Banho de Ervas e uma ‘garrafada’…

Banho de Ervas e uma ‘garrafada’: Purificando o e o espírito…

Depois de quase um mês após o ritual final da 2a Conferência Indígena da Ayahuasca posso dizer que, para mim, este ritual ‘fechou’. E tive essa sensação após o segundo dia de banhos com ervas medicinais na aldeia Shane Kaya, aos cuidados do velho Shoaynë e de suas filhas e netos, quando, ao sentir o líquido morno e cheiroso derramando-se sobre minha cabeça senti – literalmente – o mundo girar: – “Melhor tu ficar sentado”. – Mukani falou com sua voz suave, enquanto passava em minhas costas as folhas quentes da fervura. Foram três dias de ‘banhos’ muitos fortes, e cheios de significados.

Por Por Jairo Lima

Terminado estes dias de lavagens do corpo e do espírito voltei para casa. Na mochila um frasco com dois litros de uma ‘garrafada’ preparada pelo Shoaynë, para continuidade da ‘dieta’ iniciada na aldeia. Digo a vocês, caros leitores: pensem num remédio forte! Mexeu com muitas coisas em mim.

Assim, nestes dias estive refletindo sobre essa outra face dos conhecimentos tradicionais e das chamadas ‘medicinas’ indígenas: as ervas (plantas) e o conhecimento sobre seus diferentes usos.

É algo ainda pouco falado, lido ou ‘pensado’, que a maioria só se dá conta quando vê alguma postagem nas redes sociais, quando alguém vai a alguma aldeia e, entre as muitas imagens coloridas, interessantes e desinteressantes de autopromoção aparece, em raros casos, essa prática.

Claro que isso é usual em muitas aldeias, não se tratando de algo tão exótico assim. A questão é que o conhecimento sobre como fazer esse preparo tanto para os banhos, quanto para beber, é algo bastante ‘fino’ e profundo que, certamente, nos dias de hoje, principalmente nesse circuito neo-xamânico é algo inusual, até porque com certeza, poucos dominam esse conhecimento. Não se trata só de ‘juntar um monte de folhas e cascos’ e cozinhar tudo. Com certeza é preciso conhecer a fundo a coisa toda para não intoxicar alguém.

Quem já passou por um banho desses, ou utilizou dessas ‘garrafadas’ com com algum (as) dos (as) mestres (as) da sabe muito bem do que estou falando.Banho de Ervas Jairo Alessandra Melo

A prática dos banhos como parte de um tratamento ou limpeza do corpo e do espírito não é exclusividade indígena, mas, certamente, pelo menos no que se refere aos indígenas no Acre, é uma das menos conhecidas, assim como os demais ‘remédios’ preparados, como as chamadas ‘garrafadas’.

Benki Ashaninka vem desenvolvendo tratamentos excelentes com seus preparos e chás, como, por exemplo, o da folha de graviola. Isso mesmo: folha de graviola: Remédio simples, mas eficaz.

E como não citar os preparos e abluções feitas pelos Puyanawa, que já aliviaram e curaram muita gente aqui pelas bandas do Juruá? Ou como não falar dos banhos medicinais com as curadoras do povo Yawanawá?

Eu, como sou desconfiado por natureza, e minha curiosidade é irmã da prudência, não ‘topo qualquer parada’ só porque está na moda ou porque a galera está usando. Para fazer algo que envolva meu equilíbrio espiritual e material preciso confiar muito em quem me entrego aos cuidados.

Até mesmo para beber do Vinho Encantado preciso confiar naquele que me serve e na sua competência para o preparo. Assim, este cuidado para com o restante do ‘receituário’ é o mesmo. Afinal, não se trata só de um chazinho ou um simples ‘banho de descarrego’.

Sei que tô chovendo no molhado ao tratar dessas terapias alternativas, em contraposição ao envenenamento, que somos impelidos a sofrer com o excesso de medicamentos que nossa medicina alopático nos enfia goela abaixo ou, pior: direto na veia. Se por um lado são importantes, por outro, em alguns casos, nos trazem efeitos colaterais nada bons, fazendo até com que nosso organismo adquira uma resistência ao medicamento após algum de uso, e isso posso afirmar com todo conhecimento de causa, afinal, para minhas dores nas costas cheguei num estágio em que os medicamentos já não surtiam o efeito desejado.

Certamente que não estou advogando ‘talibanicamente’ pelo abandono dos medicamentos e tratamentos de nossa ciência convencional, nada disso, mas creio ser importante aliarmos com outras possibilidades.

A imersão em um tratamento ou dieta de cura numa aldeia, pelas mãos de um verdadeiro conhecedor das ervas e seus usos, é, sem dú nenhuma, uma experiência muito boa, pois alia o tratamento de nossas agruras da matéria com o equilíbrio espiritual, afinal, de que adianta  a máquina estar calibrada se sua essência ainda está doente?Banho de Ervas Jairo Bruno Valentim 3

Claro que esse ‘upgrade’ natural e místico não se destina só as enfermidades da matéria, pois, em muitos casos, o que se manifesta em nosso corpo, ou na luta diária nesse mundo caótico que vivemos tem, em muitos casos, origem no espírito. Assim, creio ser de bom tamanho essa ‘atualização’ no sistema, lavando e purificando o nosso ‘Eu Verdadeiro’. Isso sem contar a necessidade de lavar a sujeira das cargas cármicas que alguns energúmenos insistem em nos jogar… certamente compreendem o que estou querendo dizer.

O que digo aos meus poucos leitores é que, no atual ciclo de minha vida, onde as décadas começaram a pregar-me armadilhas, pus a mochila nas costas e com a family picamos a mula em busca de fortalecer e equilibrar mais a existência. E essa necessidade ficou claríssima antes, durante e depois da conferência da ayahuasca.Banho de Ervas Mukani Jairo Alessandra Melo

Enquanto escrevia este , eis que meu tocou e, para minha surpresa, Mukani estava do outro lado da linha, me informando que o velho Shoaynë precisava falar comigo (que maravilha a tecnologia e o acesso a comunicação hoje em dia).

Com seu português indígena, onde as palavras se embolam com as indígenas, perguntou como eu estava, se meus sonhos estavam bons, se os efeitos mais ‘fortes’ da ‘garrafada’ já tinham passado, etc.

Fiquei bem feliz com a preocupação e tratei logo de dar as respostas ao meu doutor, respondendo todos os questionamentos e perguntando outros detalhes sobre o tratamento.

Nos despedimos acertando minha próxima visita na aldeia para mais uma sequência de abluções e defumações… maravilha! Fiquei feliz, pois, sentir-se querido e saber que alguém zela por sua pessoa é algo reconfortante.

Bem… e já que descortinei publicamente o meu de saúde, creio ser interessante logo dizer que estou bem assistido por um ‘corpo de doutores’ muito bons, somando-se a Mukani e ao velho Shoaynë tenho que citar: O amigo Bira Iskukuwa Yawanawá, excelente no tratamento quiroprático e que vem (re)encaixando meus ossos, e sem o qual dificilmente eu teria aguentado a semana pós-conferência; o velho amigo Benki Ashaninka com suas ervas perfumosas e os ‘voos’ do tsiroanko* e; o Puwe Puyanawa com seus chás de ervas fortes para minha eterna gripe. Com um ‘corpo de doutores’ desses certamente vou viver uns duzentos anos, né?

É isso… nesse caminhar que trilhamos, como equilibristas em cordas bambas, nesse grande circo da existência humana, é preciso sempre atenção para que nossos lastros de segurança estejam firmes, e, também, que a ‘corda’ em que nos equilibramos não esteja puída…

E quanto à conferência??? Bem, vem mais coisa por aí… aguardem, primeiro preciso ‘aterrizar’ definitivamente das alturas em que fui ‘arremessado’ nos rituais que participei…

*Pássaro japó, sagrado para os Ashaninka.

Jairo Xapuri

Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, na região do Juruá, Acre. Gestor da página Crônicas Indigenistas no Facebook (Crônicas Indigenistas ). Lá encontrará, além de nossos textos, várias e diversificadas informações.

Fotos desta matéria, cedidas por Jairo Lima: Ramon Aquin, Bruno Valentim, Alessandra Melo.

 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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