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THIAGO DE MELLO: COMO UM RIO

THIAGO DE MELLO: “COMO UM RIO”

Como um Rio 

Ser capaz, como um rio

que leva sozinho

a canoa que se cansa

de servir de caminho 

para a esperança.

 E de lavar do límpido

a mágoa da mancha, 

como um rio que leva

e lava.

Crescer para entregar

na distância calada

um poder de canção,

como o rio decifra

o segredo do chão.

Como um rio.

THIAGO DE MELLO: COMO UM RIO
– Foto: Reprodução/Internet

Thiago de MelloNascido em Porantim do Bom Socorro, município de Barreirinha, estado do , no dia 30 de março de 1926, Amadeu Thiago de Mello é ensaísta, escritor e poeta maior do e da .

O poema “Como um rio” foi extraído do livro “Amazonas – Águas, Pássaros, Seres e Milagres”, publicado pela Editora Salamandra, 2a impressão, no ano de 1988. 

Ao longo da vida, Thiago esteve sempre ligado às artes e às resistência. Começou como colaborador do “O Comício”,  jornal  de oposição ao governo de Getúlio Vargas. Em 1950 publicou no  Jornal Correio da Manhã, seu poema “Tenso por Meus Olhos”. Em 1951 publicou “Silêncio e Palavra”, seu primeiro livro de poesias.  

O poeta da resistência foi também diplomata. Em 1963, foi adido cultural no Chile. Ali conheceu Pablo Neruda. Volta ao Brasil em 1965, ano em que publica “Faz Escuro Mas eu Canto”, um de seus poemas mais lindos. Perseguido pelo regime militar, em 1968 volta para o Chile, onde ficou exilado por 10 anos, de onde publicou “Poesia Comprometida com a Minha e a Tua” (1975) e “Estatutos do Homem” (1977). 

Desde 1978, dividiu a maior parte de  seu tempo entre sua linda casa às margens do rio Amazonas, na cidade de Barreirinhas e seu paraíso no rio Andirá.

Dente outras obras primas, publicou  “Horóscopo Para os Que Estão Vivos” (1982), “Arte e Ciência de Ensinar Papagaio” (1984), “No Campo de Margaridas” (1986), “De Uma Vez Por Todas” (1996), “Silêncio e Palavra” (2001) e “Ajuste de Contas” (2014).

Em 2008 fez, especialmente para a Xapuri, o poema “O sonho que cresce no chão da floresta”, para marcar os 20 anos do assassinato de , seu amigo em vida.

A THIAGO DE MELLO

cujo dom da amizade abençoou a minha vida 

Conheci Thiago de Mello no papel, no final dos anos 60, quando comecei a estudar Letras. Professor de literatura, dei aulas sobre Thiago nos anos 70. “Expoente da Geração de 45” – o que eu acreditava ser um bonito elogio não era suportado pelo poeta (eu ia dizendo “era odiado”, mas Thiaguinho não conhecia esse sentimento).

Por George Ney Fernandes 

Nos anos 80, em uma recepção em sua homenagem, em Montevidéu, eu vi o homem Thiago. Não posso dizer que em carne e osso porque ele não era feito dessas matérias. Era luz, pura luz, coração estrelado, brilhando todo de branco. Vi de longe, como quem reza. E é sobre o homem Thiago de Mello que vou rabiscar estas linhas.

Em 1994 sim, no Chile,  conheci para valer Amadeu Thiago de Mello. O poeta havia sido enviado para lá como Vice-Diretor para Assuntos Culturais do Centro de Estudos Brasileiros (CEB). Muito pouco. Ele já tinha sido Adido Cultural, décadas antes, convivera e vivera com Pablo Neruda (a quem chamava “Paulinho”), conhecia e era conhecido de todo mundo. De Deus, não. Tinha era intimidade com ele.

Curioso. Era daquelas pessoas de que se tem a impressão de que já nasceram sábias e de cabelos brancos. Mas estava alquebrado, triste, tinha sofrido um acidente em casa, uma fratura, teve de ser operado. Aí descobriu-se pólvora estranha: não tinha seguro nenhum, o governo não previa a hipótese de que pudesse morrer ou sequer ficar doente.

A generosidade do embaixador da época engenhou a solução: Thiago ia escrever uma antologia da poesia brasileira, vertidos para o espanhol todos os poemas por ele mesmo. Todos os direitos seriam do poeta. Atrevido, vi que era a chance de chegar mais perto, e me ofereci para ajudá-lo, “dando uma olhada”.

Aceitou na hora, e me pediu sugestões, ideias, que eu revisasse a lista, e foi assim que Álvares de Azevedo entrou na antologia. Acho que Thiago não apreciava muito os românticos: afinal, só precisa de romantismo quem não sabe amar.

E amar era tudo, para Thiago: era o ofício de viver, que gerava o ofício de escrever. Aí está a chave da questão: escrever sobre que assunto? O amor, é claro, que para o poeta poderia ter começado numa aldeia indígena do Andirá, por exemplo. A Amazônia não construiu Thiago. Ele era a Amazônia encarnada em semideus, a paz do seu branco luminoso misturado ao verde da mata fechada, ao marrom azulado dos aguapés dos igapós.

Aliás, aqui já estamos falando da Semana de Arte Moderna, e Thiago manteve sempre uma birra amistosa com Manoel Bandeira, de quem era amigo e grande admirador – o poeta que, sabendo tudo de versificação, optou pela liberdade total, pela libertinagem mesmo no escrever.

Pelo impulso de Thiago, fui levado a ministrar um curso de Panorama da no CEB, e ele, Thiago, deu a aula sobre Bandeira, a meu pedido. Foi um alumbramento. Thiago sabia, como ninguém, ou talvez como Vinícius, dizer as coisas mais profundas da maneira mais simples. Mas à sua maneira.

Era Thiago de Mello, Thiago só, Thiago único, de fora do eixo Rio-São Paulo Minas que dominava (não domina ainda?) o estudo da literatura do Modernismo, ou dos regionalistas “de segunda geração”, acima de tudo nordestinos.

Thiago era um amante da integração dos povos. Primeiro a Amazônia, depois a integração – ensinou-me. Levou-me assim à Universidade do Chile, como aluno do Mestrado de Literatura Hispano-americana.

E se foi do Chile. Mas voltou para ser homenageado, e aí, eu já professor da Universidade, onde inaugurei, também por inspiração sua, a cátedra de Estudos Brasileiros, na recém-criada carreira de Estudos Latino-americanos, convidei-o para dar uma aula à minha heterogênea turma. Aceitou, em troca de dois livros.

Foi uma celebração litúrgica: vida, mata, fome, miséria, Brasil, poesia, Política, tudo desfilou no fio da faca da língua do Thiago. O Ofício do Escritor – creio que foi ele que deu esse título à missa profana. Uma querida aluna chilena gravou toda a aula, em vídeocassete (recordemos que estávamos em 1996 ou 97). Um tesouro que guardo.

Hospedamos o poeta e Aparecida, e fizemos uma festa, um sarau em sua homenagem. Convidou quem quis, quem coubesse em nossa casa e seu jardim, e foi impressionante ver o carinho que o rodeou e o prestígio de que gozava.

Saíamos pela rua, todos os dias, percorrendo casas de seus amigos chilenos, e todos os dias o poeta era parado por admiradores, discípulos, gente de todo gênero. As filhas de Violeta Parra cantaram e tocaram violão para ele. Thiago também tocou. Aí, fiquei sabendo de sua parceria com um dos filhos, o Manduka.

Por fim, recebeu um convite do Japão, adiou a viagem de volta a Barreirinha (mostrou-me, com o orgulho de uma criança, fotos e planta da casa que lhe foi doada por amigo, projeto do também amigo Lucio Costa), em plena selva.

Problema: precisava de um terno escuro (havia décadas só se vestia de branco) e de uma gravata. Não teve dúvida. Com a simplicidade de troca dos índios, abrimos meu armário e ele escolheu: “quero esse terno e aquela gravata”. Thiago era assim, um simples, um índio, e doava com a mesma naturalidade e sem cerimônia como recebia.

Tive a sorte de revê-lo, já quase entrado o milênio, em Havana, como membro do corpo de jurados do Prêmio Casa de Las Américas, talvez o mais importante prêmio literário da América Latina. Quis hospedá-lo de novo, mas não pude. As regras da Casa eram muito estritas, e todo o júri ficava necessariamente em um mesmo hotel.

Thiago, encabulado, deu um jeito de retribuir o oferecimento, com dois presentes: um dia inteiro em nossa casa, onde teve a pachorra de ler, corrigir e emendar um projeto meu de tese sobre Cuba e – grande surpresa – a ida, de outro dia inteiro, à casa do insuperável Pablo Milanés, em Matanzas, perto de Havana. Almoço íntimo, feijoada preparada pelo próprio Pablito, para sua família mais fechada, Thiago, Aparecida, Celminha e eu.

Sem graça, não tive coragem de quebrar o espírito familiar e pedir a Pablo que cantasse, ou a Thiago que recitasse algo. Passamos um dia inteiro conversando, beliscando partes de feijoada, tomando um grande rum.

Guardei disso só uma foto. Guardei, também, uma foto da ida a nossa casa, junto com a dedicatória inesquecível, em que Thiaguinho me concede a honra de dizer: “Ney querido, sempre seremos assim…caminhando pelos campos da ternura.”

Tento caminhar, poeta, mas sem sua companhia ficou difícil. Você é plural. Eu busco ser apenas um aprendiz. 

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Nota do Autor: “Thiago de Mello,  cujo dom da amizade abençoou a minha vida” é plágio meu de uma dedicatória que Thiago, generosamente, apôs em um livro que deu a mim e a minha : “para Celminha e Ney, corações estrelados, cujo dom da amizade abençoa a minha vida”. Thiago/99/Havana. 

George Ney Fernandes é professor de (bacharel e licenciado, UFF) e mestre em literatura hispano-americana (Universidade do Chile).  Publicado em O Eco, em 20 de janeiro de 2022. 

THIAGO DE MELLO: "COMO UM RIO"
Foto: Amazônia Real
 
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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