Sabiduras da mestra Dona Flor do Moinho
E ia embora pra lá, e nós ia pro mato. Eu sou do mato por causa de minha vó.
Ela assim, ela não mexia com raiz, ela mexia com as alimentação do Cerrado, gravatá, pegava pequi, pegava baru, pegava mangaba, panhava cagaita, pegava um que eles chama de garirobinha…
Por Dona Flor, com organização de Juliana Floriano Toledo Watson
E era assim, jatobá ela panhava, que tem dois tipo de jatobá, né? Tinha o jatobá que dava no tempo do caju, que é o jatobá do campo, e tem o da montanha, que minha vó falava, ela falava pra gente jatobazão.
Então ela cuidava mais dessa parte. Ela ia colhê as fruta dela as flô e as folha.
Tudo o que eu via, enfiava no nariz. Minha vó falava pra mim:
_ Cê ainda vai enfiá um besouro no nariz.
Porque eu panhava flor e esfregava no nariz, pra cheirar se ela cheirosa e levava.
Flô, folha eu pegava já levava umas capanguinha que minha vó fazia, que era uma sacolinha de pano, ela fazia daquele jeito pra mim levá pro mato, eu levava.
Eu panhava as fôia e cheirava… Essa aqui serve pra remédio, botava dentro da sacolinha.
Levava pra casa e botava lá, secano. E ela brigava, porque secava, sujava o terreiro e tal, e eu falava:
_ Mas ah, vovó, isso aqui uma hora vai servir.
_ Pra que minha filha, Sua o terreiro dimais.
_ Mas quando sujá o terreiro eu vou varrê.
E quando foi um dia ela começou com uma espirradeira, tossindo, ela fumava sempre o cachimbo, que ela mesma fazia, o cachimbinho de barro. Aí falou:
_ Eu tô com a cabeça doendo, com meu nariz doendo, e não sei o que eu faço.
Eu fui lá e botei a panelinha de barro no fogo, peguei a negramina, peguei a folha de cagaita, peguei um trem chamado de imbu, é um que toma pra emagrecer, peguei um da folhona grande, que dá um cacho vermelho, tem uns que chama bate-caixa, tem uns que chama chapéu de couro.
Aí eu fiz o chá e ofereci pra ela. Ela:
_ Eu não vou beber não.
Que nunca tinha bebido aquilo, que podia dá nela uma diarreia. Eu falei:
_ Não, vovó, não dá à senhora remédio amargo não, bebe ao menos um pouquinho.
Aí panhei sabugueiro, flor de laranja, casca de laranja, fiz um otro chá e dei pra ela.
Aí ela tomou o chá de laranja, deitou, já acordou, já acordou sem espirrar.
Acordou. Eu enganei ela e dei a ela do otru, tomou. Pegou o algodão, foi mexer com o algodão, esqueceu da dor, falô:
_ Minha cabeça aliviou, num tá doendo mais.
_ Pois é, agora nós podia era pôr um paninho na testa, pra segurar, pra não doer.
Vou esquentar esse paninho, eu ponho um na senhora e otru em mim.
Porque eu tava espirrano demais da conta. Nesse tempo não era assim como é hoje, era tudo poeira.
Aí eu arrumei esses dois paninhos e pus um nela e otru ni mim.
E eu bebi do chá, porque toda vida eu gosto de chá, bebi e deitei. Fomos dormir e acordei eu e ela lavadinha de suor.
Aí agora ela começou a acreditar nos remédios do Cerrado, e daí pra cá foi eu e ela, mas ela nunca pegava nem folha nem flô pra levar pra casa, eu que pegava.
O dia que podia eu ficava mais ela, o dia que eu, não podia, eu ficava com minha mãe.
Florentina Pereira dos Santos, Dona Flor e Juliana Floriano Toledo Watson (organizadora) – Excertos do livro “O Partejar e a Farmacologia de Dona Flor – História e ensinamentos de uma mestra Quilombola“. Editora Avá, 2022.
Florentina Pereira dos Santos, Dona Flor
Nasceu em 2 de fevereiro de 1938, na fazenda Santa Rita, Alto Paraíso – GO.
Gestou 15 filhos/as e adotou mais 27 vidas. Como parteira, recebeu em seus braços 333 crianças.
Quilombola da Comunidade Moinho, neta de indígena, analfabeta, foi boia-fria, garimpeira, tropeira, feirante, agente comunitária de saúde e assistente social. Na comunidade, foi mestra quilombola, parteira e raizeira famosa.
Dona Flor morreu em uma quarta-feira, 9 de agosto de 2023, em Alto Paraíso de Goiás, aos 85 anos de idade.
Juliana Floriano Toledo Watson
Nasceu no dia 11 de abril de 1985, no Distrito Federal. Ativista, feminista, viu na ginecologia natural e autônoma um dos caminhos para o bem-viver.
Iniciou seus estudos na área em 2006,com grupos de mulheres, e seguiu trilhando a partilha desses saberes em rodas e oficinas pela América Latina, sempre em diálogo com erveiras, parteiras e raizeiras tradicionais.
Mora em Cavalcante -GO, no meio de um Cerrado em regeneração.
Atua como terapeuta em ginecologia, enematerapeuta, doula e assistgente de parteira.
Faz parte da coletiva Saúde com Amor, que produz com carinho, cuidado e respeito, medicinas naturais, e repassa alimentos extraídos ou cultivados pelas comunidades.
Pesquisadoras, é formada em Antropologia, e é mestra e doutoranda em Bioética.