No Cerrado tem
11 de setembro – Dia do Cerrado
Por Iêda Vilas-Bôas
No Cerrado tem
Ninguém mandou plantar,
Nem precisou colocar:
Buriti, cagaita, ipê-amarelo…
Tem jatobá cheiroso, o pequi tão gostoso
E fogo-apagou a avisar
Tem caviúna, mangaba e sabiá-laranjeira,
Que canta pra nos alegrar!
Tem perdiz, beija-flor cantador
E caliandra vermelha
Pra terra enfeitar!
Tem sucupira, canela-de-ema,
Quero-quero ligeiro e caracará!
Tem gavião-caboclo, urubu-rei,
E arara azul muito linda,
Pra gente admirar!
Tanta planta e tanto bicho,
E a gente só precisa preservar!
CERRADO, ESSA PAIXÃO QUE VIVE EM MIM!
Vivemos no Cerrado, somos parte desse solo seco, envolto em uma nuvem areienta, que chega com os ventos campineiros de agosto e só cede lugar à chuva fininha, demorona, chuva do caju, em meados de setembro.
Iêda Vilas-Boas
Depois, caem os céus em pancadas. A chuvarada maneira de setembro vem para abrir alas às chuvas torrenciais, temporãs, que caem na cabeceira dos rios e vão se avolumando. Sem medo de nada.
Descem correnteza abaixo de goela aberta, engolindo, arrastando e depois vomitando turbilhões, a nos lembrar de sua força e a nos dizer, estrondosamente, que a água é força elementar da natureza, poder vital e necessário.
Água não segue lei, revira, remexe, serpenteia e sai lá adiante. Vai bebendo em sua sede insaciável barrancos, galhos, casas, gentes. Muitos já viraram também água.
Fugiram às regras e não voltaram ao pó bíblico. Viraram água corrente, água bruta, para depois se transformarem em calmaria de biquinha, de olho-d’água no meio do Cerrado. Foi assim com o Zé, com a mulher e seus dois netos, também com os muitos jovens ousados e destemidos do ruído e da fúria da água. Todos se embrenharam, para nunca mais sair, nesse redemoinho.
Depois, de novo a seca. E de novo a chuva. Assim, bem separado. No Cerrado é isso. No Cerrado existe a beleza de Eros. Eros como força fecundadora do Universo, ligado à vegetação, cuidando de todas as espécies de amores.
Este é o Eros que nos interessa: o princípio da vida. Eros é belo, desperta desejos, mas é filho de Gaia, a própria Terra, e rola no chão e cobre-se de folhas e de poeira. Brinca como criança. É terra, é chão.
À primeira vista, o Cerrado exala aos que não pertencem a este solo uma desconfiança lerda. Uma desconfiança sem motivo, ou melhor, motivada pelos preconceitos históricos que se arraigaram séculos afora. Façamos algumas reflexões: não quiseram conquistar-nos desde o início?
Não viram nossas imensas riquezas? O preconceito nasce atrelado ao desconhecimento e, ainda bem, tem muitos sábios modernos que pensam que em nosso Cerrado reina o primitivo e tem onças soltas a esmo.
E de fato tem: onças bravias na defesa de seus direitos, de suas crias, de seu espaço. No Cerrado tem… onças, bruxas, duendes, segredos. Que só se desvendam a quem se despir de outros lugares, costumes, tradições, para se tornar um ser cerratense.
O Cerrado vai se mostrando aos poucos. Não possui a exuberância das florestas tropicais, nem o apelo das paisagens beira mar. Vai se mostrando, como quem nele vive, em pequenas saliências.
Qual de vocês já se debruçou sobre uma caliandra, que em seu festivo carmim espraia alegria e vermelhidão por entre a vegetação coberta de pó? Qual de vocês já se deitou debaixo de um pé de sucupira florido e cismou amores?
Qual de vocês gastou tempo observando as proezas do urubu-rei e do caracará, pra ver, ali, que a cadeia alimentar e a luta pelo seu topo recomeça, instantaneamente, ao primeiro brilho do Sol?
Para mim, falar de leituras, literatura e cultura que valorizam nosso bioma me traz um enorme sentimento de pertencimento.
Sim, sou deste chão sarobento, cheio de toá, chão amarelo, chão poeirento. Sou chão, sou terra, sou cerratense. Deste espaço geográfico amplio minha visão para múltiplos mundos e possibilidades, mas volto. Sempre!
É aqui que meu espírito mora. Talvez amarrado num pé de pequi carregadinho de bagos. Ou anda meu espírito preso pelas cagaiteiras, nos pés de mangaba, pelos jatobás ou, simples que é, preso nas ramadas das quaresmeiras em flor.
Não basta somente saber que o Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul e que ocupa uma vastidão de terras do território nacional. Importa saber que terras são essas, que povo é esse.
São muitos os que vivem e sobrevivem dos recursos naturais do Cerrado: etnias indígenas esparsas e sobradas pelo acaso, quilombolas corrompidos pelo afã do mundo virtual, geraizeiros que continuam se arriscando por profissão ou afeição nas brenhas dos Gerais.
São ribeirinhos, babaçueiros, vazanteiros que traduzem e compõem o valoroso mosaico do patrimônio geográfico, histórico e cultural brasileiro. Somos, com orgulho, o povo cerratense, que habita o miolo geográfico do país.
Implica saber que estamos no Planalto Central e que o Cerrado nos cobre com sua benção. Esparrama seu manto amarelo-azul-gaio-cinzento sobre os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal. E, por bondade, estica seu manto para beiradas além no Amapá, Roraima e Amazonas.
Meus escritos têm a inicial pretensão de resgatar os mitos e lendas cerratenses. E de trazer as cores do Cerrado, o azul do nosso céu, a cor baça de nossas crianças, o amarelo do sol latejante em nossas cabeças.
Iêda Vilas Bôas – “Meus escritos têm a imensa vontade de contribuir para que o Cerrado em forma geográfica, histórica, ambiental, cultural, literária ou outra qualquer, seja, sobremaneira, valorizado. O Cerrado vive em mim!” Texto publicado na Revista Xapuri, no ano de 2015. Compartilhamos sempre, em memória de IVB.