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Uma pequena história às margens do Rio Tarauacá

UMA PEQUENA HISTÓRIA ÀS MARGENS DO RIO TARAUACÁ

Uma pequena história às margens do Rio Tarauacá

O sol estava a pino. Já passava do meio dia quando ele finalmente conseguiu acertar tudo direitinho com o barqueiro que aceitou levá-lo, na subida do rio Tarauacá. Fazia muito calor naquela tarde de setembro, e conseguir um barco foi o menor dos problemas naquele dia.

Por Jairo Lima

Pra onde você quer ir mesmo? – Era a pergunta mais frequente que ouvia pela cidade, onde quer que parasse para resolver alguma coisa antes de sua viagem. Talvez a estranheza se desse pelo fato de aparentar ser muito jovem.

Talvez por ser extremamente branco e aparentar fragilidade. Talvez por parecer uma pessoa estranha mesmo, com cabelos longos e brincos: “mais um maluco atrás do que fazer…”

– Foi o comentário venenoso ouvido de uma mesa ao lado, quando certo dia almoçava com um indígena que o acompanharia, sem se dar conta que estava falando um pouco alto, e, certamente, com um ‘estilo’ de fala (o tal ‘sotaque’ conhecido no interior com ‘sotato’).

Finalmente tudo acertado: combustíveis, piloto, comida, pilhas para o walkman, mochila etc. E na noite anterior, em seus fones de ouvido, Renato Russo se esforçava para dar algum sentido nessa necessidade, muito além do profissional, de seguir em busca de ‘algo’. Objetivo a ser alcançado: aldeia Mucuripe, Terra Indígena Praia do Carapanã. Entre as atividades da viagem estava a correção de um livro com canções tradicionais, baseado no conhecimento de um velho Kaxinawá de nome Emídio.

Uma pequena história às margens do Rio Tarauacá
Como companheiros de viagem iriam três Kaxinawá da Terra Indígena Igarapé do Caucho, que ficava bem perto da quente e alegre cidade de Tarauacá, às margens do rio Muru. De lá o grupo seguiria singrando o rio Tarauacá, que estava com pouca água, o que preocupava bastante, já que o barco escolhido (e necessário) era o que chamavam de ‘baleeira’, uma banheira velha que pertencia à Funai local, que, pelo tamanho e peso, certamente propiciaria muitos momentos desagradáveis.

A madrugada chegava ao fim, e o azul cada vez mais claro dava a entender que era hora de seguir. Ele olhou se estava tudo em ordem e, seguiu para o porto, sentindo a brisa fria do amanhecer, ouvindo o som de pássaros e o cacarejo dos diversos galos e galinhas nos quintais das pequenas casas, onde cães latiam quando passava por perto de seus domínios atrás de frágeis cercas de madeira.

A cidade já estava acordada e os feirantes se dirigiam ao pequeno e bizarro mercado municipal, às margens do rio Tarauacá. Em sua mente lembrava-se das histórias que tinha escutado durante a semana, entre estas, a pavorosa lenda do Elmiro Peres, que, segundo a história oficial, estava envolvido na morte do famoso “catequizador de índio” Ângelo Ferreira, no início do século XX.

No porto a embarcação o aguardava e o ‘motorista’, animado, acenava enquanto o jovem se aproximava do barco: ‘Tomara que este troço não seja minha versão mambembe do Titanic’ – pensou. Ele já possuía algumas viagens de experiência, para saber que sempre havia um risco a ser considerado.

Uma pequena história às margens do Rio Tarauacá
Tudo certo, o velho motor diesel iniciou sua irritante cadência sonora. Respirando fundo, o jovem apertou o play do pequeno aparelho, e surgindo ‘do nada’ uma melodia servia de pano de fundo para a canção que dizia: “Imagine você mesmo em um barco em um rio, com árvores de tangerina e céus de marmelada…”*

Dois dias se passaram de sua estada no Igarapé do Caucho, quando, finalmente, o grupo iniciou a viagem principal. Na bagagem, dois litros de um forte huni **, que sobrara da noite de cantoria tradicional, para dar boa sorte à viagem. Assim, cedinho, em um dia onde um grupo de papagaios com suas penas verdes contrastavam com o céu azul, sem nuvens, o monótono som do motor de rabeta do batelão iniciou seu longo concerto. À proa, sentado, o jovem abriu os braços diante do rio Tarauacá, como se quisesse abraçar o mundo, e se sentindo a pessoa mais livre do mundo.

Ao passo que o ‘seu mundo’, simbolizado pela cidade, ficava para trás, outro ‘mundo’ despertava, ao passo lento do avanço do barco contra a fraca correnteza de um rio cheio de ‘balseiros’, como eram conhecidos o acúmulo de pedaços de árvores, e por vezes enormes árvores inteiras, que ficam encalhadas em determinados pontos do rio: – “Parece a vida da gente.

Um rio onde alguns balseiros teimam em querer nos atrapalhar” – Pensou, enquanto seus olhos observavam a transformação da paisagem que, tal qual um filme mudo, ia se transmutando lentamente, enquanto a voz melodiosa de Adriana Calcanhoto lhe dizia: “Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome…”  ***

A noite chegou, e com ela, um céu de um escuro profundo, brilhante com milhares de pontinhos de luzes vivas, pulsantes, que davam a impressão de que estavam se movendo. Ao redor da embarcação ancorada para passagem da noite, milhares de vaga-lumes, com seus pequenos piscas de luz, ‘acendiam e apagavam’, como que, desafiando as estrelas em seu brilho eterno.

Deitado na proa da embarcação, o jovem prestava atenção na miríade de sons ao redor, que embalavam suas sensações profundas, enquanto o huni que havia tomado tomava-o por completo, mesclando-o, ao menos em espírito, com tudo ao redor. O burburinho da água do rio completava a sinfonia noturna, e, por vezes, dava a impressão de que seres estavam passeando pelo local.

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A partir do segundo dia de ‘subida’ a percepção de tempo extrapolou a ditadura do relógio, e o jovem não se importava em saber as horas. Balançava na rede, conversava com os companheiros de viagem, fantasiava histórias fantásticas, relembrava memórias boas, refletia sobre a experiências ruins.
No tédio da interminável subida, olhava para os barrancos e para o rio, e sua imaginação o fazia ‘ver’ os fantasmas do passado. Figuras conhecidas por ele através das leituras e, para este, compunham uma espécie de Ilíada.

Ficava imaginando as subidas e descidas de milhares de peças de borracha, extraídas do seio verde e escuro da floresta, à custa de muito sangue e sofrimento de pessoas, cujos nomes, em sua maioria, caíram no esquecimento dos anos. Outros, por boa ou má fama, tiveram seus nomes eternizados: Felizardo Cerqueira; Ângelo Ferreira; Sueiro Sales, etc. Pessoas que suas histórias misturam-se entre o real e a fantasia.

Ao passo que a embarcação chegava ao objetivo, uma mescla de ansiedade e alegria tomava conta de seus pensamentos. Sentimentos talvez causados pela longa e ‘interminável’ viagem de barco; talvez pelas imersões profundas e dimensionais do huni; talvez porque, em sua juventude, estas viagens e seus objetivos fossem as únicas coisas que faziam sentido em seu ‘mundo’: – “Você pensa demais, precisa controlar isso.” – Era um ‘conselho’ comumente ouvido por ele.

Próximo do objetivo, a aldeia Mucuripe, um pequeno barco vinha em direção contrária, descendo o rio, e um dos seus acompanhantes, com olhos experientes e precisos dos Kaxinawá, assinalou: “Olha txai! É o velho Emídio que vem baixando”. Os barcos então desligaram os motores e juntaram-se.

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No entanto, na empolgação, o jovem pulou no rio, segurando nas mãos o rascunho do livro para mostrar ao velho que, meio sem entender aquela atitude, deu um grande sorriso quando um dos companheiros explicou, em hãtxa kuin (língua dos Kaxinawá), o que o jovem estava mostrando.

Na conversa soube-se que o velho estava indo para a cidade, para tratar de um problema no fígado, e que estava feliz em saber que seus conhecimentos estavam sendo valorizados e seriam repassados para os mais jovens. E assim, seguindo caminhos opostos, com acenos de ambos os lados, todos se despediram.

Finalmente a embarcação ancorou, e a visão do barranco cheio de crianças e jovens observando a movimentação, trouxe a certeza ao coração do jovem de que havia chegado aonde sempre quis estar.

A tranquilidade e a alegria contida dos jovens que ajudavam a descarregar o barco, era nítida, enquanto olhavam, curiosos, a estranha figura do rapaz, com sua tez alva e sua alegria incontida, que lhe fazia falar com todos que encontrava.

O tempo na aldeia foi mais uma experiência de vida do que profissional. Nesse período o jovem ouviu muitas histórias. Foi totalmente pintado com jenipapo pela primeira vez e pôde aprender bastante com seus anfitriões sobre os rituais e costumes do seu povo.

O amanhecer sonolento da aldeia, com o barulho cadenciado das mulheres batendo o algodão para feitura da linha para tecer; a meninada se movimentando dentro da casa; o cheiro do mingau de banana, da macaxeira cozida, mesclados com o cheiro de madeira queimando nos ‘fogões’ tradicionais.

O dia que passava lento e, tal qual o martelo e bigorna do ferreiro, iam moldando o jovem, diminuindo sua ‘vibração’ da cidade e adequando-o à dinâmica da aldeia.

Claro que não era a primeira viagem dele, mas, também, nenhuma era igual a outra, pois, para ele, estas eram como pecinhas de um quebra-cabeça que iam se encaixando e dando sentido ao ‘desenho’ que era sua vida.

E assim o tempo se passou. E o jovem iniciou o caminho de volta para o lugar que, a cada viagem, cada vez mais perdia o sentido de ‘lar’.
A descida sempre é mais rápida que a subida, claro e nela as memórias do tempo que ficou na aldeia iam tomando conta de sua mente.

Nos seus ouvidos, a voz rouca de um Bob Dylan lhe alertava para os dilemas e desafios que o aguardavam ao final da viagem. Nas lembranças, os dias calmos e as noites à beira de fogueiras, ou sob a luz de porongas, traziam um sentido novo para estes dilemas e desafios, sempre infindáveis, da vida caótica em que se é obrigado a viver nas cidades ditas ‘civilizadas’.

Uma pequena história às margens do Rio Tarauacá
Uma mescla de alegria e nostalgia tomou de conta do jovem quando finalmente o barco ancorou no disputado e lamacento porto da cidade de Tarauacá. Alegria por voltar a reencontrar pessoas e lugares queridos, apesar da caoticidade da vida urbana e; nostalgia por saber que a viagem recém-finalizada era única, pois cada uma trazia sempre uma vivência e experiência singular.

Tudo desfeito, barco devolvido, despedidas feitas, com a mochila nas costas o jovem caminhou em direção a um dos pequenos hotéis da cidade, mas, alguns metros depois, voltou-se para o rio Tarauacá para observar mais uma vez o caminho que trilhou, como se quisesse fixar a exata imagem desse momento. Em seus ouvidos, não se ouvia a voz nem a melodia de nenhum cantor, somente o som da cidade ao redor e a do barulho da sinfonia caótica de motores de rabeta no seu contínuo ‘ir e vir’.

Virou-se, apertou o play do walkman e a voz do vocalista do Engenheiros do Hawai lhe dizia que, em sua sociedade nawa (não-índia): – “Tem muita gente se queimando na fogueira, e muita pouca gente se dando muito bem…” ****

Chegando no centro da cidade, se dirigiu até o posto de venda de passagens aéreas, onde um vendedor com cara de ressaca e chateado, começou a preencher o formulário de passagem, para o disputado e muito útil bimotor que fazia o trajeto entre a capital acreana e a cidade de Tarauacá no final dos anos 90 e início dos anos 2000.

– Nome? Ei moço! Qual seu nome? – Perguntou impaciente o agente de viagens, ao notar que o jovem não parecia ter lhe ouvido nas três primeiras vezes que perguntou.

Respirando fundo, meio que para se tocar que voltara a uma realidade contrastante de tudo o que vivera na aldeia o jovem respondeu:
– Jairo. Jairo Lima.

Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.

Notas do autor:

* Música ‘Lucy and sky with diamonds’, Beatles

** Huni, nome indígena Huni Kuin para a ayahuasca

*** Música ‘Esquadros’

**** Música ‘Tribos e tribunais’

– Texto baseado no meu diário de viagem a TI Praia do Carapanã, em 2000. A inspiração surgiu após a leitura das recentes postagens do blog Alma Acreana (clique aqui), do filósofo Isaac Melo. O velho Hemídio faleceu pouco tempo depois do lançamento do livro, vitimado pela cirrose, em decorrência do abuso de álcool.

– Todas as imagens utilizadas no texto foram retiradas do blog Alma Acreana, e são referentes ao rio Tarauacá.

Jairo publica seus escritos no blog: www.cronicasindigenistas.blogspot.com.br e, por gentileza do autor, também aqui neste site da revista Xapuri.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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