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Mae Cici

MÃE CICI DE OXALÁ E OS ANALFABETOS DA ORALIDADE

Mãe Cici de Oxalá e os analfabetos da oralidade 

O burburinho cessou. Fez-se um silêncio reverente quando Mãe Cici, vestida de branco, apoiada em uma bengala, mas caminhando com garbo, entrou pontualmente às 19h00 da quarta-feira (15/05) no auditório do Centro Cultural Vale do Maranhão (CCVM).

Por José Bessa Freire

Trazia seus 84 anos, sua majestade e centenas de histórias, algumas já publicadas no livro de sua coautoria Cozinhando Histórias: Receitas, História e Mitos de pratos afro-brasileiros. Ela era a figura central da Semana de Museus do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM).

Nascida no Rio de Janeiro, Nanci de Souza Silva, a Mãe Cici, filha de Oxalá – o orixá supremo, criador do universo – mudou-se de mala, cuia, atabaques e agogôs para o terreiro de Lauro de Freitas (BA), em 1971, levando com ela os cantos que destacam as propriedades medicinais das plantas, que ela tão bem conhece.

Atualmente, a Bahia já lhe deu régua e compasso, além dos títulos de cidadã honorária e de doutora Honoris Causa pela Universidade Federal (UFBA), conforme informou Ubiratã Trindade, coordenador de Educação do CCVM, na abertura do evento.

– Faltou mencionar meu pai Fatumbi – ela disse singelamente, e foi logo atendida.

Fatumbi é o nome religioso do etnólogo e fotógrafo franco-brasileiro Pierre Verger, que nasceu em Paris em 1902 e renasceu no Benin no Oeste da África. Convertido ao candomblé, residiu durante 50 anos na Bahia, onde atuou como professor da UFBA e ogã do Terreiro Opô Afonjá.

 Organizou o Museu Afro-Brasileiro e criou a Fundação que leva seu nome com um acervo de mais de 63 mil fotografias, 11 mil delas legendadas por Mãe Cici, sua assistente de pesquisa, que cuidou dele já velhinho. Faleceu em 1996 em Salvador.

Essa mestra griô Ebomi do Terreiro Ilê Axé Opó Aganju, que já percorreu o Brasil e países da Europa, África e Caribe contando histórias afro-brasileiras, quase sempre acompanhadas de música e dança, abria agora a semana de museus na mesa “Tradição Oral, práticas educativas e dinâmicas de atualização dos sentidos”, ao lado de Dulce Ferreira, professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e deste locutor que vos fala.

A LETRA E A PALAVRA

 Mãe Cici se dirigiu a mim, organizando a ordem das falas:

– Você começa, porque os indígenas estavam aqui antes dos europeus e dos africanos – disse.

Obedeci, mas em deferência a ela comecei com o relato mencionado na crônica sobre dona Fiota da comunidade quilombola do município de Bom Despacho (MG), que discute a relação entre oralidade e escrita. Resumo aqui o que expus.

Conheci dona Fiota em março de 2006, em Brasília, durante seminário sobre a diversidade linguística. Ela se expressou na Língua do Negro da Costa, de origem Banto, conhecida como “Gira da Tabatinga”, que as crianças estavam esquecendo. Lei de 2003 sobre as culturas afro-brasileiras obrigava a Secretaria de Educação a remunerar uma professora da língua.

Os quilombolas, com liberdade de escolha, elegeram dona Fiota que, após um mês de trabalho, foi em busca do seu salário. O secretário de educação invocou outra lei:

– Ah, não sabia que era a senhora. Não pago, porque legalmente não posso contratar professor analfabeto. A senhora é analfabeta. Se pagar, posso ser preso.

Ela botou o dedinho na cara dele e disse:

– Eu não tenho a letra, tenho a palavra, que é mais do que a letra.

Diante de tal argumento, ele pagou. Nem foi preso. E ela continuou ensinando as crianças de ensino fundamental e médio, combatendo o tratamento de analfabeto dado a pessoas das sociedades de tradição oral sem escrita alfabética, consideradas como carentes de escrita, quando na realidade são independentes da escrita.

A escrita alfabética assumiu o poder nas sociedades letradas, onde em todas as instituições só vale o que está escrito: na legislação, no judiciário, nas transações bancárias e comerciais, no jogo do bicho e até na palavra de Deus registrada nas Sagradas Escrituras.

Quem desconhece o alfabeto e não sabe ler nem escrever é tratado como analfabeto, termo que passou a designar o ignorante, como se o registro escrito fosse a única forma de apropriação do saber.

ENTRELINHAS E ENTREFALAS

 Existem pessoas que podem reconhecer letras, sílabas, palavras e frases, mas não são capazes de compreender o seu significado. São leitores rasos que acreditam piamente, ao pé da letra, naquilo que está escrito, não entendem que o processo crítico de leitura é a produção de significados, que são múltiplos. Não conseguem ler nas entrelinhas e nem descobrir os vários sentidos da interpretação de um texto. São os chamados “analfabetos funcionais”.

Da mesma forma, existem pessoas que ouvem a fala, mas não sabem entender o que ela está dizendo, não leem nas “entrefalas”. Quem não sabe ler o discurso oral pode ser designado, por analogia, como “analfabeto funcional da oralidade”. Exemplifiquei com alguns casos de narrativas orais e a leitura delas feita por cientistas e indígenas.

Dois grandes cientistas do século XIX, o botânico Martius e o zoólogo Spix, que viajaram em 1819-1820 pelo rio Amazonas, consideraram “fantasioso” o mito Tikuna de origem da vida, que fala de um único ser saído da água e do qual descendem os demais.

A hipótese da ciência da época – foi antes de Darwin e sua teoria da evolução – era a de que o homem havia surgido prontinho no planeta. Por isso, os dois alemães, com arrogância abissal, desqualificaram a narrativa Tikuna.

Hoje, os biólogos ensinam nas universidades e nas escolas que toda vida existente na terra descende de um único ancestral, de um organismo unicelular que deu origem a todas as espécies vivas, visão mais próxima do mito Tikuna do que da ciência de Martius e Spix. Com todo respeito à contribuição efetiva que deram em outros campos, os dois eram analfabetos funcionais da oralidade.

LENDO ORALIDADES

 Já os Tukano do rio Negro eram alfabetizados em oralidade, como relatado pelo padre salesiano Casimiro Beksta no caso de uma criança mordida por cobra numa comunidade do alto Uaupés.

Era preciso transportá-la para um hospital em São Gabriel da Cachoeira, distante três dias por via fluvial, percorrendo trechos encachoeirados de difícil navegabilidade, onde ocorriam sempre naufrágios e mortes. Um barco de pequeno porte estava disponível, mas não havia quem o pilotasse, os indígenas especialistas estavam ausentes.

– Eu levo o barco – se ofereceu um jovem Tukano.

– Você já fez essa viagem? – perguntou Casimiro.

– Eu nunca, mas os antigos fizeram o trajeto na cobra-canoa e eu conheço os wametisé – os lugares por onde a cobra-grande passou, meu avô me contou a história das casas de transformação.

A narrativa mítica, desqualificada como “invencionice” pelos analfabetos da oralidade, registra as referências geográficas, as marcas e os sinais nas pedras, nas praias, nas serras, nas ilhas, e acabou sendo usada pelo jovem como um mapa de navegação.

Orientado pelo mito, o jovem Tukano passou por todas as cachoeiras e guiou o barco até São Gabriel. Esses lugares sagrados foram mapeados para fortalecer os saberes tradicionais sobre o território e contribuir para sua proteção e seu manejo adequado.

A sogra do Jacamimrecolhida pelo botânico Barbosa Rodrigues, é outra história que circula no rio Negro (AM), trata-se de um minitratado de ornitologia dos pássaros da Amazônia. Parte desse conhecimento, que foi satanizado por não se enquadrar dentro dos cânones da ciência e da religião dominantes, são aulas de botânica, zoologia, astronomia, ciências sociais e ciências humanas, como observou o botânico, encantado com a capacidade de observação e o espírito científico dos indígenas.

Barbosa Rodrigues viveu no Amazonas, conheceu diferentes etnias e aprendeu o Nheengatu, que lhe permitiu registrar a ciência indígena. Sua grande sacação foi perceber, no século XIX, que numa sociedade sem escrita alfabética, mas com forte tradição oral, as histórias e cantos funcionam como enciclopédias repletas de saberes necessários para a sobrevivência e a reprodução das culturas.

Outras narrativas recolhidas por Couto de Magalhães ensinam como se relacionar com a natureza, os animais e os rios.

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Foto: Divulgação/ Pedro Napolitano Prata

José Bessa Freire – Cronista. Indigenista. Professor Universitário. Conselheiro da Revista Xapuri. Excerto de matéria publicada em seu blog: taquiprati. Capa:Divulgação/ Mariana Souto.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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