Os Guarani do litoral paulista tem sua própria floresta de palmito

POVO GUARANI PLANTA E COLHE SUA PRÓPRIA FLORESTA DE PALMITO

Os Guarani do litoral paulista plantaram sua própria floresta de palmito. Antes que o turismo chegasse às praias da região, os Guarani tinham uma floresta inteira de juçaras ao seu redor. 

Por Xavier Bartaburu/Mongabay

Devido a seu palmito, a juçara, árvore nativa da Mata Atlântica, foi consumida no ao limite da . Consumidores tradicionais do palmito de juçara, os Guarani do litoral paulista decidiram reverter essa perda plantando milhares de palmeiras em sua reserva aos pés da Serra do Mar.
Com mais de 100 mil pés de juçara plantados desde 1998, a comunidade agora vende palmitos e mudas a turistas e moradores. O próximo passo é extrair a polpa dos frutos — a resposta da Mata Atlântica ao açaí amazônico. Na reserva Guarani, as juçaras crescem em meio às árvores nativas segundo o sistema agroflorestal, método que combina cultivos agrícolas com a vegetação, mantendo a floresta em pé e sua .

Dois ou três golpes de machado e já era: em menos de cinco minutos, lá se vão dez anos de árvore. Fosse outra palmeira nativa, como pupunha ou açaí, em pouco tempo nascia outra no lugar. Mas não a juçara: como ela não gera novos brotos depois de cortada, cada caule derrubado é um a menos na mata. Sua sobrevida se limitará a um tolete de palmito de não mais que meio metro ou um pote de conserva – uma década consumida numa única refeição.

Eis a razão pela qual o palmito de juçara (Euterpe edulis) praticamente desapareceu das prateleiras de supermercado. Décadas de comercial fizeram desta palmeira da Mata Atlântica uma espécie rara, hoje restrita às florestas úmidas da Serra do Mar nos estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, em geral dentro de áreas de conservação. Isso obriga seus remanescentes a sobreviverem em uma paisagem fragmentada, com baixa diversidade genética e ameaçados pelas mudanças climáticas.

O resultado é que hoje os brasileiros consomem o palmito de palmeiras menos saborosas e mais fibrosas, como açaí (Euterpe oleracea) e pupunha (Bactris gasipaes), ambas nativas da , ou palmeira imperial, nativa do Caribe (Roystonea oleracea).

São espécies de crescimento rápido, geralmente prontas para serem cortadas após no máximo quatro anos — a juçara exige entre oito e doze anos para produzir um palmito de boa qualidade. Os poucos palmitos de juçara vendidos no mercado vêm de cultivos comerciais ou são extraídos ilegalmente (seu corte na está proibido no Brasil desde 1998).

No estado de São Paulo, um dos últimos refúgios da juçara nativa, estima-se que pelo menos 50 toneladas anuais de palmito sejam vendidas de maneira ilegal. Isso equivale a cerca de 75 mil árvores no chão, geralmente cortadas por palmiteiros dentro de áreas protegidas, que costumam acondicionar o palmito em potes com salmoura ali mesmo, na mata, em acampamentos clandestinos, sem obedecer a normas de higiene. O palmito em conserva ilegal é um conhecido agente de botulismo, doença potencialmente fatal que pode danificar o sistema nervoso e causar paralisia.

Mas isso é só parte do problema: a juçara é também uma espécie-chave para a manutenção do equilíbrio ecológico na Mata Atlântica. Pelo menos 58 espécies de aves e 21 de mamíferos se alimentam de seus frutos, entre elas tucanos, sabiás, jacus, antas, pacas e queixadas.

Todas se servem dos altos teores de gorduras e carboidratos contidos na polpa como fonte de energia para sobreviver na mata e aumentar as taxas de reprodução. Os animais também ajudam a dispersar a palmeira: ao comer a polpa e largar a semente fora – seja regurgitando, seja pelas fezes –, o grão germina mais rápido, onde quer que caia.

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A juçara pode crescer até 15 metros, mas apenas os 50 centímetros superiores do caule são aproveitados como palmito. Uma vez cortada, a árvore morre e nenhum broto volta a crescer. Foto: Xavier Bartaburu

A solução Guarani

 No litoral norte de São Paulo, os primeiros a sentir o sumiço da juçara foram os Guarani, consumidores do palmito desde muito antes das conservas. Tanto que nem gostam delas. Para os indígenas, palmito bom é palmito cru, acompanhado de mel de abelha jataí. Ou assado no moquém, sem sal, para comer com beiju. É palmeira da maior importância para eles, pois dela não só tiram o alimento como também aproveitam o caule e as folhas para a construção de casas.

Antes que o turismo chegasse às praias da região, os Guarani tinham uma floresta inteira de juçaras ao seu redor. Quando o asfalto da Rodovia Rio-Santos rasgou a área nos anos 1970, condomínios e casas de veraneio começaram a devorar a floresta com o mesmo apetite que os recém-chegados tinham pelo palmito.

“Os brancos foram induzindo os índios a cortar o palmito em troca de ferramentas. Depois veio o dinheiro, os índios começaram a vender para os brancos. Foi um desastre”, diz Adolfo Timótio, cacique da Terra Indígena Ribeirão Silveira, área de 9 mil hectares encaixada entre a praia de Boraceia e a Serra do Mar, nos municípios de Bertioga e São Sebastião. No final dos anos 1980, já quase não havia mais juçara. “A gente tinha que ir cada vez mais longe na mata buscar palmito”, lembra Adolfo.

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Os Guarani são um dos maiores grupos indígenas da América do Sul, ocupando áreas no Brasil, Paraguai, Bolívia e Argentina. Aqueles que vivem no litoral, como as 120 famílias da Terra Indígena Ribeirão Silveira, costuma construir suas casas com folhas e troncos de juçara. Foto: Xavier Bartaburu.

Adolfo diz que a pressão sobre o território Guarani acabou levando à criação da reserva indígena em 1987, mas não resolveu o problema da escassez de juçara. Então, em uma manobra inédita, as famílias da TI Ribeirão Silveira resolveram garantir o futuro de sua palmeira favorita plantando seu próprio palmital. Deixaram de ser coletores para se tornarem produtores.

“Começamos o com a construção do viveiro”, diz o vice-cacique Mauro dos Santos. Foi nele que, em 1998, os Guarani começaram a cultivar dezenas de mudas de juçara, que depois seriam plantadas em seus quintais, em meio à vegetação nativa da Mata Atlântica. É o que tecnicamente se conhece como agrossilvicultura, sistema que integra cultivos alimentares com a floresta para criar um ecossistema que sustente a biodiversidade, reduza a erosão do solo, retenha água e sequestre carbono da atmosfera.

Perfeito para a juçara, espécie que requer umidade para germinar e sombra para crescer. “A juçara não gosta de estar fora da floresta”, diz Maurício Fonseca, sociólogo que ajudou os Guarani no desenvolvimento do projeto agroflorestal. Em outras palavras, não é preciso derrubar a floresta para cultivar o palmital. Em vez disso, o sistema permite que a Mata Atlântica nativa permaneça de pé, com toda a sua biodiversidade, incluindo as espécies animais que compartilham a área do Ribeirão Silveira com os Guarani.

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No sistema agroflorestal implantado no território Guarani, a juçara cresce em meio à vegetação nativa da Mata Atlântica. Foto: Xavier Bartaburu

No início, o plantio era feito de forma um tanto experimental, misturado à pupunha e ao açaí, espécies amazônicas que a Funai inicialmente incentivara os indígenas a cultivar como alternativa à juçara. Por serem árvores mais produtivas, acabaram dominando as terras Guarani. Isso só mudou quando o Slow Food, organização internacional dedicada à salvaguarda da diversidade alimentar, criou a Fortaleza da Juçara em 2004, o que facilitou a captação de recursos financeiros para fomentar a produção de juçara na reserva.

O Slow Food coordenou várias iniciativas no Ribeirão Silveira, mas talvez a mais importante tenha sido um inventário realizado em 2008. Na ocasião, dezenas de indígenas foram mobilizados para medir, numerar e identificar as juçaras que cresciam em seus quintais.

O que descobriram foi revelador: a incidência de palmeiras estava muito abaixo do que a legislação brasileira exige para um plano de manejo. Pela lei, deveria haver pelo menos 3 mil árvores jovens por hectare, mas na época os Guarani haviam plantado pouco mais de 400 por hectare. Era uma produção impossível de se sustentar.

O inventário foi o ponto de partida para a criação de uma cartilha de manejo sustentável em parceria com os indígenas, que no fim se tornou a melhor maneira de garantir que nunca falte palmito na mata. Com as novas diretrizes, os Guarani da aldeia de Bertioga multiplicaram as plantas-mãe – aquelas destinadas a gerar sementes – e repovoaram de juçaras a floresta em torno das aldeias. Em dois anos, chegaram a 10 mil árvores, feito celebrado em 2010 em Turim, na Itália, onde o cacique Adolfo falou para uma audiência de 10 mil pessoas durante a abertura do evento anual Terra Madre, do Slow Food. Em guarani.

Uma década se passou desde então, e nesse tempo a mata de juçaras Guarani aumentou dez vezes. “Agora temos mais de 110 mil pés na reserva”, diz, com orgulho, o vice-cacique Mauro.

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Os Guarani do litoral paulista preferem consumir o palmito de juçara cru (com mel) ou assado no moquém. Foto: Xavier Bartaburu

Viveiros na floresta

O cultivo da juçara na Terra Indígena Ribeirão Silveira envolve toda a comunidade —mais de cem famílias distribuídas em cinco aldeias. Isso inclui as crianças, pequenas o suficiente para escalar as palmeiras e colher os cachos cheios de frutos que crescem perto da copa. Das sementes desses frutos é que nascerão as novas juçaras.

Isso é feito duas vezes por ano, quando os frutos estão maduros: entre abril e maio e entre novembro e dezembro. Mas também há o que eles chamam de “canteiros naturais”, áreas próximas à -mãe onde pássaros e pequenos mamíferos geralmente deixam cair as sementes depois de comer a polpa. Quando os indígenas coletam as sementes, a natureza já deu início ao trabalho de germiná-las.

Quando cabe aos Guarani estimular a germinação, eles utilizam um processo que alterna cinco dias de secagem com uma semana de armazenamento. Isso é feito o mais próximo possível do ambiente natural do juçara, sempre uma área úmida e sombreada no meio da floresta, geralmente perto de um rio. As mudas ficarão cerca de cinco meses ali, até perderem as primeiras folhas. Depois, vão para os viveiros por mais seis meses, até que as juçaras estejam prontas para conquistar seu lugar definitivo na floresta.

Após sete anos, um pé de juçara começa a dar os primeiros frutos. Aos oito, seu palmito já pode ser extraído, mas ainda é um tolete fino com pouco valor comercial. Os melhores palmitos aparecem aos dez anos, quando atingem o máximo de textura e sabor.

As famílias do Ribeirão Silveira cortam palmito toda semana, sempre às quintas e sextas-feiras, para vender no acostamento da Rio-Santos durante o final de semana. Cobram entre 10 e 30 reais o tolete, dependendo do tamanho, o que pode não parecer muito, mas constitui sua principal fonte de renda hoje.

Ainda é um negócio bastante informal, já que a comunidade indígena não possui uma empresa aberta para vender o produto. Na verdade, o acesso ao mercado formal ainda é o maior obstáculo na cadeia produtiva Guarani. E eles também precisariam de uma escala de produção muito maior para abastecer supermercados ou restaurantes. “A gente precisaria juntar várias aldeias para ter boa quantidade de palmito”, diz o cacique Adolfo.

Veranistas são a maior parte da clientela, e não só do palmito — os Guarani também vendem mudas de juçara, cultivas em dois viveiros com capacidade para 2 mil pés.

Eles se beneficiam de uma lei municipal que exige que, a cada corte de árvore nativa para a construção de uma nova casa na região, sejam plantadas 30 mudas de espécies nativas. Ou seja: os maiores clientes dos Guarani são justamente aqueles que põem a floresta abaixo.

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Sem acesso ao mercado formal, os Guarani da TI Ribeirão Silveira vendem o palmito na beira da estrada, perto da praia. Foto: Xavier Bartaburu

Novo fruto do trabalho: polpa de juçara

O melhor resultado do esforço dos Guarani, no entanto, pode não ser o palmito da juçara, mas seus frutos. É a resposta da Mata Atlântica ao açaí amazônico: textura e sabor muito parecidos, mas com o benefício adicional de possuir níveis ainda mais altos de antocionina, pigmento com poderoso efeito antioxidante.

Além disso, vender a polpa da juçara ao invés do palmito mantém em dia a saúde da floresta. “O interessante desse processo é que você não perde nada”, diz Maurício Fonseca. A palmeira permanece em pé enquanto os frutos podem ser usados ​​para a extração da polpa. Ou ​​para germinar novas mudas, caso os animais comam parcialmente os frutos. “A semente volta para a terra, repovoa a espécie e ao mesmo tempo gera renda. Esse é o processo mais sustentável da juçara.”

Os Guarani já têm uma máquina de extração de polpa de juçara na aldeia principal, que trouxeram do Pará há cerca de 20 anos. Mas só agora, segundo Mauro, eles se sentem preparados para dar o pontapé inicial no projeto. “Estamos pensando em processar a juçara aqui na aldeia, com rótulo Guarani”, diz o vice-cacique.

Inspirados em experiências anteriores de comunidades no litoral paulista, eles receberam R$ 413 mil em ajuda do governo estadual em novembro de 2019 para criar uma cadeia produtiva sustentável de polpa de juçara. O projeto inclui uma unidade de processamento de polpa congelada, reforma de viveiros, treinamento de equipes e veículos de apoio. E, claro, uma floresta de pé cheia de juçaras.

Sem acesso ao mercado formal, os Guarani da TI Ribeirão Silveira vendem o palmito na beira da estrada, perto da praia. Foto: Xavier Bartaburu 
Os frutos da juçara são semelhantes aos do açaí. No Sudeste, vem crescendo o consumo de sua polpa como alternativa ao açaí amazônico. Foto: Marcelo Kuhlmann (CC BY-NC-SA)

Fonte: Projeto Colabora

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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