Nilcea pra se guardar: Diálogo íntimo de um legado feminista

Nilcea pra se guardar: Diálogo íntimo de um feminista

Homenagem da PartidA/RJ à ex-ministra e líder feminista Nilcea Freire, encantanda em 28 de dezembro de 2019, aos 66 anos de idade, vítima de um câncer, no Rio de Janeiro.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
(A. Cícero)

Nilcea Freire (1953–2019) não está mais entre nós. E, no entanto, sabemos o quanto ela permanece aqui conosco, e agora talvez ainda mais. Como companheiras de luta, irmanadas, elencamos aqui dez pontos breves da sua herança que sabemos infinita.

POLÍTICA É VIDA: Nilcea teve uma vida inteira na política como vontade de agir tendo em vista uma dimensão coletiva da vida. E mais: esteve quase sempre ligada a políticas partidárias e institucionais, desde muito moça, inclusive porque sabia bem que esse é o quadro mais concreto com o qual lidamos, para quem quer atuar nesse campo. Não tinha nojo nem medo da política, muito menos subserviência ou cegueira em relação a ela: entrava em campo, dando à própria política um sentido mais alto e próximo com seu olhar, seu e sua voz. Colava sua própria vida a uma coletiva e sua própria vontade de viver à vontade profunda de que houvesse mais chances de vida digna para todos.

É PRECISO CRUZAR FRONTEIRAS: Nilcea era uma médica profundamente interessada em áreas tão diferentes quanto Educação, Filosofia, Sociologia ou Administração Pública. E, como uma branca de classe média, foi uma ministra empenhada em lutar de verdade pelos direitos de mulheres negras, empregadas domésticas, trabalhadoras rurais, vítimas de violência que antes viviam isoladas e sufocadas entre as paredes das próprias casas. E lutava com elas, lado a lado. Essa sede e essa decisão ética de olhar para além da própria ou do próprio umbigo sempre estiveram acesas nela, em pensamento e ações concretas diárias – das maiores e mais articuladas às que são aparentemente mais miúdas e pessoais.

É IMPOSSÍVEL SERMOS FELIZES SOZINHAS: Muito longe de ficar sonhando quieta no seu canto ou vasculhando apenas as próprias ideias, Nilcea sempre buscou articular ativamente grandes redes de discussão, construção e compartilhamento. O Plano Nacional de Política para as Mulheres, por exemplo, pioneiro no Brasil e referência para todo o , foi fruto da longa I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que contou com a participação espantosa de mais de 120.000 mulheres em todo o Brasil. Noutro plano, Nilcea sempre viveu cercada de amigas e amigos, e transformava em mais pra todos o tanto de amor que recebia de muita gente. E, afinal, fazia também da política uma espécie de disciplina do amor alargado, uma vocação consciente e sistemática para a felicidade coletiva.

PRAGMATISMO TEM SEU VALOR: Com todas as melhores ideias e utopias na bagagem, Nilcea nunca ficou só no sonho, na vontade, nem mesmo só na palavra. “Lutar contra a violência doméstica”, por exemplo, não se transformou só num movimento de reunir forças sociais pra pressionar pela aprovação da Lei Maria da Penha – o que já seria imenso. Virou também o 180, aquele canal direto de denúncia e pedido de auxílio. Imediato, prático, direto, sempre à mão. E que fez uma diferença definitiva entre a vida e a morte pra milhares de nós.

APRENDER É TÃO OU MAIS IMPORTANTE DO QUE ENSINAR: Quando foi reitora da UERJ, Nilcea bancou uma briga então inédita e difícil, inclusive com boa parte da comunidade acadêmica. Em um tempo em que a ainda era feita para uma elite previamente escolhida por marcas de classe e raça bem visíveis, ela ousou bancar a aposta de que abrir a instituição para outras parcelas da população era um desafio não só social, mas também acadêmico, e não só justo e necessário, mas intelectualmente fascinante. E que obrigaria a universidade brasileira a amadurecer e se sofisticar, para receber e elaborar o impacto da entrada de uma quantidade nunca vista de negros e egressos das escolas públicas. E ainda aprender a crescer para além de qualquer muro mais protegido que a confinava até então.

A SERIEDADE PODE SER ALEGRE: É espantoso que, quando voltamos a ver as fotos da Nilcea entre nós, ela estivesse com tanta frequência sorrindo animada, doce, desarmada.  E, pra quem a via discursando às vezes com tanta precisão e tanto peso, podia parecer surpreendente que tivesse ao mesmo tempo tanto humor, tanta disposição pra rir, tanta leveza escavada e encontrada, mesmo sob as toneladas de pressões e sabotagens que enfrentou. Havia nela uma alegria que talvez fosse nata, mas certamente era também uma decisão e uma estratégia de luta. E um impulso generoso de transbordamento e fortalecimento de quem estava à sua volta.

EXISTE VALOR POLÍTICO NA FESTA: Pouco se falou nisso nos últimos dias, mas um dos últimos cargos ocupados por Nilcea foi a direção executiva do Museu do Samba, o antigo Centro Cultural Cartola, situado aos pés do Morro da Mangueira. Tomou posse irmanada com a neta de Cartola e dona Zica, Nilcemar Nogueira, numa roda de samba de raiz. Não ignorava a força da festa popular, a potência da e do samba, o batuque do tambor que temos dentro de nós. Viveu ali a explosão poética e política da vitória da Mangueira no carnaval passado, quando a cantou “a história que a História não conta”, e proclamou que havia chegado a vez “de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês” – naquele que talvez tenha sido o grito mais luminoso pra espantar a poeira barrenta que havia caído sobre nós naquele momento. Ah, sim: nada é por acaso. 

EXISTE BELEZA LIBERTÁRIA: Em um mundo que constrange as mulheres com padrões de beleza sempre inatingíveis e em que cada uma de nós parece viver constrangida pela cobrança tácita de ser eternamente esquadrinhada para cobrir todos os quesitos de uma aparência ditada como desejável, Nilcea parecia simplesmente bem com sua própria pele. Chegava até nós despojada, animada, com todos os seus formidáveis anos no rosto. Chegava com os cabelos raspados que marcaram sua longa luta contra o câncer ou com lenços amarrados. E com seus cabelos enfim brancos, às vezes com uma flor na orelha. Não titubeava, não se exibia, não se escondia, não caía em velhas ciladas pueris: discretamente, brilhava.

É PRECISO INSISTIR EM SER GENTE EM TEMPOS VIRTUAIS: No universo de militância muito frequentemente marcado por tretas e fofocas, e ainda mais por redes dominadas tantas vezes por superficialidade e gestos cada vez mais automáticos e impessoais, Nilcea era aquela que não era capturada pelas engrenagens de produzir horas mortas. E que recusava o bate-boca inócuo ou vaidoso, e recusava a reprodução incessante de qualquer bobagem ouvida de raspão. Mandava os áudios mais lindos, nos grupos de que participava. Com uma voz que era toda feita delicadeza e vigor, de escuta e abraço. Pessoa encarnada e presente, mesmo a distância. 

TER PODER PODE SER BOM E LEGÍTIMO: Ainda parece necessário dizer isso, neste Brasil de 2020 no qual perigamos associar o poder somente ao crime, à enganação perversa, à truculência ou à ganância mais estúpida. Nilcea viveu uma vida inteira sem nunca tirar vantagens mesquinhas dos cargos que teve e nunca usou o poder em benefício próprio ou egoísta. Mas trabalhou e atuou politicamente de uma forma desinibida e intensiva, quase febril, eletrizante. E demonstrava que não fazia isso por espírito de sacrifício, mas por grande graça e gosto. Porque era muito bom poder atuar publicamente, ter a chance de mudar o que precisava ser mudado, arregaçar as mangas e botar a mão na massa. Era lindo demais ver os frutos coletivos daquele tipo de trabalho se espalharem e virarem referência pra milhões de pessoas. Era lindo, animador, entusiasmante. Para mulheres que se assumem como feministas, inclusive – ou muito, muito especialmente nesses casos.

Fonte: catarinas

 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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