A latitude da moralidade
A mulher maometana, se acaso se deixa surpreender por um estranho, mesmo quando sumariamente vestida, o seu primeiro gesto é cobrir o rosto e não o corpo…
Por Clarice Lispector
Achamos isso estranho, embora o gesto dela seja consistente com o nosso hábito de usar uma máscara no Carnaval, quando nos parece oportuna a proteção do anonimato. O véu que as muçulmanas usam em público é a exaltação desse mesmo desejo de encobrir a personalidade, ainda que as suas motivações sejam diferentes das de um folião.
Há não muito tempo, em Damasco, uma turba enfurecida, atirando pedras e disparando tiros, forçou a entrada em um teatro onde se exibia uma companhia francesa, em protesto contra o rosto – e não o corpo – despido das atrizes. Da mesma forma, em fins do século passado, por ocasião de um baile de máscaras em Nova York, os convivas foram apedrejados exatamente pelo motivo oposto. E ao recorrerem à polícia, essa os advertiu que não tinham direito à sua proteção, pois estavam fora da lei.
A intensidade do senso de vergonha, como se pode deduzir dos exemplos acima, varia conforme a região. Entretanto, os modernos meios de transporte, encurtando distâncias e tornando acessíveis localidades anteriormente isoladas, tendem cada vez mais a equiparar o senso da moral. Há não muitos anos, era hábito de vários povos banharem-se em público, sem roupa alguma. Mas esse costume está rapidamente desaparecendo devido a protestos de viajantes estrangeiros.
À primeira vista, a virtude parece ser uma virtude tão absoluta e indivisível quanto, digamos, a honestidade. Na realidade, porém, a decência apresenta uma variedade de formas que dependem de fatores divergentes, como idade, hábitos, costumes, leis, época, clima, hora do dia (já imaginaram um biquíni num baile de gala?) e outros. Cada fator traz um significado adicional que desafia uma interpretação diferente.
Assim, são vagos e confusos os limites da moral, que só pode ser julgada de acordo com a sua latitude geográfica e histórica. E, mesmo assim, o julgamento é sempre precário…
Clarice Lispector – Escritora, em Correio Feminino. Organização Maria Aparecida Nunes. Editora Rocco, 1977.