A Carta-testamento de Getúlio Vargas faz 70 Anos
No dia 24 de agosto de 1954, Getúlio Vargas se suicidou em seus aposentos no Palácio do Catete, então sede da presidência da República.
No que se refere ao suicídio do presidente Vargas, a referida Carta foi, por certo, cuidadosamente pensada para provocar todos os atores políticos à época, principalmente o povo. Sua intenção ao atirar a arma direcionada para o seu peito à altura do coração tinha um recado e uma consequência imediata, a de respingar em seus mais ferrenhos adversários.
Neste sentido, os termos da última manifestação política do presidente representaram mais do que um ato político. Foi, sobretudo, o esboço de um projeto de Estado nacional, no qual pela primeira vez um presidente da república brasileira identifica e denuncia a presença de forças antinacionais internas e externas, o que nem sempre tem merecido o reconhecimento dos analistas.
Ao reproduzirmos ao final o conteúdo da Carta, que tem sido justamente considerada como um testamento político, cabem algumas observações a respeito do contexto em que esse trágico episódio ocorreu. A começar pela conjuntura internacional sob o peso da Guerra Fria a nortear as políticas externas de todas as nações direta ou indiretamente vinculadas aos dois campos ideológicos.
De um lado, o Ocidente Capitalista liderado pelos EUA, e de outro, a Comunidade Socialista Mundial tendo a URSS como representação central desse bloco. Como é sabido, o fim da Segunda Guerra produziu subprodutos objetivos para que o conflito se desdobrasse agora centrado na disputa da hegemonia entre os dois grandes vencedores da guerra contra o nazifascismo.
Um desses fatores de continuidade, entre outros, se encontrava na Ásia, mais especificamente na Coréia, em meio à guerra civil resultante da própria guerra mundial.
Não deixou de ser uma extensão da disputa que passaria a caracterizar os rumos imediatos das relações internacionais. Nessa ocasião, o governo norte-americano diretamente envolvido nesse conflito solicitou o apoio brasileiro e Vargas rejeitou o envio de tropas para o conflito.
Foi uma demonstração de independência diante do país que ostentava uma indiscutível posição de retaliação diante de mudanças que pudessem afetar a sua posição em áreas onde exercia sua influência.
Atitude que aconteceu em meio à vitoriosa campanha “O Petróleo É Nosso!”, que resultou na criação da Petrobras. Dois exemplos dignos de reafirmação da soberania nacional lastreados pelo apoio popular. No plano interno, o segundo governo Vargas eleito diretamente pelo povo mesmo assim não logrou de imediato a aceitação das urnas por parte da oposição que não esquecera os tempos de sua ditadura.
Eram forças políticas distintas, uma vez que reunia os liberais udenistas e os comunistas, ambas as correntes a exercerem cerrada contestação à volta de Vargas. O jornalista Carlos Lacerda e o seu jornal A Tribuna da Imprensa tinham como contraponto o jornal Última Hora do também jornalista Samuel Wainer, cujas matérias visavam combater os opositores do governo e em consequência apoiar o presidente Vargas, na arena jornalística.
Nesse cenário a intensificação do embate político ganhou uma dimensão jamais vista, pelo menos desde os tempos do governo de Arthur Bernardes (1922-1926), em cujo governo ocorreram as primeiras dissidências no seio das grandes oligarquias e deram lugar ao ciclo do Tenentismo.
O mesmo ímpeto oposicionista ocorria com a imprensa comunista, pois tanto o órgão oficial do partido A Voz Operária como a Imprensa Popular, periódicos do PCB associavam o governo de Vargas aos interesses do imperialismo, absurdo que não levava em conta aquele momento em que a política nacional-desenvolvimentista desagradava exatamente os interesses imperialistas, já afetados quando da lei que instituíra o monopólio petrolífero brasileiro.
As próprias bases do partido não comungavam com essa orientação, como não haviam concordado em negar seu voto nas eleições de 1950, ocasião em que muitos comunistas sufragaram Vargas.
Tamanha era a oposição centrada em Vargas, cujos argumentos variavam, mas nem sempre baseados em fatos, como as acusações constantes a respeito de corrupção generalizada no governo, que o clima político fez crescer a tensão sobre o Palácio do Catete. Acrescia a alcunha de entreguista, acusação oriunda dos quadros comunistas de modo a dar sustentação à sua campanha de críticas sem tréguas à Vargas.
Em meio a tudo isso, aconteceu o atentado ao jornalista Lacerda, que resultou na morte do major Rubens Florentino Vaz, oficial da aeronáutica que se encontrava junto ao jornalista na rua Tonelero, em copacabana, que teria sido o alvo do disparo que atingiu o peito do oficial da aeronáutica, fato ocorrido no dia 5 de agosto, o que elevou a tensão política à época.
O impacto na área militar foi de tal ordem que de imediato surgiu um ultimato para que Vargas renunciasse em virtude das fortes suspeitas de que os executores do atentado partiram da Guarda presidencial, mais precisamente de seu chefe, Gregório Fortunato, o “Anjo Negro”. Logo, teria como mandante membros do governo, o que deixava o presidente como um autor intelectual do famoso atentado.
A situação foi imediatamente utilizada pela oposição que referendava os termos do tal ultimato, o que provocou a convocação de uma reunião ministerial de urgência no Catete iniciada já na madrugada e com a presença de todo o ministério e dos familiares de Vargas.
Coube na referida reunião ao ministro da justiça, Tancredo Neves, tentar uma solução intermediária. Diante dos que recusavam terminantemente a renúncia, dentre eles o próprio presidente, e os que achavam que não havia outro caminho senão a renúncia, embora nenhum dos ministros, inclusive os militares do ministério, esboçassem essa posição.
Tancredo ao emitir uma nota ministerial na qual propôs uma licença do presidente, até que fosse possível equacionar os problemas decorrentes da crise instalada pelo caso da rua Tonelero, onde acontecera o atentado que tirou a vida do major Rubens Vaz.
Vargas não concordara com a licença e tinha a sua solução, o suicídio. Tinha consciência de sua decisão. Para ele só restaria essa opção, pois entregar-se àqueles que o tinham como desafeto visceral e engendrado essa trama era impensável.
Para quem tinha devotado suas energias aos anseios do povo ceder às pressões seria uma covardia, que não se coadunava com a sua condição de governante da vontade popular, independentemente do triste episódio da morte de um oficial a abalar o conjunto das forças armadas.
A única solução para tirar o protagonismo de seus algozes era a de estender o tiro em seu coração para que ele também alvejasse os seus detratores. E foi o que aconteceu naquela madrugada cercada de tantas expectativas quanto aos rumos dos acontecimentos. Assim, a notícia de sua morte causou uma imensa comoção.
Naquele instante estava presente na emoção dos mais humildes a figura de um protetor, pouco importa as avaliações que contestem essa assertiva. Os que se sentiam vitoriosos perderam a pose e ficaram sem poder de fala. Por encanto desapareceram dando lugar às massas populares a louvar o seu ídolo. Como disse em sua Carta-testamento, Getúlio Vargas abdicava da vida para entrar para a história.
Ao final o conteúdo da Carta, cuja atualidade chega a ser espantosa uma vez que essa catarse de cunho político se tem reproduzido na vida sempre esperançosa dos brasileiros sem eira nem beira. A propósito do conceito de fato gerador, até o final do ano deve sair um livro de minha autoria a respeito do suicídio e de seus desdobramentos na nossa história do presente, uma vez que esse fato não se circunscrever ao ano de 1954.
A CARTA-TESTAMENTO DO PRESIDENTE VARGAS
“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa.
Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto.
Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar.
Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se a dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário-mínimo se desencadearam os ódios.
Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobras foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.
Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto.
Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se deixa desamparado.
Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis no pensamento a força para a reação.
Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.
E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço de seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.”