A PONTE DOS GOROTIRE E A ÁRVORE DA VIDA

A RAIVA DE SER ÍNDIO

A raiva de ser Índio

Tem livro que devia ser lido por toda criança, em toda casa, em toda escola. “Meu avô Apolinário – Um mergulho no rio da (minha) memória, publicado pela editora Studio Nobel em 2001,  é um deles. Porque da memória de Daniel Munduruku saem lições de vida para crianças pobres, indígenas ou não, que precisam enfrentar com bravura os desafios do preconceito e da intolerância em ambientes hostis. O texto “A raiva de ser índio”, que consiste no primeiro capítulo do livro de Daniel, trata um pouco disso…

A RAIVA DE SER ÍNDIO 

Por Daniel Munduruku

A gente não pede para nascer, apenas nasce. Alguns nascem ricos, outros pobres; outros brancos, outros negros; uns nascem num país onde faz muito frio, outros em terras quentes; Enfim, nós não temos muita opção mesmo. O fato é que, quando a gente percebe, já nasceu. 

Eu nasci índio. Mas não nasci como nascem todos os índios. Não nasci numa aldeia, rodeada de mato por todo lado. com um rio onde as pessoas pescam peixe quase com a  mão de tão límpida que é a água. Não nasci dentro de uma Uk’a Munduruku. Eu nasci na cidade. Acho que dentro de um hospital. E nasci numa cidade onde a maioria das pessoas se parece com índio: Belém do Pará.

Nasci lá porque meus pais moravam lá. Meu pai é índio e viveu numa aldeia, como depois eu iria viver também. Fui o primeiro filho da família a nascer na cidade. Antes de mim já tinham nascido quatro meninos e dois meninos (um dos meninos não cheguei a conhecer) todos fora da cidade. Depois de mim vieram ainda três meninos. Era uma alegria só.

Meus pais tinham ido para Belém em busca de uma maneira de sustentar tantas bocas, uma vez que já não era tão fácil viver na aldeia e eles sonhavam com a cidade. Por isso meu pai aprendeu uma profissão: carpinteiro. Foi, e ainda é, um grande mestre nesse ofício.

Minhas primeiras lembranças – além de um terremoto que vivi aos quatro anos – são as de meu pai martelando, serrando e falando sobre as propriedades da madeira (acho que ele falava era do espírito das árvores só que não me lembro bem disso). De qualquer modo meu pai era um grande artesão e foi graças a essa sua habilidade que pôde sustentar tantos filhos durante tanto tempo.

Nós sempre moramos na periferia de Belém. Nossa maloca não era nossa e muitas vezes tivemos que mudar de lugar, de casa e de bairro. Foi uma época bem sofrida.

Meus irmãos tivera que ir trabalhar na cidade para ajudar nas despesas. Eu mesmo fui vendedor de doces, paçoca, sacos de feira, amendoim, chopp (é um um suco colocado em saquinhos de plástico congelados. Em São Paulo chamam isso de geladinho). Fazia tudo isso com alegria. Eu era uma criança que gostava de fazer coisas novas.

Aldeia Munduruku. Foto: Pib Socioambiental

Só não gostava de uma coisa: que me chamassem de índio. Não. Tudo menos isso! Para meu desespero, nasci com cara de índio, cabelo de índio (apesar de um pouco loiro), tamanho de índio. Quando entrei na escola primária, então, foi um deus-nos-acuda. Todo mundo vivia dizendo: “Olha o índio que chegou à nossa escola”.

Meus primeiros colegas logo logo se aproveitaram pra me colocar o apelido de Aritana. Não precisa me dizer que isso me deixou fulo da vida e foi um dos principais motivos das brigas nessa fase da minha história – e não foram poucas brigas, não. Ao contrário, briguei muito e, é claro, apanhei muito também.

E por que eu não gostava que em chamassem de índio? Por causa das ideias e imagens que essa palavra trazia. Chamar alguém de índio era classificá-lo como atrasado, selvagem, preguiçoso.  E, como já contei, eu era uma pessoa trabalhadora que que ajudava meus pais e meus irmãos e isso era uma honra para mim. Mas era uma honra que ninguém levava em consideração. Para meus colegas só contava a aparência… e não o que eu era e fazia.

Somente um lugar me deixava feliz. Aliás, dois. Um era o quintal de casa, pois a gente morava numa casa onde havia um imenso terreno baldio e ali eu reunia meus colegas para brincar. Ali treinei meus ouvidos para ouvir as conversas das corujas e dos sapos. Ali me refugiava quando queria ficar sozinho e pensar nos conhecimentos que estava adquirindo, os primeiros livros que estava começando a ler. Ali, comecei a jogar futebol nos campos improvisados que a gente fazia.

Havia, porém, outro lugar maravilhoso para onde eu sempre fazia questão de ir. Para esse lugar, entretanto, eu não podia ir sozinho, tinha que ser levado, porque ficava longe da cidade. Era nossa aldeia familiar em Maracanã.

Daniel Munduruki fabricadecultura.org .brDaniel Munduruku. Foto: fabricadecultura.org.br

DANIEL MUNDURUKU

Daniel é índio da nação Munduruku. Formado em Filosofia, é mestrando em Antropologia Social na Universidade de São Paulo. Foi professor da rede estadual e particular de ensino e atuou como educador social de rua pela Pastoral do Menor de São Paulo.

Esteve na Europa diversas vezes como convidado em conferências sobre a cultura indígena e ministrando oficinas culturais. É professor da Fundação Peirópolis e autor de Meu avô Apolinário, Coisas de Índio, Histórias de Índio e O Banquete dos Deuses, entre outros. Coordena na Editora Fundação Peirópolis a Coleção Memórias Ancestrais, série de livros infantis que resgata mitos e lendas das diversas nações indígenas brasileiras.

Para conhecer mais sobre o trabalho de Daniel Munduruku, navegue pelo site que o autor mantém na web.

Fonte desta biografia: Editora Peirópolis

Aldeia Munduruku. Foto: Pib Socioambiental

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MINHA VÓ FOI PEGA NO LAÇO

Por Daniel Munduruku

Pode parecer estranho, mas já ouvi tantas vezes esta afirmação que já até me acostumei a ela. Em quase todos os lugares onde chego alguém vem logo afirmando isso. É como uma senha para se aproximar de mim ou tentar criar um elo de comunicação comigo.

Quase sempre fico sem ter o que dizer à pessoa que chega dessa maneira. É que eu acho bem estranho que alguém use este recurso de forma consciente acreditando que é algo digno ter uma avó que foi pega a laço por quem quer que seja.

– Você sabia que eu também tenho um pezinho na aldeia? – ele diz.

– Todo brasileiro legítimo – tirando os que são filhos de pais estrangeiros que moram no Brasil – tem um pé na aldeia e outro na senzala – eu digo brincando.

– Eu tenho sangue índio na minha veia porque meu pai conta que sua mãe, minha avó, era uma “bugre” legítima – ele diz tentando me causar reação.

– Verdade? – ironizo para descontrair.

– Ele diz que meu avô era um desbravador do sertão e que um dia topou com uma “tribo” selvagem lá por Goiás.

– Eita. Que história interessante – falo arregalando os olhos.

– Pois é. Meu pai disse que meu avô contou que minha avó era muito linda e que olhou bem nos seus olhos antes de correr. Meu avô ficou enfeitiçado por ela. Imediatamente ele tirou o laço do lombo do cavalo em que estava montado e a laçou.

– Que incrível – digo.

– Ela, no começo, esperneou, gritou, chamou pelos outros “índios”, mas ninguém voltou e meu avô a levou para casa e com ela teve nove filhos.

– Uau!

– Meu avô contou para meu pai que vovó era baixinha, tinha cabelos longos bem pretinhos e olhos puxadinhos. Ela ficava horas sentadas na frente de casa penteando os cabelos e com os olhos perdidos no horizonte.

– Ela devia estar cantando a saudade de sua casa – disse para quebrar o clima sombrio.

– Meu avô dizia que ela ficou a vida inteira aguardando que sua “tribo” viesse resgatá-la. Nunca ninguém apareceu. Ela, no entanto, foi muito feliz ao lado do meu avô.

Minha atenção se fixou nesta última frase enquanto meu novo amigo se despedia dizendo que tinha sido um prazer me conhecer. Cumprimenta-me, me olha de cima a baixo, vira as costas e vai embora.

Apesar de ser comum esta situação nunca deixo de pensar nela. Acho esquisito quando alguém se orgulha de ter tido uma avó que foi escravizada por um homem que a usou durante toda uma vida e a obrigou a gestar filhos que provavelmente não queria.

Penso que a maioria das pessoas não se dá conta de que esta narrativa é repetida tantas vezes e de forma poética para esconder uma dor que devia morar dentro de todos os brasileiros: somos uma nação parida à força.

Foi assim com os primeiros indígenas forçados a receber uma gente que se impôs pela crueldade e pela ambição; uma gente que tinha olhares lascivos contra os corpos nus – e sagrados – das mulheres nativas.

Foi assim com os negros trazidos acorrentados nos porões de navios para serem escravos de pessoas que se sentiam superiores apenas por conta da cor de sua pele; as mulheres eram usadas como domésticas e como amantes gerando “brasileiros” que eram desqualificados porque cresciam sem pai.

O Brasil foi “inventado” a partir das dores de suas mulheres e é importante não esquecermos esta história para podermos olhar de frente para nosso passado e aprendermos com ele. O Brasil precisa se reconciliar com sua história; aceitar que foi “construído” sobre um cemitério. Apenas dessa forma saberemos lidar com criatividade sobre a verdadeira história de como “minha avó foi pega a laço”.

Fonte: danielmunduruku

Daniel Munduruku – Biografia

Nasceu em Belém, PA, filho do povo Indígena Munduruku. Formado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia, integrou o programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na USP. Lecionou durante dez anos e atuou como educador social de rua pela Pastoral do Menor de São Paulo. Esteve em vários países da Europa, participando de conferências e ministrando oficinas culturais para crianças.
 
Autor de Histórias de índio, coisas de índio e As serpentes que roubaram a noite, os dois últimos premiados com a Menção de livro Altamente Recomendável pela FNLIJ. Seu livro Meu avô Apolinário foi escolhido pela Unesco para receber Menção honrosa no Prêmio Literatura para crianças e Jovens na questão da tolerância. Entre outras atividades, participa ativamente de palestras e seminários destacando o papel da cultura indígena na formação da sociedade brasileira. Pela Global Editora tem publicado várias obras.
 
Fonte: Global Editora
"Minha vó foi pega no laço"
Foto: alchetron.com
 

 

 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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