Chico Mendes 30 Anos: Ressoam as Vozes da Floresta –
Por: Jaime Sautchuk
Trinta anos após seu assassinato, Chico Mendes vive. A exploração econômica da floresta em pé por aqueles que nela vivem, num exemplo global de que a verdadeira sustentabilidade é possível em qualquer bioma, em qualquer rincão do Planeta, é seu legado maior.
Por isso mesmo, seus ensinamentos são tão combatidos por aqueles que não estão nada preocupados com o futuro da Humanidade, que são movidos pela ganância, pela busca do lucro rápido.
Naquela boca de noite de 22 de dezembro de 1.988, os chumbos de uma espingarda calaram a voz de um jovem homem do mato. Um seringueiro humilde como tantos outros que morrem pela ação de ruralistas, madeireiros e mineradores.
Mas não emudeceram o líder, não foi o crepúsculo de uma causa. Ao contrário, fizeram reverberar mundo afora um exemplo palpável de racionalidade, que ganha caráter de denúncia, de luta contra a irracionalidade. Contra um capitalismo que, ao invés de avançar no tempo, regressa à época dos colombos e cabrais.
Nas últimas duas décadas, havia ocorrido uma redução no ritmo do desmate, em função de políticas públicas adequadas e reforço da vigilância e fiscalização feitas pelo Ibama e outros órgãos governamentais. Mas, nos últimos dois anos, vêm ocorrendo mudanças na legislação e sinalização do governo instalado após o golpe de 2016 em favor da exploração desordenada de recursos naturais.
Projeções feitas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com base na atual realidade do país, são alarmantes. A partir de 2020, o desmatamento da Amazônia brasileira deve subir 268%, saltando dos já volumosos 6,9 mil km², em 2016, pra 25,6 mil km² por ano.
Segundo a matemática Aline Soterroni, pesquisadora daquele órgão, em entrevista à revista Exame, “o modelo se mostrou eficaz quando usado em retrospectiva, ou seja, quando se considerou variáveis passadas para validar as simulações futuras”.
Esse método foi usado pelo governo brasileiro pra definir sua meta de contenção do desmatamento ilegal até 2030, que foi submetida junto ao Acordo de Paris, assinado pela maioria dos países do mundo, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2015. No entanto, o presidente eleito já avisou que o Brasil deverá deixar esse acordo a partir de sua posse, em janeiro próximo, seguindo o exemplo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
“No ‘cenário Bolsonaro’, simulamos o não cumprimento do Código Florestal, com a competição pelo uso da terra sendo regida pela demanda. O resultado é que, em uma década, o desmatamento médio para vai a 25,6 mil km². Não é algo absurdo de se imaginar, pois já tivemos taxas parecidas em 2004, quando praticamente não havia políticas de combate ao desmatamento”, afirmou a pesquisadora.
Contudo, o desmatamento é apenas a parte mais visível de um processo avassalador. Começa que, com as árvores que caem, vai junto o restante da flora, com seu inestimável valor, e toda a fauna, pois os animais de todos os tamanhos ficam ao desamparo. Ademais, a retirada da floresta reduz a produção de dióxido de carbono que é colocada na Atmosfera, com suas consequências bastante previsíveis.
Isso tudo sem falar que, na atualidade, as áreas desmatadas passam a ser usadas no cultivo de grãos, especialmente a soja. Nos últimos anos, após invadir todo o Cerrado da região Centro- Oeste e grande parte do Nordeste, essa leguminosa vem ocupando também novas áreas da Amazônia, do Pará ao Acre. E ela é a que mais demanda o uso de agrotóxicos, o que significa a contaminação dos ambientes, com o consequente envenenamento das águas superficiais, pondo em risco a vida ao longo de igarapés e rios.
Também a mineração ilegal, hoje em larga profusão em toda a Amazônia, é fator de destruição. Pode-se dizer que os garimpos de ouro e pedras preciosas estão presentes nos vales de todos os rios da região, com seu alto poder devastador, o que é facilitado pelo enfraquecimento dos órgãos federais e locais de fiscalização, inclusive em áreas de unidades de conservação.
TERRORISMO
Agora, em novembro, jagunços de fazendeiros atacaram mais duas vezes fiscais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). No início do mês, um veículo do órgão foi incendiado em Guariba, noroeste do Mato Grosso, próximo à Reserva Indígena de Aripuanã.
Duas semanas depois, foi no município de Buritis, em Rondônia, que os pistoleiros atearam fogo em três carros do órgão, disparando armas de fogo contra os agentes públicos.
O ICMBio é uma autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, encarregada de cuidar das unidades de conservação federais no país inteiro, atribuições que eram do Ibama até 2012. Neste caso, sua equipe tentava impedir o desmatamento na Floresta Nacional Itaituba-2, de onde carretas e mais carretas de madeira têm sido retiradas.
Essa reserva fica no que está sendo chamado de “arco do desmatamento” – enorme área localizada na tríplice fronteira dos estados de Rondônia, Amazonas e Pará. Ali, a exploração ilegal de recursos naturais campeia solta. Atentados desse tipo têm sido frequentes em toda a região, numa tentativa de intimidar os agentes federais. Os ruralistas, madeireiros e mineradores receberam cartão verde do governo de Michel Temer, que adotou várias medidas favoráveis àquelas atividades.
O maior deles ocorreu há pouco mais de um ano, quando oito carros do Ibama e do ICMBio foram queimados em Altamira, Sudoeste do Pará. Eram caminhonetes novas, ainda nem descarregadas do caminhão-cegonha, que seriam empregadas na fiscalização.
Três meses depois, as sedes dos dois órgãos em Humaitá, no Sul do Amazonas, foram incendiadas. A ação criminosa foi após uma operação de combate ao garimpo ilegal no Rio Madeira. Em todos os casos, os bandoleiros agem em grupos numerosos e muito bem armados. Mas seus patrões não assumem a responsabilidade.
Se com os órgãos públicos e seus funcionários as ações são nessas dimensões, é possível se imaginar o que ocorre com os trabalhadores rurais e suas entidades, sem que a sociedade tome conhecimento. São ocorrências que ficam restritas às suas comunidades, diferente do que ocorreu com Chico Mendes.
Aliás, ele mesmo, poucos dias antes de sua morte, havia dado uma entrevista ao Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, mas o jornal não a publicou, sob a alegação de que ele não era pessoa conhecida do grande público. Com a repercussão internacional do assassinato, porém, dias depois o jornal publicou a matéria.
SUSTENTABILIDADE
O sistema econômico e socioambiental que Francisco Alves Mendes Filho desenvolveu, no Acre, era bem diferente. Tanto que logo chamou a atenção não apenas dos outros países da Amazônia, mas do mundo inteiro, pela sua originalidade e pelo seu caráter humano, em que a solidariedade se sobrepõe à concorrência, a defesa da natureza se sobrepõe à destruição e o amor se sobrepõe ao ódio.
Sua formação foi na própria mata, onde ele nasceu, em 1944, e viveu. Era filho e neto de migrantes cearenses que haviam se embrenhado na Amazônia por chamamento do ciclo da borracha, com o sonho de uma vida melhor, longe da seca crônica que assolava a Caatinga.
Foram bater inicialmente em um seringal do sudoeste do Acre, numa área bem próxima à fronteira com a Bolívia. Com o passar dos anos, porém, pegaram o rumo de Xapuri, mais ao norte, que não era uma pequena vila incrustada na floresta, como tantas outras que havia na região. Seu nome relembra os xapurys, principal grupo indígena que habitava aquela região.
Ali foi que teve início a Revolução Acreana, em que o ex-militar gaúcho José Plácido de Castro liderou, nos primeiros anos do século XX, a guerra contra a Bolívia, que dominava aquele território que hoje é o Acre. Em verdade, o governo do vizinho país havia entregue aqueles seringais ao Bolivian Sindicate, poderoso conglomerado da borracha com sede nos Estados Unidos.
Liderando um exército formado por seringueiros, índios e voluntários de várias partes do país, Plácido de Castro declarou a independência daquele pedaço da Amazônia, com a intenção de ali criar um novo país. Em 1905, no entanto, o governo do presidente Rodrigues Alves negociou um tratado de paz, e o Brasil pagou à Bolívia por aquele território, assumindo o controle daquele pedaço do país.
A sangria da seringueira pra retirada do látex e as caminhadas pelas “estradas” (trilhas) dos seringais preenchiam seus dias desde a infância. Não havia escolas por ali, nem interessava aos ricos seringalistas dar estudo aos seus súditos, de modo que Chico foi se alfabetizar aos 19 anos de idade, por bondade de um forasteiro culto que chegou por lá.
Esse sujeito era Fernando Euclides Távora, também cearense, ex-militar do movimento dos tenentes e militante político que, em Fortaleza, havia participado do levante comunista de 1935, sufocado pelo regime do presidente Getúlio Vargas.
Depois, já em 1952, tomou parte da Revolução Nacional na Bolívia, evento que marcou a história do vizinho país, por instituir direitos iguais à população indígena e modernizar a economia boliviana. De lá, ele voltou escondido ao solo auriverde e ficou no Acre, mas desapareceu por ocasião do golpe de 1964, que deu início à ditadura no Brasil.
Desde cedo, porém, Chico Mendes percebia a injustiça das relações trabalhistas nos seringais. Era o sistema de barracão, que retinha todo o látex coletado e fornecia os bens de que os seringueiros precisavam. No final do mês, a conta nunca batia, a favor do seringalista, no modelo de servidão, ou semiescravidão, que vigorava em fazendas do país inteiro.
Mais escutador do que falador, ele puxava conversa com todas as pessoas que encontrava. Mas não se arvorava a dono da verdade. Ouvir a opinião dos colegas de lida e seguir a maioria era sua regra fundamental. E buscava conhecimento onde quer que ele estivesse, de modo que a educação passou a ser sua grande obstinação. Afinal, mesmo pra conferir a caderneta do barracão, era preciso saber ler e fazer contas.
Nisso, contribuíram muito os missionários católicos, atuantes nas comunidades eclesiais de base, as CEBs, implantadas nos seringais. Assim, no final da década de 1960, surgiram os primeiros movimentos reivindicatórios de seringueiros da região de Xapuri, com Chico sempre presente, ativo.
O primeiro passo seria o de deixar as seringueiras em pé, pois fazendeiros de outras regiões começavam a derrubar a mata pra formar pastos e soltar bois, com incentivos fiscais do governo federal. Ele não entendia o porquê daquele processo, já que estava ali, naquele ambiente, o sustento de tantas famílias, não na pecuária bovina.
Surgiu, então, a figura do “empate”. Grupos de trabalhadores da borracha desarmados, com mulheres e crianças, se uniam pra empatar (impedir) a derrubada da mata, enfrentando peões, jagunços e muitas vezes até a polícia, que era chamada pelos recém-chegados. Formavam-se grandes alvoroços, mas pacíficos, de modo que os mais fracos saíam vitoriosos.
Esse processo foi, também, o embrião dos sindicatos de trabalhadores rurais, que dariam respaldo legal aos embates trabalhistas e apoio nas lutas políticas. Essas entidades foram criadas com apoio da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
O primeiro deles surgiu em 1975, no município de Brasiléia, criado em parceria com o seu amigo Wilson Pinheiro, que se tornou presidente da entidade, tendo Chico como secretário-geral.
Fazendo um parêntesis, vale lembrar que Pinheiro foi assassinado na sede do sindicato em 1980, oito anos antes de Chico. Sua morte gerou uma grande manifestação naquela cidade, que contou com a presença do então líder metalúrgico de São Bernardo do Campo (SP), Luiz Inácio Lula da Silva.
Como liderança sindical, Chico Mendes foi procurado pelo MDB, o partido de oposição consentido durante a ditadura, e foi eleito vereador de Xapuri, o que fortaleceu o movimento dos seringueiros. Aos poucos, eles deixavam a condição de “cativos” e passavam à de “libertos”, que significava a desvinculação do sistema de barracão vigente.
Ainda durante o mandato, ele migrou ao Partido dos Trabalhadores (PT), que ajudou a criar naquele estado e, anos depois, foi membro de sua direção nacional. Como líder sindical, participou de inúmeros eventos e entidades, inclusive como dirigente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Outro problema local era o de conflitos entre índios e trabalhadores, fomentados pelos seringalistas como forma de enfraquecer os movimentos populares e, assim, ampliar seu poder. Também nisso, porém, Chico pôs em prática sua rústica diplomacia. Ele se uniu a Ailton Krenak, principal liderança indígena da região naquele momento e, juntos, formaram a Aliança dos Povos da Floresta, entidade que desfez as desavenças.
Com habilidade, os dois conseguiram minimizar os pontos de conflito, montando uma pauta com os itens de interesse comum, que eram mais urgentes. Muito rapidamente, ambas as comunidades perceberam que brigavam por questões secundárias, pouco relevantes.
REFORMA AGRÁRIA
Naquela fase histórica, o governo militar tinha decidido ocupar a Amazônia com projetos faraônicos, como a Transamazônica e outras rodovias, e um tipo de reforma agrária que tentava adequar àquela região modelos vigentes em outras partes do país, como o das agrovilas.
Nos seringais do Acre, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) negociou com os seringalistas e iniciou a implantação de uma nova estrutura fundiária em algumas áreas, justamente aquelas onde estavam ocorrendo mobilizações. Ficou definida a distribuição de módulos de 50 hectares aos seringueiros, mas eles não aceitaram a proposta.
Foi preciso explicar ao Incra que a medida agrária utilizada na região era outra: eram as “estradas”, aqueles caminhos que separam as árvores vincadas pra extração da goma-elástica. Cada trabalhador tomaria conta de três “estradas”, que era o mínimo necessário ao sustento de uma família, mas não precisaria ser dono da área, pois esta seria de propriedade coletiva.
Foi deste modo que surgiu a ideia de criação de reservas extrativistas (Resex) e de reservas de desenvolvimento sustentável (RDS). Mas essa nova modalidade de reforma agrária só se tornou oficial em 1985, no Encontro Nacional dos Seringueiros, realizado em Brasília. Mais de 100 seringueiros criaram o Conselho Nacional dos Seringueiros, como entidade representativa, tendo Chico como um de seus conselheiros.
Hoje, são dezenas dessas unidades de conservação ambiental espalhadas pelo país, em diferentes áreas socioeconômicas. A maior parte fica na região Norte, em áreas florestais, mas a de Lago do Cedro, no município de Aruanã (GO), por exemplo, protege a atividade de uma comunidade de pescadores do rio Araguaia.
A essa altura, aquela movimentação já havia despertado o interesse de universidades, ONGs, veículos de comunicação social e instituições públicas brasileiras e estrangeiras, que viam em Chico Mendes a figura central de tudo. A antropóloga gaúcha Mary Helena Alegretti é uma pesquisadora que, por coincidência, cursava mestrado na Universidade de Brasília (UnB) naquele período, estudando seringais do Acre, no final da década de 1970.
Ao conhecer Chico Mendes, passou a desenvolver sua tese de doutorado sobre “Desenvolvimento Sustentável” e passou a colaborar com o seringueiro em diversas atividades. Com ele, por exemplo, ela montou um projeto de alfabetização de adultos na floresta, atendendo a comunidades de seringueiros e de outras populações tradicionais.
Em seus escritos, Mary conta como a grande mídia foi atraída por aqueles acontecimentos. Em 2008, ao lembrar os 20 anos da morte do líder da floresta, ela narrou:
“A minissérie ‘Amazônia: de Galvez a Chico Mendes’, da Globo, contribuiu para divulgar a história da conquista do Acre, o período da borracha e, inclusive, a vida de Chico Mendes. No entanto, o documentário terminou com sua morte, passando a impressão de que sua luta não teve consequências práticas para a Amazônia, para os seringueiros e demais trabalhadores extrativistas.”
É grande o número de documentários em diversos suportes (filmes e livros, principalmente) produzidos no tempo em Chico ainda era vivo e após sua morte. E incontável a quantidade de matérias especiais produzidas por jornais, revistas e portais da Internet no mundo inteiro.
MÁRTIR MUNDIAL
A espantosa habilidade com que Chico Mendes defendia, na prática, o manejo sustentável da floresta logo foi reconhecida também por organismos internacionais. Em 1987, em solenidade realizada em Londres, ele foi agraciado com o prestigiado Prêmio Global 500, da ONU, dedicado a personalidades ambientalistas de todos os continentes, e com a medalha de mérito da Better World Society, de Nova Iorque.
No mesmo ano, ele foi convidado a encontros no Senado dos Estados Unidos e no BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), onde fez palestras sobre o processo de ocupação da Amazônia e seus projetos sobre desenvolvimento sustentável, com grande repercussão.
Em 1988, o BID suspendeu o financiamento da construção da rodovia BR-364, por não respeitar áreas de preservação. Meses depois, ele foi assassinado, passando a ser considerado mártir, como Martin Luther King, Mahatma Gandhi e Nelson Mandela.
Jaime Sautchuk
Jornalista Escritor