100 velhos Kokama, uma língua desaparece para sempre do planeta, com os conhecimentos que ela guarda.

E daí? – brada com crueldade aquele que deveria estar comandando a luta contra o vírus e que se torna responsável por muitas mortes causadas pela “gripezinha”. A necropolítica do governo Bolsonaro agrava a situação quando a Funai, em plena pandemia, publica no Diário Oficial da União (22/04/2020) uma Instrução Normativa que permite o repasse de títulos de terra a particulares dentro de áreas indígenas, o que é ilegal e inconstitucional, segundo o Ministério Público Federal. Não temos dúvida de que os genocidas serão julgados pelos crimes contra a humanidade, como o foi o alto escalão nazista no Tribunal Internacional de Nuremberg.

Diga lá, o que fazer, Babu? Como lutar para recuperar a alegria de viver?

P.S.1 – Mais informações podem ser obtidas nas páginas de:  Djuena Tikuna, Altaci Kokama Rubim, Nova Cartografia Social da Amazônia, Amazônia Real (fotos  Aguinilson Tikuna,  Fernando Crispim/La Xunga/Amazônia Real com texto de Elaize Farias e Izabel Santo), Instituto Socioambiental e De olho nos ruralistas (especialmente matéria de Maria Fernanda Ribeiro).

P.S. 2 – No meio de tantas mortes, um sinal de vida: Lígia Bahia de Mendonça defendeu (30/04) sua tese de doutorado: Edificar e Instruir: Missões Jesuíticas nas cartas do Padre Raphael Maria Galanti na Woodstock Letters (1880-1910) no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, orientada por Ana Chrystina Mignot.

P.S.3 – Sobre Nazim Hikmet ver http://taquiprati.com.br/cronica/1368-nazim-hikmet-a-vida-e-alegre-ma-non-troppo

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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