Poani: Mais uma estrela para o céu do Rio Negro

Poani: Mais uma estrela para o céu do Rio Negro

Programa: Rio Negro

“Os estudos que fazemos devem gerar a vida. Por isso, nós estudamos o que vai trazer a vida para as pessoas”

Por Aloisio Cabalzar

Poani Higino Pimentel Tenório faleceu na noite dessa quinta-feira (18) em Manaus, depois de ter contraído coronavírus na comunidade onde residia, Curica, na foz do Curicuriari no Rio Negro, abaixo da cidade de São Gabriel da Cachoeira.

Depois de alguns dias com os primeiros sintomas na comunidade, sua família pediu sua remoção para a cidade. Esteve internado por um mês, metade do tempo no Hospital de Guarnição em São Gabriel, onde esteve em situação delicada até poder ser transferido para Manaus.

Segundo nota do governo do Amazonas, “ele ficou internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), na ala indígena do hospital (Nilton Lins), onde recebeu todo o tratamento padrão, que é realizado em casos de Covid-19, com as especificidades direcionadas aos pacientes indígenas. Higino, que não apresentava registros de comorbidades, teve o quadro agravado por uma insuficiência respiratória aguda, que evoluiu para pneumonia viral aguda, com hipoxemia (baixo nível de oxigênio no sangue)”.

Higino foi o principal líder dos Tuyuka na virada do milênio, e por quase vinte anos seguiu contribuindo decisivamente para a retomada de sua , e da própria autoestima de seu povo, que estavam sendo sufocadas até meados da década de 1990.

Ele também foi bayá, construtor de canoa, artesão, químico (no Vaupés colombiano), professor, tradutor trilíngue e intercultural, gestor de organização indígena, pesquisador, especializado em petróglifos, escritor, produtor cultural… Esposo de Amélia, oito filhos, quatro meninas (Dia Dulce, Sumé Ilza, Yosokamo Rosa, Kamo Pedrina, a segunda infelizmente já falecida) e quatro meninos (Utarõ Antônio, os gêmeos Renan Ñidupu e Renato Bua, e Poani), filho de Arnaldo e Luiza, irmão menor de Guilherme e Cecília.

Higino sofreu muito com os missionários salesianos, não só pelo processo traumático de escolarização no internato, mas também porque eles obrigaram a separação de seus pais, e sua mãe teve de abandoná-los ainda crianças. Depois dos anos de escola, foi professor no Rio Negro, mas logo depois foi para o Vaupés colombiano. Depois de muitos anos e trabalhos lá, voltou e casou-se com Amélia Barreto, da comunidade tukano de São Domingos.

Envolveu-se com o garimpo do Traíra e, passado o período mais intenso do ouro, estabeleceu-se em sua comunidade, ainda na casa de seu irmão Guilherme, que nesse tempo andava fora. Nos anos 1990 passou a dedicar-se efetivamente ao movimento indígena, com a criação da CRETIART, quando foi seu vice-presidente.

O grande projeto de sua vida, ouso dizer, foi o da Escola Tuyuka, referência em educação indígena e que muito avançou, tendo sido responsável por revigorar a língua e a cultura de seu povo.

Higino é descendente da linhagem dos Tuyuka Opaya, quinta geração de uma migração desse povo que ocupou o Alto Rio Tiquié, justamente onde depois seria traçada a fronteira entre e Colômbia, que dividiu suas malocas e comunidades entre os dois países. Higino foi herdeiro dos donos e construtores de grandes malocas, onde dançavam com seus adornos com penas coloridas de pássaros.

Seu nome de benzimento, Poani, está ligado à caixa de adornos, onde são guardados os ornamentos feitos de penas, plumas e pelos de animais usados nas danças cerimoniais – por isso, é considerado “filho das plumas da Cobra-Pedra”. Apesar de toda a pressão dos missionários ao longo de décadas, assim que puderam respirar de novo, voltaram a construir malocas em suas comunidades e a fazer suas festas. Reviveram, e ele teve um papel importante nessa animação.

Mestre e aprendiz, talvez o que mais marcou a vida de Higino foi sua curiosidade e avidez por conhecer e aprender, num incansável esforço por entender os diferentes mundos em que viveu e cruzá-los com traduções. Esse foi um dos motores do projeto tuyuka de fazer uma educação diferente. Não só entender, mas irromper neles ativamente, buscando respostas e transformações.

Para Lenilza Ramos, que concluiu em 2008 a primeira turma de ensino médio da Escola Tuyuka, “neste momento de lágrimas, sinto muito a perda do parente Higino, ao mesmo tempo agradeço muito ele pela batalha da educação indígena, revitalização da língua e da cultura tuyuka, ele lutou e viu o resultado que nós conseguimos – de falar e escrever a nossa língua, até no dia de hoje estamos vivendo com nossa língua. Mesmo com a perda do Higino, ninguém vai esquecer e perder a nossa fala, sempre vamos continuar lutando e lembrando tudo que ele tinha conseguido. Tenho certeza, vai fazer muita falta para todos os do Rio Negro, em nossos pensamentos ele sempre vai estar vivo, sempre nos ajudando.”

Leni sendo fotografada por Higino no meliponário da Escola Tuyuka (2006)

Jonas Barbosa, da etnia Yebamahsã, também ex-aluno, que estudou na segunda turma que se formou na Escola Tuyuka lembra que nasceu “numa comunidade indígena Tuyuka, do Sr. Higino Tenório. A luta dele sobre educação escolar indígena foi muito importante. Primeiro eu estava estudando no Colégio de Pari-Cachoeira, aí meus pais decidiram me levar de volta pra comunidade, na época a Escola Tuyuka estava nos primeiros anos de funcionamento. Voltei para lá e segui estudando, pra mim foi muito importante, mesmo eu sendo indígena não sabia a realidade, através dessa escola que o Higino criou me fez questionar e refletir, foi muito importante porque aprendi muitas coisas sobre a minha origem, dos Tuyuka e de outras etnias da região. Era uma liderança, um professor muito comprometido com a escola e com a comunidade em geral. Com ele aprendi que jamais podemos desistir, tem que lutar pra poder realizar o nosso sonho, foi uma pessoa que me inspirou de ser batalhador, e ir atrás do sonho”.

Jonas ainda criança na Escola Tuyuka

Para Marivelton Barroso, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro(Foirn), “Higino foi uma das pessoas que mais nos incentivou e deixou todo um legado na política de educação escolar indígena, no aspecto cultural, como conhecedor tradicional, grande articulador e motivador para as novas gerações. Sentimos uma dor muito grande nesse dia de hoje, mas sua história vai estar sempre presente com a gente, e vamos seguir nessa luta, que não foi só dele, mas de vários líderes que já se foram. Ele vai estar sempre em nossa memória.”

Marlui Miranda, cantora e musicóloga

Conheci Higino Tenório, Poani Utapinomaku, em abril de 2000, participando da série de oficinas organizadas por ele, “Cerimônias Tuyuka”, no âmbito da Escola Tuyuka. Esta oficina foi uma estratégia importante porque muitos dos costumes mudaram: as danças tradicionais foram substituídas pelo forró; a maloca por pequenas casas que geravam egoísmo e individualidade.

Higino sonhou uma necessária estratégia para a manutenção do sistema de práticas musicais ao estreitar as relações dos jovens indígenas com as musicalidades e com as práticas dos kumua, as danças dos bayaroa, os mestres da música, para que não se afastassem de seus antepassados nem de sua verdadeira origem, aquela contada pelos mais velhos.

Foi um evento de grande abrangência, com a participação de todos os Tuyuka, inclusive os que vieram do lado colombiano. A partir desta oficina, muitas outras aconteceram, para fortalecer o conhecimento principalmente para os mais jovens.

O projeto de Higino alcançou amplamente seu objetivo, que foi produzir o maior acervo de um registro completo da música de seus antepassados e a documentação deste ritual num CD triplo e na catalogação das cerimônias, CD que chamado Utãpinopona Basamorĩ, que apresentava todos os sistemas musicais: wederige, basamõri, Dasia Basa, Hiã Basa, Ikiga, Umua Basa, Wai Basa, Ñamadupua, Wasõ Basa, Ñasa Basa, Ñasã Daro, Hãde hãde das mulheres, Yua Basa, Perurige, Yuku Basa, Kamõka Basa; instrumentos musicais como o sũ (caracol), ñama dupoa (flauta de cabeça de veado), ñama koã ( flauta de osso de veado), kuware (casco de jabuti); weru-weru hĩrĩkoa (flauta de osso de anta), perurige (flauta do cariço), tõrõriwu (flauta de taboca) e seruru hĩrõ (flauta de pã pequena).

Foram registrados todos os instrumentos, cantos e danças de grandes rituais. Todos confraternizaram-se neste encontro único, quando “protegiam-se de e acidentes por rezas que transformavam a que habitavam numa terra de leite e mel”, como disse Higino, “pura, sem maldades”.

Hoje, Higino se foi, pois este mundo ficou demasiadamente cheio de tristeza, mortes e sofrimentos de todos os tipos. Ele se foi para aquela terra de leite e mel, pura, sem maldades.

Higino, um grande educador, deixa para todos nós um exemplar, que fortaleceu a identidade tuyuka, conscientizando as novas gerações da importância das festas como espaço de ensinamento, e a reunião de todos os bayroa num evento que trouxe a todos a possibilidade de compreender a mais alta expressão de valor artístico, histórico e mitológico da cultura da Tuyuka.

Oficina de música tuyuka em 2002

Raoni Valle, professor de arqueologia na UFOPA

O Prof. Poani Higino Pimentel Tenório é um ser dinâmico e polivalente, agregador de diversidades. Por isso mesmo, interessou-se também pela Arqueologia, em particular pelos petróglifos. Para os povos indígenas do Alto Rio Negro, os petróglifos são importantes marcadores e agentes da história, memória e conhecimentos que interconectam mundos, seres e .

Mas o Mestre Higino, fustigado pela curiosidade dos cientistas e dos kumua, buscou conhecer a forma peculiar como os (as) arqueólogos (as) não-indígenas se interessavam e estudavam os desenhos e inscrições nas pedras, fotografando, classificando e publicando suas ideias. Isto é, registrando e dando nomes que identificavam formas, tais como antropomorfo (forma de gente) e zoomorfo (forma de bicho), e criando narrativas, sobre povos, culturas, territórios e épocas a partir dessas classificações.

Intrigavam-lhe certas aproximações arqueológicas que tratavam as gravuras rupestres (outro nome para os desenhos) como coisa do passado antigo; como coisa feita por gente que já morreu; ou como uma coisa ou uma língua morta. Essas três noções em torno de uma ideia de passado morto, que não se efetiva no presente, foram veementemente rejeitadas pelo Mestre logo no início de nossas rusgas interepistêmicas, mais de dez anos atrás, pelo menos.

Outro desconforto seu se relacionava propriamente à classificação das formas, que o Mestre considerava simplória demais e insistia que não víamos por completo; que só víamos os pedaços; que chamar waimahsã de zoomorfo e kahpimahsã de antropomorfo revelava uma profunda desinteligência, um despedaçamento do conhecimento. Insistia que nossas classificações não conseguiam ver, ler, falar sobre a essência completa desses seres, pois só víamos figuras, desenhos, feitos por outras pessoas que morreram há centenas ou milhares de anos antes do presente.

Higino Pimentel considerava tudo isso uma grave limitação, uma miopia na visão, no pensamento, que ficavam evidentes pelas perguntas infantis formuladas e respostas parciais que não alcançavam a complexidade da percepção dos kumua. Basicamente, Higino Tenório como kiti masigʉ (conhecedor das narrativas) e kumu (benzedor), via e sentia as formas vivas, na integridade e fluidez orgânica de seres vivos em seus ecossistemas interconectados.

Os petróglifos, portanto, constituem-se como ecossistemas vivos, integrados aos lugares, seres e mentes humanas e não-humanas. Foi isso que o mestre ensinou para a arqueologia amazônica e brasileira, sobre a vida cognitiva, social e espiritual da arte rupestre e dos lugares sagrados, ʉtã hori wametise.

Essa aprendizagem foi tão importante que o Mestre foi convidado a compartilhar seu conhecimento com a Associação Brasileira de Arte Rupestre em 2018, que estupefata pelo “tapa na cara com luva de pelica” muito honesta, ética e decolonizante, rendeu todas as homenagens e reconhecimentos ao Mestre Higino pelo seu notório e impressionante saber em relação ao tema, e o convidou para integrar a Associação na qualidade de importante pesquisador indígena de arte rupestre no Brasil (o primeiro) e membro honorário da Abar.

Com isso, Higino também se tornou o principal responsável pelo início do processo de decolonização epistemológica deste campo dos estudos da história indígena no Brasil. O impacto meteórico que o Mestre Higino representou para os estudos arqueológicos da arte rupestre aqui é irreversível e divisor de águas, tendo sido também internacionalmente reconhecido em grandes eventos científicos que agregam à comunidade global de cientistas do tema.

Nesta divisão de águas, rochas e seres, ele provocou um encontro das gravuras arqueológicas com a cultura de respeito, Heõpeo Masise, e por sua influência direta e legado, nossa academia, ainda muito branca e ocidental, foi convidada a se repensar e pensar junto com os povos indígenas sobre a abertura de horizontes anti-coloniais na produção de conhecimentos, que marcam decisivamente este momento da história das transformações desta em nosso país e na América Latina.

Flora Cabalzar

Higino nossas casas seguem de portas abertas para você.

Ano passado Higino passou uns meses em . Tratando dos olhos. Dormia no quarto de nosso filho Tomé, e desatavam a conversar 6:20 da manhã até quase o menino perder a hora da escola. Na volta reatavam o papo. Ele pôde nos contar mais das tantas andanças e moradas após sua partida de São Pedro no Alto Rio Tiquié, território Tuyuka onde nasceu em 1955 e onde trabalhamos juntos no período de 1997-2011; e do aconchego de enfim poder novamente fazer roça grande e bonita com Amélia sua esposa (como as roças do alto Tiquié), ao habitar de verdade agora na comunidade do genro no Médio Rio Negro, após uma série de mudanças num êxodo desafiador, marca profunda nas vidas de parte das pessoas do Alto Rio Negro.

Não era ainda quarentena de Covid-19, mas parecia: nós dois em períodos de repouso, e mesmo assim ele dava entrevista para os jovens do ensino médio da escola de meus filhos, expondo sua experiência em avançar mudanças na educação escolar indígena, sendo um articulador exímio em todos os níveis: do que costumamos descrever como local, regional, global.

Orador ferrenho eu diria, tradutor audaz, pesquisador nato, articulador inteligente. Difícil dizer como tudo isso se expressava, a partir da minha parcial experiência vivida com ele. Boa parte disso está traduzido em duas entrevistas que ele me concedeu quando organizávamos esse livro e nos textos de grandes amigos dele desse mundo, Bruni (da Áustria e cooperação internacional com o ISA), Gilvan (da UFSC e da mobilização das políticas linguísticas para o multilinguismo na Unesco); Bazin (hoje acima de nós como físico, matemático e promotor da divulgação científica de alta qualidade), pessoas que bastante dialogaram e criaram com ele; e Justino Resende, seu parente de afiliação da cobra de pedra e irmão intelectual sábio das travessias.

Que me desculpem falar de Higino citando um livro, mas essas histórias ali narradas foram um dos centros de nossas vidas multicentradas.

Outro episódio marcante da estadia dele em São Paulo ano passado foi a sua enorme curiosidade durante e após outro evento na escola dos filhos, um encontro de pesquisadores e lideranças negras sobre participação democrática e comunitária na cidade de São Paulo. Falar em curiosidade de Higino deve ser entendido como anseio de participar e desejo contínuo de debater aquele mesmo assunto (políticas da diversidade em contextos multiculturais e multilíngues), em toda oportunidade.

Assim o imaginei ao saber de sua partida desse mundo confuso, conversando com nosso amigo arqueólogo com quem Higino realizava muitas pesquisas depois que desceu o rio com a família: “a pastinha dele até que estava organizada com anotações dos seus telefones, as prescrições de colírios, os papeis (muitas notas importantes das trocas de saberes com Raoni Valle). As malas, mais ou menos!

Hoje ele deve estar zonzo sem saber onde estão as coisas mais importantes! São tantas! Ou, nessa hora, “tudo se condensa numa energia que cria”. Nossa sensação é de que a Covid-19 o pegou injustamente em um período ainda de convalescença, mas que não o impedia de desenvolver seus trabalhos na roça e nas academias.

Um Poani que amava sim parcerias, de forma ativa e bastante crítica, ou seja, pleno e saudável. O paciente indígena grave de Covid-19 mais saudável que conhecemos.

Pieter van de Veld

Conheci Higino Tenório faz mais de 20 anos, durante uma de minhas primeiras viagens para o Alto Tiquié, onde estava envolvido em um projeto de piscicultura indígena. Higino foi uma das pessoas principais dessa iniciativa, assim como de tantas outras que estavam acontecendo naquela região.

Uma das primeiras memórias que tenho de Higino é uma visita que fizemos juntos a um lugar que, no futuro, seria a nova localidade do povoado São Pedro. Nesse ano, por volta de 1999, o povo de São Pedro não estava muito satisfeito com o local onde viviam e discutiam se não seria melhor todos subirem o rio até o lugar onde o Igarapé Umari Norte lança suas águas no rio Tiquié. Nesse lugar havia terras boas para fazer roça.

Como de costume, Higino tomou a iniciativa. Ele escolheu um lugar para fazer sua nova casa e, em seguida, me convidou para darmos uma olhada juntos. Subimos com sua canoa, eu levando comigo duas mudas de coco que levei de São Gabriel da Cachoeira. Plantamos juntos essas mudas.

Anos mais tarde, quando esse local perto da foz de Umari Norte já era uma aldeia onde trabalhava regularmente, gostava de mostrar aos visitantes esses dois coqueiros e contar que eles eram as plantas cultivadas mais antigas do lugar, ambas plantadas pelo Higino e por mim.

Higino plantou muito mais do que somente dois coqueiros. O novo São Pedro virou centro de um verdadeiro Renascimento Indígena, com Higino como uma das principais lideranças. Aqui se originou a Escola Tuyuka Utapinopona, uma escola pioneira em educação diferenciada. Aqui a língua Tuyuka, que estava desaparecendo, voltou a ser uma língua forte.

Conhecia o Higino mais como Wiwisero, que era seu apelido. Wiwisero é o nome de um passarinho. Agora, o canto desse passarinho calou, mas as mudas que ele plantou continuará a dar muitos frutos.

Higino na Estação de Pisciultura de Caruru, com José Segnorini

Fonte: ISA

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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