Moçambique: A miséria de perder tudo para quem já tinha muito pouco

Moçambique: A miséria de perder tudo para quem já tinha muito pouco

Na Beira, as dos fustigados pelo furacão Idai repetem-se como uma lengalenga de pesadelo

Por:   e 
Há zonas da estrada nacional 6, que liga a cidade da Beira ao resto de Moçambique, em que a água acompanha a via de ambos os lados. Por vezes vê-se água até perder de vista, há pequenos lagos e rios recém-formados. A várzea fértil ficou encharcada com as enchentes depois do ciclone Idai, que devastou o centro do país por onde a EN6 passa.

Saindo da Beira, a capital de Sofala, percorrem-se 80 quilómetros até ao ponto em que já não se pode avançar mais de automóvel, por causa do desabamento da estrada. E a água é presença constante, como as marcas da passagem da destruição – como o bosque de árvores torcidas, quebradas, caídas que a dado momento se avista, deixando adivinhar a força do vento.

Ao longo da via, as histórias de quem perdeu a casa, os bens, que ficou sem nada além da roupa gasta que tem vestida, repetem-se como uma lengalenga de pesadelo.

Aparecem pequenos abrigos improvisados de plásticos velhos. Ao lado da via, num aglomerado destes iglus, há homens que aparentam ser todos mais velhos do que são. São pescadores de uma aldeia das redondezas, que desapareceu com a enchente. Quando o rio transbordou, levou o peixe para os lagos e rios recém-formados na várzea. E eles acampam ali enquanto esperam que o peixe morda o anzol ou caia no pouco de rede que lhes sobrou.

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Nove homens partilham a mesma história: a família está a viver nas escolas que recolheram os desalojados, eles tentam pescar alguma coisa para alimentar mulheres e filhos ou para vender e ganhar algum dinheiro.
José Vaz, de 67 anos, descalço e com a roupa tão gasta que já não tem cor. Tem quatro filhos e cinco netos – e é praticamente tudo o que pode dizer que tem.
“Perdeu tudo, manta, calça, camisa”, diz, falando de si na terceira pessoa, porque o português não é do dia-a-dia, mas que quase dá vontade de interpretar como distanciamento involuntário de um amargo fenómeno meteorológico que lhe tirou o tão pouco que tinha para perder.

José Vaz é o mais velho do grupo. Nenhum deles conseguiu pescar nada este sábado. “ não está bom”, comentam. “Mau tempo”, diz José Vaz, “não é bom para apanhar”.
Manuel João, 38 anos, tem quatro filhos; Batista Albino, também 38 anos, tem três filhos; Ângelo Benjamim, de 30 anos, e igualmente três filhos; como Edu João, de 30 anos; Horácio José Conde, de 40 anos, é o de família mais numerosa, seis filhos; Jim José, de 39 anos, tem quatro filhos; António Carlos Júnior, de 37 anos, tem quatro filhos; finalmente, o mais novo, Francisco Cipriano, de 27 anos, tem três filhos.

Nenhum parece acreditar que haja peixe hoje para eles, ao contrário das que mais à frente seguram dentro de água redes de mosquiteiros transformadas em armadilhas de pesca. Ao contrário do tom taciturno do grupo de homens, aqui reina a brincadeira e até há um exemplar de cacana para mostrar que há peixe. Também há mussopo e peixe munemune, dizem.
Perto dos miúdos, nos terrenos alagados, avista-se uma manada de vacas que caminha pelas águas à procura de pasto. A água dá-lhes pela barriga e avançam a custo, mas sem parar, habituadas ao inundar da várzea que lhe esconde a ervas no fundo deste lago ligeiramente acastanhado.
Damião Matias e Figueiredo Tomás, dois anciãos da congregação, dizem que estão ali alojadas 328 pessoas, nem todas Testemunhas. As tendas e os são garantidos pela organização e o campo de deslocados exibe placas de identificação novas, bem visíveis desde a estrada.
Sem condições, deitados nos poucos espaços disponíveis, rodeados por águas estagnadas que são um caldo de doenças por acontecer ‑ já começaram a ser declarados casos de cólera na Beira -, os refugiados na Secundária de Tika põem-se em fila compacta e ordenada para receber a ajuda doada por uma empresa da Tanzânia: um saco de arroz, uma caixa de esparguete, cinco litros de óleo, um pacote de açúcar e um pacote de sal por família.
O camião TIR traz o equivalente de ajuda para 400 famílias e o supervisor de camiões da empresa, Mohamed de Sousa, garante que a empresa vai distribuir o conteúdo de mais quatro camiões. Enquanto Mohamed e dois companheiros distribuem os alimentos a quem está na fila, sobretudo mulheres, outro funcionário leva os fotógrafos à lateral do camião para fotografarem o nome da empresa – é preciso publicitar a caridade.

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Mais abaixo, noutra escola, outra fila bem ordenada aguarda pacientemente a sua vez para receber a ajuda humanitária. Metros à frente, estão os muçulmanos na mesquita, onde se refugiaram com a subida das águas. Dificilmente irão receber a ajuda humanitária da empresa dos camiões TIR.
A nacional 6 é estratégica em Moçambique, importante na circulação de mercadorias no país e para fora dela. Por ela passam produtos com destino a países sem acessos ao mar; o Zimbabwe, o Malawi, a Zâmbia usam o Porto da Beira e esta estrada.
Avança-se nela, uma semana depois da passagem do ciclone que matou 418 pessoas, disse neste sábado pelo ministro da e do Ambiente, Celso Correia, ao actualizar o balanço – números provisórios, que só o recuo das águas, que já se nota, vai revelar a dimensão real da tragédia.
Além da água, a estrada revela escolas, estações de caminho-de-ferro, uma mesquita, um templo das Testemunhas de Jeová, tudo transformado em albergue improvisado de deslocados das cheias. A subida do rio empurrou-os para a beira da estrada, dependentes da ajuda humanitária para sobreviver.
O Centro de Acolhimento das Testemunha de Jeová é o melhor e o mais bem organizado de todos os encontrados, com tendas novas, algumas de tamanho grande, de lona forte e redes de mosquiteiro nas portas e janelas, bem melhores do que as casas de madeira, chapa e zinco que muitos perderam.
O camião esvazia-se mas a fila, em vez de diminuir, aumenta. O polícia contratado para manter a ordem e impedir penetras não tem mãos a medir, porque as pessoas começam a chegar de vários sítios.
É como um jogo: o polícia avança agitando o cassetete, as pessoas recuam. O polícia grita “’Tou-te a ver”, “toca a recuar”, “você está a dar problemas”, mas está em inferioridade numérica.
Acumula-se gente e neste jogo de avança/ recua muitos procuram a oportunidade de se fazer passar por refugiados da escola para receberem também os alimentos.
Uma jovem mãe com o filho nas costas aproveita a desatenção do polícia para passar para o início da fila. Recebe a saca plastificada com alimentos e nem disfarça. Com os alimentos à cabeça, dá meia volta e avança estrada fora em direcção a casa e não à escola.
A necessidade de uns não é muito maior que a miséria de outros: os que tentam ser deslocados para receber ajuda humanitária só tiveram um pouco mais de . O polícia de guarda à ajuda humanitária está de uniforme, mas de chinelos, e a sua velha kalashnikov está pendurada ao pescoço com cordel.
Fonte: https://www.publico.pt/2019/03/23/mundo/noticia/pesca-mussopo-munemune-berma-nacional

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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