Van Gogh fala do amor necessário
Vivemos atualmente tempos sombrios de muito ódio, ausência de refinamento e especialmente falta de amor
Por Leonardo Boff
A história não é retilínea nem a própria evolução do universo. Passa-se da ordem (cosmos) para a desordem (caos), do sim-bólico (o que une) para o dia-bólico (o que separa), das sombras para a luz, do thánatos (as negatividades da vida) para o eros (as excelências da vida) e do Cristo para o Anti-Cristo.
Tais antíteses não são deformações da realidade, mas a condição de todas as coisas pelo simples fato de que não somos Deus, mas criaturas sempre limitadas. Somos ontologicamente, não moralmente, seres decadentes.
Nesse sentido, há momentos de predominância da ordem, da harmonia social, da convivência inclusiva, que representam o eros. Em outros, predomina o thánatos, a dimensão de morte, de ódio e de dilaceração.
Observe-se que os dois momentos sempre vêm juntos e estão simultaneamente presentes, em proporções diferentes, em todos os momentos e circunstâncias.
Atualmente, em nível mundial e nacional, vivemos pesadamente a dimensão do thánatos, do dia-bólico e da sombra. Há guerras no mundo, racismo, fundamentalismo, fazendo incontáveis vítimas, ascensão entre nós do autoritarismo e do populismo, que são disfarces do despotismo. Como se tudo isso não bastasse, estamos sob a intrusão do Covid-19, fruto da sistemática agressão humana contra a natureza (antropoceno) e do contra-ataque que ela nos está movendo, pondo de joelhos e impotentes o capitalismo e os países militaristas com sua máquina de matar a todos.
Todos os caminhos religiosos e espirituais conferem centralidade ao amor. Nem precisamos referir-nos a Jesus, para quem o amor é tudo, ou ao texto de incomparável beleza e verdade de São Paulo na primeira Carta aos Coríntios, no capítulo 13: “o amor nunca acabará… no presente permanecem estas três: a fé, a esperança e o amor, porém a mais excelente é o amor” (13.8.13).
Cito um texto pouco conhecido de Thomas Kempis sobre o amor, da Imitação de Cristo, de 1441, o livro mais lido na cristandade depois da Bíblia. Como canto de cisne de minha atividade teológica por mais de 50 anos, o retraduzi do latim medieval, superando-lhe, contudo, os dualismos típicos da época. Ei-lo:
“Grande coisa é o amor. É um bem verdadeiramente inestimável que por si só torna suave o que é penoso e suporta sereno toda a adversidade. Porque leva a carga sem sentir o peso, torna o amargo doce e saboroso…
O amor deseja ser livre e isento de amarras que lhe impedem amar com inteireza. Nada mais doce do que o amor, nada mais forte, nada mais sublime, nada mais profundo, nada mais delicioso, nada mais perfeito ou melhor no céu e na terra…
Quem ama, voa, corre, vive alegre, sente-se libertado de todas as amarras. Dá tudo para todos e possui tudo em todas as coisas, porque para além de todas as coisas, descansa no Sumo Bem do qual se derivam e procedem todos os bens. Não olha para as dádivas, mas eleva-se acima de todos os bens até Àquele que os concede.
O amor muitas vezes não conhece limites pois seu fogo interior supera toda a medida. De tudo é capaz e realiza coisas que quem não ama não compreende, quem não ama se enfraquece e acaba caindo. O amor vigia sempre e até dorme sem dormir… Só quem ama compreende o amor” (livro III, capítulo 5).
Em momentos dolorosos em que vivemos e sofremos, precisamos resgatar o mais importante e que verdadeiramente nos humaniza: o simples amor. Quase todos nos sentimos carentes dele. Mas sem ele nada de grande, de memorável e de heroico foi construído na história. É o amor que faz com que tantos médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras, e todos os que trabalham contra o Covid-19 sacrifiquem suas vidas para salvar vidas, sendo que muitos deles por isso são vitimados. Eles nos confirmam a excelência do amor incondicional.
Testemunhos das ciências da vida, da arte e da poesia corroboram com o que proclamam as religiões.
Comoventes são as palavras do genial pintor Vincent van Gogh, em carta ao seu irmão Théo: “É preciso amar para trabalhar e para se tornar um artista, um artista que procura colocar sentimento em sua obra: é preciso primeiro sentir-se a si próprio e viver com seu coração… É o amor que qualifica nosso sentimento de dever e define claramente nosso papel… o amor é a mais poderosa de todas as forças” (Lettres à son frère Théo, Galimard 1988, 138, 144). A. Artaud, que fez a introdução às cartas de van Gogh, diz que ele se recusou a entrar nessa sociedade fria, indiferente e sem amor: “ele foi um suicida da sociedade”.
Consideremos o que testemunham os estudos sobre o processo cosmogênico e da nova biologia. Mais e mais fica claro que o amor é um dado objetivo da realidade global e cósmica, um evento bem-aventurado do próprio ser das coisas, nas quais nós estamos incluídos.
Exemplo disso é o que escreveu James Watson que, junto com Francis Crick, descodificou em 1953 a dupla hélice do código genético:
“O amor pertence à essência de nossa humanidade. O amor, esse impulso que nos faz ter cuidado com o outro foi o que permitiu a nossa sobrevivência e sucesso no planeta. É esse impulso, creio, que salvaguardará nosso futuro… Tão fundamental é o amor à natureza humana que estou certo de que a capacidade de amar está inscrita em nosso DNA; um São Paulo secular diria que o amor é a maior dádiva de nossos genes à humanidade”(J.Watson. DNA: o segredo da vida, Companhia das Letras, São Paulo 2005 p. 433-434).
Os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela mostraram a presença cósmica do amor. Os seres, mesmo os mais originários como os topquarks, dizem eles, se relacionam e interagem entre eles espontaneamente, por pura gratuidade e alegria de conviver. Tal relação não responde a uma necessidade de sobrevivência. Ela se instaura por um impulso de criar laços novos, pela afinidade que emerge espontaneamente e que produz o deleite. É o advento do amor.
Desta forma, a força do amor atravessa todos os estágios da evolução e enlaça todos os seres dando-lhes irradiação e beleza.
O amor universal realiza o que a mística sempre intuiu acerca da gratuidade da beleza: “a rosa não tem por quê. Ela floresce por florescer. Ela não cuida dela mesma nem se preocupa se a admiram ou não” (Angelus Silesius). Assim o amor, como a flor, ama por amar e floresce como fruto de uma relação livre, como entre duas pessoas enamoradas e apaixonadas.
Bem expressou esta experiência Fernando Pessoa, em Poemas de Alberto Caieiro: “Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,/Mas porque a amo, e amo-a por isso,/Porque quem ama nunca sabe o que ama/Nem sabe por que ama, nem o que é amar/Amar é a eterna inocência” (Obra poética, Aguilar 1974, p.205)
Pelo fato de sermos humanos e autoconscientes, podemos fazer do amor um projeto pessoal e civilizatório: vivê-lo conscientemente, criar condições para que a amorização aconteça entre os seres humanos e com todos os demais seres da natureza, até com alguma estrela do universo.
O amor é urgente no Brasil e no mundo. Com realismo nos deixou Paulo Freire, tão caluniado pelos propulsores do ódio e da ignorância, esta missão: forjar uma sociedade onde não seja tão difícil o amor. Educar, dizia ele, é um ato de amor.
Digamo-lo com todas as palavras: o sistema mundial capitalista e neoliberal não ama as pessoas. Ele ama o dinheiro e os bens materiais; ele ama a força de trabalho do operário, seus músculos, seu saber, sua produção e sua capacidade de consumir. Mas ele não ama gratuitamente as pessoas como pessoas, portadoras de dignidade e de valor. O que nos está salvando neste momento de intrusão do Covid-19 são exatamente os valores que o capitalismo nega.
Pregar o amor e dizer: “amemo-nos uns aos outros como nós mesmos nos amamos”, é revolucionário. É ser anti cultura dominante e contra o ódio imperante.
Há de se fazer do amor aquilo que o grande florentino Dante Alighieri escreveu no final de cada cântico da Divina Comédia: “o amor que move o céu e todas as estrelas”; e eu acrescentaria, amor que move nossas vidas, amor que é o nome sacrossanto do Ser que faz ser tudo o que é e que é a Energia sagrada que faz pulsar de amor os nossos corações.