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Lições da morte de Marisa Letícia

Lições da morte de Marisa Letícia: vivemos num “quadro d’amarguras!” 

Lições da morte de Marisa Letícia: vivemos num “quadro d'amarguras!” distantes da civilidade, da compaixão…  Por Nara Vilas Boas Marques Bueno e Lopes –

Com a  notícia da morte da ex-primeira-dama, Marisa Letícia Lula da Silva, percebi que estamos distantes da civilidade, da compaixão… Aliás, estamos distantes da humanidade.

Ora, lamentar a morte de alguém que era amado por seus familiares e amigos – ainda que não se tenha simpatia pela pessoa falecida – não é ato de hipocrisia. Antes de tudo, é ato de condescendência humana, compreensão e empatia com os sentimentos alheios.

Ao invés dessa reação natural – de respeito ao luto – vi, naquela ocasião, uma enxurrada de críticas vorazes, cruéis e indiscretas. Tantas ofensas: coxinhas não-sei-o-quê, de um lado, mortadelas sabe-se-lá-o-quê, de outro… Um horror!

Assisti, ainda mais atônita e indignada à infâmia de médicos. Daqueles mesmos: os doutores de branco que deveriam ter uma formação ética, responsável e acurada, de maneira tal a servir de alento aos flagelos – não só aos físicos – do ser humano.

Que ela “abrace o capeta”? Isso é correto? É essa a prática moral dos médicos nos hospitais brasileiros? Nesse ponto, um parêntese é necessário: essa postura inadmissível foi verificada por uma médica que assistia à ex-primeira-dama. Desrespeitosamente a “profissional” devassou os direitos íntimos de paciente da falecida em comentários nada éticos, em grupos de rede social.

Para completar a torpeza, seguiram comentários constrangedores de outros médicos. Isso porque estamos falando de hospitais de alto padrão – padrão FIFA – inatingível aos reles mortais usuários do SUS, que – pasmem! – são submetidos a tratamento de ainda mais desrespeito em nosso país.

Enrubesci de vergonha. No entanto, meu desconforto não se devia aos insensatos julgamentos que recebi de alguns conhecidos, de que, sentindo condolências pela morte de Dona Marisa, seria eu hipócrita. Não.

Ruborizei porque percebi que, sob um falso manto de moralidade e preocupação com a punição dos corruptos de nossa República, as pessoas se esqueceram do sentimento primevo de humanidade. Se esqueceram de respeitar a dor, o amor e o luto do outro – seja esse outro o ex-, ou quem quer que seja.

Será que esse mar de mortadelas e coxinhas nunca perdeu ninguém? Nunca choraram sozinhos a falta de algum ente querido? Ou será que é mais fácil bradar “quero os corruptos punidos” e justificar o ódio desumanizado à Dona Marisa? Porque quero honestidade na política brasileira posso regozijar de sua abrupta morte?

Não há incompatibilidade entre querer punição a corruptos, lutar por um país mais justo e, concomitantemente, respeitar a dor de um luto de um outro ser humano. Negar isso seria aceitar um sem-número de atrocidades que custamos muito em evoluir: a xenofobia (bem como todas as outras fobias, como a homofobia), o machismo, o antissemitismo, a dominação branca (com a recentíssima escravidão), etc.

Outro questionamento que me aflige: que está sendo praticada e difundida em nossa República das Bananas, dentro e fora das academias? Não me entendam mal. Não quero soar desrespeitosa com nosso país. Mas só pode ser brincadeira a educação e as políticas desenvolvidas aqui.

Nessa seara, total razão ao Professor Lênio Streck[1] – constante e contundente crítico da situação política e jurídica, da geral e da prática acadêmica brasileira. Só pode mesmo ser uma educação que não instrui o povo e desumaniza, desinforma, deteriora e aliena aquele que deveria ser o principal beneficiário dela: nós, humanos. Que tristeza!

Enfim, exemplos não faltam para ilustrar que não há nada mais perigoso que opiniões autoritárias de massa que são camufladas em argumentos nobres. Por exemplo: é possível verificar que, na escravidão, eram adotadas práticas desumanas horrendas e cruéis de submissão dos negros às piores atrocidades imagináveis – cujas consequências ainda são percebidas nos dias atuais – justificadas sob falsos argumentos de superioridade de raça e de intenções de êxito econômico.

Cuidado. A maquiagem de discursos de ódio exige um olhar acurado, crítico e, sobretudo, humano.

Outro fenômeno que percebo, principalmente na realidade paralela e inegável das redes sociais, é a de consternação (e revolta) contra o novo presidente norte-americano. Com razão, a população mundial tem se mostrado indignada com os devaneios retrógrados e insensatos de Trump: que insiste em construir um muro berliniano, expurgando os estrangeiros – incitando ao ódio a população americana contra, sobretudo, os imigrantes latinos e muçulmanos.

Sobre essa sensibilização generalizada, vi inúmeros movimentos nas redes. Hashtags incontáveis de indignação coletiva contra tais políticas. E não só de norte-americanos, mas, sim, de indivíduos de todos os países, reivindicando que somos todos cidadãos do mundo. Concordo. Mas só somos cidadãos conscientes e capazes de nos consternar e amar por sermos humanos.

A unanimidade humana não deve se reduzir apenas à apreciação da rosquinha doce: tão popular iguaria do confort food americano. Devemos ir além do poder do Donut e nos condoermos com qualquer vileza, nos chocarmos com qualquer injustiça, preconceito.

A maldade feita ao outro deve doer em nossa própria carne, independentemente de partido político, poderio econômico ou limitação do espaço geográfico. O mau cometido contra um vulnerável deve ser sentido – e combatido – por todos aqueles outros que não se encontram na desvantajosa posição, mas nela se colocam por escolha, por inteligência, por sensatez e decência. Enfim, por humanidade.

Será que a sensibilidade e compaixão só é possível se a pauta for estrangeira? Ou será que cabe humanização de nós brasileiros para conosco e nossas inúmeras agruras?

Não tenho outras palavras para ilustrar minha frustração, a não ser citar meu poeta favorito, atônito com a vileza humana: “Mas que vejo eu aí… Que quadro d'amarguras! É canto funeral!… Que tétricas figuras!…  Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror![2]”. É um horror. Há luz no final do túnel ?

Continuo firme no pensamento de melhoria do nosso país e do mundo, perseverando (e esperançando) quotidianamente na instrução cautelosa – de mim mesma e dos que me rodeiam – insistindo na plenitude dos e nas práticas que, afinal, sejam úteis para trazer felicidade, porque ainda temos um exército de moinhos enormes e cruéis para vencer e, como diria Cervantes: é dos sábios mudar de opinião.


nara bueno lopes

 

Nara Vilas Boas Marques Bueno e Lopes –  Advogada atuante, especialista em Direito e Processo Eleitoral.

NOTAS DA AUTORA:

[1] Indico a leitura de sua coluna semanal Senso Incomum na ConJur: http://www.conjur.com.br/secoes/colunas/senso-incomum

[2] Castro Alves, em seu célebre poema Navio Negreiro.

 

 

 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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