Cerrado: Síntese de uma Pré-História

Cerrado: Síntese de uma Pré-História

Por Altair Sales Barbosa

O exerceu papel fundamental na vida das populações pré-históricas que iniciaram o povoamento das áreas interioranas do continente sul-americano.

No Sistema do Cerrado, essas populações desenvolveram importantes processos culturais que moldaram estilos de sociedades bem definidos, em que a economia de caça e coleta imprimiu modelos de organização espacial e social com características peculiares.

Os processos culturais indígenas, que se seguiram a esse modelo, trouxeram pouca modificação à fisionomia sociocultural e, embora ocorresse o advento da agricultura incipiente, exercida nas manchas de solo de boa fertilidade natural, existentes no Cerrado, a caça e a coleta, em particular a vegetal, ainda constituíam fatores decisivos na economia dessas sociedades.

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A AURORA DA OCUPAÇÃO HUMANA – AINDA NO PLEISTOCENO SUPERIOR

O registro da pré-história sul-americana demonstra intensa movimentação adotada por populações humanas nos sistemas andinos e pré-andinos, principalmente a partir de 12.000 anos A. P.

Essa movimentação coincide com mudanças ambientais maiores de cunho continental, com matizes localizadas, responsáveis por entropias nos sistemas físicos e culturais até então estruturados e por flutuações no espaço por parte desses sistemas, culminando com a redução de áreas com savanas e início de desertificação em certos setores, fatos que acentuam o processo de redução faunística, principalmente a fauna de gigantes na parte centro-norte ocidental do continente.

Parece claro que essas movimentações humanas estejam relacionadas com modificações de ordem ambiental, mesmo que essas sejam mediatizadas pela cultura. Os sistemas culturais são de certa forma desestruturados, e as populações são impulsionadas a buscarem novas formas de planejamento ambiental/social e novas alternativas de sobrevivência.

Nesse contexto, as áreas abertas, representadas especialmente pelo cerrado ainda existente em manchas significativas nos baixos chapadões da Amazônia, devem ter exercido papel fundamental no favorecimento de novas expectativas de sobrevivência e novos arranjos culturais, desencadeando os processos iniciais de colonização das áreas interioranas do continente.

Essa colonização deu-se preferencialmente em áreas de formações abertas. O início acontece de forma acanhada, mas algum tempo depois já era possível constatar a formação de um horizonte cultural fortemente adaptado às novas condições ambientais, principalmente quando se aproxima da grande área core, das formações abertas, existentes nos chapadões centrais brasileiros, cujas características físicas e biológicas mantêm-se com alterações pouco significativas quando comparadas com modificações que afetaram outros ambientes continentais durante o Pleistoceno Superior e nas fases iniciais do Holoceno.

Os estudos sobre a indústria lítica que compõe esse grande horizonte cultural que se forma no Cerrado, quando comparados com outros sobre as indústrias líticas do continente, situadas mais a oeste e mais recuadas temporalmente, parecem demonstrar que alguns traços tecnológicos são mantidos, porém aperfeiçoados de forma sui generis, originando uma indústria também bastante singular e assustadoramente homogênea. Processo quase que similar ocorre com relação à economia de subsistência.

De onde vieram esses povoadores iniciais é um problema para o qual ainda não se tem muita clareza, mas algumas áreas do oeste merecem mais atenção que outras, porque podem ter funcionado como centros dispersores. O estudo comparativo de variáveis bem definidas inevitavelmente conduzirá a algumas respostas.

Nesse sentido, o horizonte cultural que se formou nas Savanas e Formações Xerófilas, na área andina, representado principalmente pelas áreas nucleares de El Abra e Ayacucho, onde pesquisas das formações abertas já apontam elementos muito significativos, devem converter-se num ponto de investigação inicial.

Entre 12.000 e 11.000 anos A. P., dois sistemas ocupacionais bem definidos já estão definitivamente implantados no interior do continente. Trata-se da área nuclear do Vale do Guaporé, nas quebradas do planalto brasileiro, cuja cobertura vegetal é caracterizada pelo cerrado, e a região das coxilhas gaúchas, cujas ocupações se relacionam com as ocupações das estepes patagônicas, formando com essa um horizonte cultural descontínuo.

As ocupações das coxilhas gaúchas não demonstram nenhum tipo de relacionamento com as ocupações que se instalam imediatamente no cerrado dos chapadões centrais do . Pelo contrário, estão mais relacionadas com as ocupações das estepes patagônicas, com processos evolutivos similares e muito diferentes dos processos adotados ou desenvolvidos pelas ocupações que formam o Grande Horizonte Cultural do Cerrado.

Já as ocupações do Vale do Guaporé guardam ligeiras relações tanto com as ocupações mais antigas das savanas localizadas mais para oeste como com as ocupações localizadas no cerrado do leste, instaladas em épocas ligeiramente mais recentes. A indústria lítica demonstra certa transição evidenciada por uma desestruturação e por uma posterior adaptação exitosa.

Assim, de acordo com os dados disponíveis até o presente momento, envolvendo amostragem significativa em Mato Grosso do Sul, quase a totalidade de , grande parte do Tocantins, oeste da Bahia e grande parte de Minas Gerais, a ocupação efetiva do interior do continente sul-americano, inicia-se com a implantação do Horizonte do Cerrado, a partir de 11.000 anos A. P.

Esse horizonte é caracterizado por uma indústria lítica muito homogênea, que constitui a Itaparica, intimamente ligada às formas de exploração do cerrado, com mecanismos adaptativos responsáveis por um sistema econômico que perdura por dois mil anos quase sem alteração, a não ser aquela decorrente da migração.

As populações dominadoras da técnica que criaram a indústria que constitui a Tradição Itaparica colonizaram uma área de grandeza espacial com cerca de dois milhões de quilômetros quadrados: desde Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, até áreas com cerrado no oeste da Bahia, norte e oeste de Minas Gerais e áreas com enclaves de cerrado em ambientes dominados por caatingas do nordeste brasileiro, notadamente Pernambuco e Piauí.

Essas localidades, em conjunto, revelam o alcance dessa Tradição e a maneira homogênea de organizar o espaço, bem como a importância que o Sistema Biogeográfico do Cerrado exerceu nesses processos iniciais de ocupação por populações humanas.

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OS PROCESSOS CULTURAIS ASSOCIADOS À OCUPAÇÃO INICIAL

O panorama do povoamento das áreas centrais do continente sul-americano começa a se definir a partir de 11.000 anos A.P. e, para tal, contribui em muito o advento, no Planalto Central do Brasil, de um complexo cultural denominado pela arqueologia “Tradição Itaparica”.

Há 10.000 anos, essa tradição está implantada sobre toda a extensão de cerrado.  É quase certo que ela cobriu a área do Cerrado dos chapadões centrais do Brasil e suas extensões. Pelos processos a que está associada, sua implantação na área representa um marco referencial de fundamental importância para compreender os processos culturais que caracterizam o alvorecer do povoamento humano nas áreas centrais da América do Sul.

Por volta de 9.000 anos A. P., ou um pouco mais tarde, essa cultura perde suas características básicas, representadas pela adoção de artefatos bem trabalhados, e se transforma em indústria de lascas, com poucos retoques, assinalando uma nova tendência à especialização.

Os estudos arqueológicos têm demonstrado uma íntima relação entre a cultura da Tradição Itaparica e a área do Cerrado. O nível dessa relação é evidenciado não só pelo manejo paleoecológico, mas também pelos restos de associados a essa cultura, encontrados nas escavações arqueológicas, e pela própria distribuição dos sítios arqueológicos.

A compreensão dessas afirmações é mais clara quando associada ao panorama da pré-história do continente e da configuração paleoambiental que imediatamente antecedeu a formação da cultura da Tradição Itaparica no centro do Brasil.

A revisão da pré-história da América do Sul revela a existência, em períodos anteriores ao povoamento do interior do Brasil, de um Horizonte Cultural que atuava em áreas de savanas e outras formações abertas, estabelecidas em áreas do leste Andino, ou tendentes a essa orientação, e quase à borda da área nuclear da vegetação de cerrado dos chapadões baixos da Amazônia.

Esse horizonte cultural, que recebe a denominação de “Horizonte Descontínuo das Savanas e Formações Xerófilas”, ocorre na área, de forma não homogênea, desde aproximadamente 15.000 até 12.000 anos A.P.

Suas principais categorias espaciais são representadas por El Abra, Ayacucho e Guitarrero I, que englobam um conjunto de complexos culturais similares, que caracterizavam um sistema de coleta e caça, no qual os de grande porte, atualmente extintos, constituíam uma alternativa alimentar de grande importância.

A observação sobre a formação desse horizonte e sua configuração espacial e temporal demonstra uma fase de implantação situada entre 15.000 a 14.000 anos A.P., acompanhada por uma fase de expansão que caracteriza o período de 14.000 a 13.000 anos A.P., fase esta que é seguida por fragmentação de algumas áreas, provocada por migrações para leste e que caracteriza o período de 13.000 a 12.000 anos A.P.

A partir dessa época, a principal área cultural ainda habitada das savanas colombianas fragmenta-se, propiciando migrações para o interior do continente.

O desaparecimento desse horizonte coincide com uma época de grande instabilidade climática que marca o limite entre o Pleistoceno e o Holoceno. Coincide também com o início do avanço das áreas florestadas sobre áreas de caatinga nas depressões e áreas de cerrado nos baixos platôs da Amazônia.

Essas significativas mudanças do clima e seus reflexos nos ambientes, certamente, intuíram nas populações humanas aí estabelecidas a necessidade de se buscarem novas alternativas e planejamento de subsistência, o que implica novos arranjos sociais. Esse fenômeno não parece ser exclusivo das populações que constituem esse horizonte cultural.

Muito pelo contrário, a revisão da pré-história do continente demonstra intensos movimentos ocorridos nessa época nas áreas povoadas do oeste. Esse período coincide também com o agravamento de um processo de drástico empobrecimento qualitativo e quantitativo, representado por uma grande da biomassa de megafauna.

Por volta de 12.000 ou, quando muito, 11.000 anos A.P., os ecossistemas tropicais já se mostravam bastante alterados em relação à composição faunística. O rareamento da biomassa de megafauna afetou a subsistência de agrupamentos humanos, impulsionando-os para a busca de novas alternativas e para o desenvolvimento de novos mecanismos de subsistência.

Um dos pontos de convergência, talvez o mais importante, era constituído pelas áreas de vegetação de cerrado, já bastante reduzida, mas ainda existente à época, nos baixos platôs amazônicos, configurando-se na forma de faixas estreitas que se conectavam com a grande área core dos chapadões centrais do Brasil.

Nesse Sistema Biogeográfico, a concentração de recursos vegetais, associada a uma grande percentagem da biomassa animal representada por animais de médio e pequeno porte, constituiu-se uma fonte alternativa de singular importância para essas populações, que lentamente aperfeiçoaram um sistema de coleta e caça generalizadas.

A revisão da paleoecologia do continente, englobando o período situado entre o Pleistoceno Superior e o Holoceno Inicial, demonstra que os atuais sistemas biogeográficos representam fenômenos recentes e que esse período é marcado por grandes transformações, que representam uma revolução na composição biogeográfica do continente.

Há inúmeros estudos sobre paleoecologia do continente, para o referido período, que comprovam essa afirmação e evidenciam a existência de grandes áreas de vegetação aberta, onde hoje ocorre a úmida amazônica.

Essas áreas de vegetação aberta eram caracterizadas pela ocorrência de caatinga, nas depressões, e cerrado, nas partes mais elevadas. Esses estudos evidenciam também que o Sistema do Cerrado dos chapadões centrais do Brasil foi o menos afetado pelas oscilações climáticas do Pleistoceno Superior e do Holoceno Inicial.

A chegada do Holoceno trouxe o recuo da glaciação, com todas as suas consequências: os ventos frios regrediram, com a diminuição das calotas glaciais e andinas, a corrente fria de Falkland se retraiu, a corrente quente do Brasil se esparramou pelo litoral nordestino.

E mais, com o derretimento do gelo, o nível do mar subiu e a temperatura e a umidade aumentaram, ocasionando a tropicalização do ambiente. Aparentemente, isso não aconteceu de forma unilinear, mas com oscilações que, no todo, representaram um aumento  do calor, da umidade e do nível do mar, até alcançar o máximo no altitermal ou ótimo climático europeu, entre aproximadamente 8.000 a 4.000 anos A.P. Naturalmente, as condições gerais foram matizadas localmente por fatores diversos, dos quais o relevo parece ter papel saliente.

Provavelmente a vegetação continuou aberta durante todo o período; talvez no nordeste do Brasil, tenha se tornado ainda mais rala.

Com o aumento geral da temperatura e provavelmente um aumento mais lento da precipitação por volta de 9.000 a 8.000 anos A. P., talvez mais cedo no Piauí, instalou-se um período muito seco, responsável por mudanças técnicas na manufatura de instrumentos, como também culturais, e pela migração de populações.

Entre aproximadamente 11.000 e 8.500 anos A. P., indústrias de lâminas unifaciais, em que predominam furadores e raspadores terminais encabados, parecem formar um grande horizonte, cobrindo uma área que inclui Pernambuco, Piauí, Bahia, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, e talvez parte de .

Uma grande parte desses sítios pode ser incluída na chamada Tradição Itaparica. A economia é a de um caçador e coletor generalizado, que explora principalmente nichos diversificados.

Os assentamentos desse homem se dão em grutas ou abrigos calcários, areníticos ou quartzíticos, nos estados de Minas Gerais, Pernambuco, Piauí e no alto das colinas em Goiás.

Alguns desses sítios apresentaram longos períodos de permanência, como no sudoeste e centro de Goiás, porque os recursos eram abundantes, ao passo que a maior parte eram de acampamentos temporários.

Como nos locais geralmente estavam reunidos recursos minerais, vegetais e animais, em nichos diversificados, é possível que a maior parte dos acampamentos fosse de atividades múltiplas. Com uma certa frequência, aparecem sítios de apropriação e preparação de minerais, mas ainda não se tem notícia de sítios de matança de animais.

O regime alimentar desse caçador generalizado pode ser estudado com bastante precisão nos abrigos do sudoeste de Goiás, onde os restos alimentares são abundantes e bem conservados.

Os animais caçados são das espécies mais variadas e de todos os tamanhos, desde cervídeos, capivaras, macacos, tamanduás, tatus, tartarugas, lagartos, emas, todo tipo de aves e pequenos peixes; também se recolhiam ovos de emas. Os moluscos estavam ausentes nesse período, mas serão alimento básico no período seguinte.

Os animais classificados são todos de espécies holocênicas, não tendo aparecido até hoje nenhum exemplo de espécie extinta. Também apareceram caroços de frutos, principalmente de palmas. Esses alimentos provêm dos diversos ambientes que compõem os subsistemas do Cerrado.

Para outras localidades, as informações ainda são escassas, quer porque faltam os restos de alimentos, quer por não terem ainda sido analisados.

Sobre a captura da maior parte dos animais, não temos conhecimento se seria o dardo com ponta de pedra finamente trabalhada, característica dos caçadores de grandes gregários da mesma época, nas estepes americanas do Norte e do Sul, ou se outra técnica era utilizada.

O caçador do planalto e do nordeste do Brasil chegou a conhecer as pontas de pedra já no fim do período, mas elas aparecem muito esporadicamente, ao lado de pontas, também esporádicas, em osso.

Também os alimentos vegetais eram de tratamento fácil, sendo a maior parte frutos de consumo imediato, sem modificações notáveis, exigindo no máximo a quebra de noz das palmas para aproveitamento de suas amêndoas.

A transformação das outras matérias-primas, como pedra, peles, ossos, chifres, cascos, poderia exigir instrumentos mais acabados.

Os artefatos mais importantes e mais frequentes no contexto instrumental desse horizonte são unifaciais, isto é, têm uma face plana e não trabalhada, a outra convexa e transformada.

Uma grande parte é feita de lâminas, lascadas por percussão e retocadas por percussão ou pressão. Outras são feitas a partir de lascas. Serviam para as funções de cortar, furar, raspar, alisar, esmagar e quebrar.

Na terminologia dos arqueólogos, aparecem como raspadores, furadores, facas, talhadores, machados, alisadores ou mós, discos, quebra-cocos ou bigornas, bolas e percutores. Entre os cinco últimos, alguns são pisoteados ou alisados, o que representa uma utilização muito antiga dessa técnica de preparar artefatos de pedra.

Nos locais de ambiente rico e matéria-prima mineral abundante, como no sudoeste e centro de Goiás, os restos de artefatos e resíduos de lascamento podem chegar a centenas de milhares em escavações relativamente pequenas, e neles se pode acompanhar todo o processo de manufatura, desde o momento em que as lascas são desprendidas dos blocos, até sua redução e conformação como instrumento e sua rejeição depois de quebrado ou inutilizado.

As peças são grandes e bem acabadas. Na região de Lagoa Santa, pelo contrário, os artefatos são quase indistinguíveis dos detritos de lascamento, pela deficiência de rochas adequadas.

A matéria-prima desses artefatos e o local em que elas foram apanhadas estão ligados às disponibilidades locais. No sudoeste de Goiás, o quartzito ou arenito silicificado utilizados encontram-se nas próprias paredes dos abrigos ou nos blocos deles desgarrados.

Já nos sítios sobre colinas, a matéria-prima provém dos seixos que recobrem seu topo e seus flancos e se origina da decomposição do arenito Furnas, no qual estavam incrustados como veios. Em outros lugares, geralmente a matéria-prima é selecionada entre os seixos transportados pelos rios.

Matéria-prima muito importante também são as peles, os ossos, os dentes e chifres dos animais caçados; por isso, os ossos da caça estão quebrados, cortados, apontados. Os ossos longos de cervídeos eram afinados para produzir espátulas.

Num clima mais frio, e para uma população desabrigada, o abastecimento de lenha era importante, mas sem problemas. Em muitos lugares, os abrigos naturais são numerosos, e o homem os utilizou intensamente, sempre que ofereciam condições de habitabilidade, uma das quais era água próxima. Também acampava ao ar livre, principalmente em temporadas de pesca.

Na maior parte da área, mesmo nos tempos de seca, pode-se conseguir água boa, abundantemente, sem esforço, mas abrigos grandes foram rejeitados, temporária ou permanentemente, por falta desse líquido.

Pelo tipo, distribuição e quantidade de resíduos encontrados nos acampamentos, infere-se que os grupos migrantes eram pequenos, compostos provavelmente por algumas famílias cada um, que se moveriam como bandos frouxos dentro de um espaço delimitado.

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A OCUPAÇÃO DO CERRADO POR HORTICULTORES DE ALDEIAS

O Sistema Biogeográfico do Cerrado tem sido o palco no qual as populações indígenas desenvolveram culturas diferentes, em conformidade com suas origens, seu tempo histórico e suas possibilidades técnicas.

As condições ambientais encontradas pelos horticultores indígenas não parecem ter sido muito diferentes das conhecidas pelos primeiros colonizadores de origem europeia, e foram exploradas diferencialmente.

O Planalto Central já era ocupado desde 11.000 anos A. P. por uma população humana composta de caçadores e coletores. As etapas mais antigas da evolução desses homens pré-cerâmicos são mais conhecidas que as mais recentes, nas quais se transformariam em cultivadores e ceramistas.

Nos locais em que se encontram depósitos estratificados em abrigos, como em Serranópolis-GO, há uma descontinuidade entre as camadas do homem sem cerâmica e a do ceramista.

As próprias datas indicam um hiato muito marcado entre ambas as ocupações. Nas áreas onde as aldeias de ceramistas se levantaram ao ar livre, ainda não foram encontrados sítios pré-cerâmicos que pudessem apoiar estudos de transição cultural.

Dessa maneira, sem transição, aparecem no Sistema Biogeográfico do Cerrado grupos ceramistas e os cultivadores de plantas que os arqueólogos separam em quatro ou cinco tradições técnicas diferentes.

Essas classificações ainda são altamente hipotéticas e será necessário um longo trabalho de análise e comparação não apenas dos elementos cerâmicos e líticos, mas de todos os outros dados, para se obterem conhecimentos fidedignos sobre as populações, sua vida e sua história.

Os dados existentes até então são apenas indicativos e conjeturais. Mesmo cronologicamente, as informações se apresentam escassas, apoiando-se em um pequeníssimo número de datas de C-14, que não marcam nem o começo, nem o transcurso completo da ocupação. O apoio na Etno-história proporciona algumas hipóteses, ainda não testadas, com relação à continuidade desses cultivadores pré-históricos no período colonial.

Cronologicamente, o primeiro grupo ceramista, e provavelmente cultivador, é o denominado Fase Pindorama, estudada em abrigos do médio-norte do Tocantins, que atestam o uso de cerâmica ao menos já no século V a. C. (há duas outras datas, em camadas inferiores, de quase 2.000 anos a. C., para as quais não se pode assegurar plenamente o uso da cerâmica).

Essa data não deve causar estranheza, uma vez que proximamente, tanto no Pará (Tradição Mina, 3.000 anos a. C.), como em Minas Gerais (Tradição Una, 2.000 anos a. C.), a cerâmica já era usada. Como a pesquisa na área da fase Pindorama foi provisoriamente interrompida, não se pode avaliar o que representa o seu material, nem com relação à entrada da cerâmica e/ou da horticultura na região do médio Tocantins, nem com relação à sua continuidade em tempos coloniais.

A Fase Jataí, outro grupo reconhecidamente horticultor, cujos restos aparecem em numerosos abrigos de Serranópolis e Caiapônia, no de Goiás, poderia ser um invasor na área. Isso porque os seus refugos, acumulados desde 1.000 anos d. C., aparecem em descontinuidade com os restos dos últimos caçadores/coletores locais.

A Tradição Una, à qual a Fase é atribuída, encontra-se em direção leste até o mar, beirando sempre a fronteira meridional dos horticultores aldeões da Tradição Aratu/Sapucaí. Como as pesquisas publicadas sobre as áreas de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul são ainda escassas, não se pode nem especular sobre suas origens, que poderiam ser tanto orientais quanto ocidentais. Já eram cultivadores de numerosas plantas, entre as quais se destacam o milho e a mandioca.

Aparentemente, chegaram até a colonização europeia, mas supõe-se que sem ligação genética e/ou cultural com os horticultores que construíram suas aldeias a céu aberto, em áreas de relevo mais suave, e ocuparam áreas acidentadas, com predomínio de cerrado. A Fase Palma, no nordeste do estado de Goiás e sudeste do Tocantins, ao menos em alguns aspectos, assemelha-se à fase Jataí, inclusive na cronologia.

Os horticultores que constroem grandes aldeias a céu aberto junto à mata de galeria ou na mata contínua são divididos em três tradições técnicas e provavelmente culturais. A Tradição Aratu/Sapucaí, com dispersão geral mais oriental, tem sítios no centro-leste do estado de Goiás. Apesar de as datas só recuarem até o século IX, sua primeira ocupação deve remontar aos primeiros séculos de nossa era.

O seu lugar de origem também ainda é desconhecido, porém todos os indicadores levam a pensar numa economia com ausência de mandioca, mas provavelmente baseada em outros tubérculos e talvez o milho. Por não serem encontradas ocupações em abrigos, são desconhecidos os restos de suas plantas cultivadas e das nativas recolhidas. Eram populações numerosas e certamente desembocaram em grupos coloniais.

A Tradição Uru, com dispersão mais ocidental, apresenta marca dos aspectos técnicos amazônicos e parece ter chegado ao Planalto Central, um pouco mais recentemente que os horticultores Aratu/Sapucaí.

Sua origem também é desconhecida e todos os indicadores levam a pensar numa economia baseada no cultivo da mandioca e na pesca, mas, em concreto, desconhecem-se seus restos alimentares, que só poderiam ser estudados em abrigos. Eram populações numerosas e certamente desembocaram em grupos coloniais.

Finalmente, a Tradição Tupiguarani[1], além de um certo número de sítios na bacia do Paranaíba, tem apenas ocupações esparsas na bacia do Araguaia e mais rarefeitas ainda no resto do estado de Goiás, como se tivesse enfrentado dificuldades na ocupação do espaço, no qual dois outros grupos de horticultores aldeões já estavam fortemente estabelecidos.

Essa tradição pertence ao ramo do Sudeste. Também parece ter construído sua economia sobre a utilização de mandioca, dado a ser comprovado concretamente, através dos restos alimentares ainda desconhecidos. Sua expansão, excetuando talvez a bacia do Paranaíba, se afigura recente quando relacionada às duas tradições de aldeões anteriores.

Em resumo, nota-se a presença de grupos, aparentemente pouco numerosos, em áreas acidentadas, com domínio de cerrado stricto sensu, cujas habitações eram predominantemente os abrigos. Observa-se também a existência de grupos muito numerosos, em áreas abertas, com mata ou mata de galeria, com as aldeias nas colinas ou na beira dos rios e lagos. Ao que tudo indica, entre esses dois grandes grupos, os contatos parecem ter sido mínimos.

Sobre o modo como os diversos grupos exploravam o ambiente, dominavam o território e deslocavam suas aldeias, há uma boa amostra para uma das áreas mais densamente povoadas da tradição Aratu: o Mato Grosso de Goiás.

Sobre a produção simbólica preservada nas gravuras de lajedos e nas paredes dos abrigos, por enquanto existem alguns trabalhos descritivos que visam principalmente à documentação dos fenômenos antes que desapareçam, e não propriamente a sua compreensão.

O desconhecimento da biologia das populações, em parte porque não foram encontrados os restos correspondentes e em parte porque os raros esqueletos encontrados não foram ainda convenientemente estudados, é certamente uma das deficiências mais sérias.

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[1] O termo “Tupiguarani” é utilizado para designar uma tradição ceramista (sistema classificatório usado pela arqueologia), diferentemente de “tupi-guarani”, utilizado para designar uma família linguística.

altair sales barbosa 15 12 09 ed pelikano 11Altair Sales Barbosa – Pesquisador do CNPq.  Sócio Titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.  Pesquisador Convidado do Programa de Pós- Graduação da Unievangélica – Anápolis.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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