Stepan Nercessian: Manifesto
Por Stepan Nercessian
Por que eu menina
Criada no asfalto
Do batom e do salto alto
Penso tanto em você?
Minha selva
É de bromélias e samambaias
Preservada por grades
Guaritas e vigilantes
E a todos os instantes
Penso tanto em você.
Vejo o anjo
De Brasileia
Lutando contra a alcateia
De lobos e motosserras
Vigiando as terras
As onças
Os seringais.
“Integrar para não entregar”
“Soldados da borracha”
“O Novo Eldorado”
Promessas de um céu no chão
Tudo ilusão.
Aquela gente
Fugindo da seca
Encontrou enchente
Epidemias
Covardias
Canos de espingarda
Mira de escopetas
Terra de capetas
O sonho desmoronou.
Do alto do meu prédio
Entre a insônia e o tédio
Com os olhos embaçados
De literatura e fumaça
Observo o engarrafamento
Aumento o meu tormento
E me convenço
Que Xapuri é aqui.
Que sensação estranha
Abrir a geladeira
Para colher castanhas
Em véspera de um Natal
Que não virá.
Por que me preocupo
Tanto com você?
Com índios, matas
Fronteiras e Amazônia
Com açaí e pamonha
Ianomâmis
Guaranis
Xavantes
Almas distantes
Tão perto de mim?
Meu livro de autoajuda
Foi escrito
Por Euclides da Cunha
Villas Boas
Dorothy
Dom Tomas Balduino
E soa como hino
Me acorda
Aborda minha
Consciência
Me conclama para
Uma luta justa
Luta
Que não é só minha
É de todos
E quase todos
Estão dormindo.
No carpete
De minha sala
Escorre O Negro
Madeira
Japurá
Tapajós
Xingu
Javari
Solimões
Inundam minha alma
E eu os acolho
Secretamente
Para que o síndico
Desse condomínio
Não os expulse
Daqui
Citando o regimento interno
O manual de segurança
As regras de convivência
A moral e os bons costumes
Estrumes da civilização.
O corpo de bombeiros
Com sua sirene estridente
Vai tirar um gato do telhado
Ou um advogado
Preso no elevador
Acompanho
Tudo
Através do buraco
Imenso
Que a camada de ozônio
Abriu no teto
De gesso rebaixado
Por onde escorre
Leite
De seringueiras
Feridas.
Dura lex sed lex
Vale tudo
No látex.
Em um programa de entrevistas
Um ministro sinistro
Pergunta com
Cara de semente infrutífera
Fazendo pose de artista
“Que diferença faz quem é Chico Mendes, neste momento?”
Lamento
Faz toda diferença
Excelência.
Faz falta demais.
Pergunte a Elenira
Pergunte a Sandino
Pergunte as Araras
E aos Quatis
Pergunte ao raiar do dia
Ao cair das tardes
E eles te dirão dos empates
Da liberdade e da escravidão.
Todos fazem diferença
Cada homem uma sentença
E a cabeça que pensa
O coração que palpita
A voz que grita
É a cura da doença
De toda alienação.
Vidas importam
Todas vidas importam
As retinhas
E as tortas
Chuva e aluvião.
Alguém tem o mapa
Das terras devolutas
Uma fotografia
Do usucapião?
Estou sem teto
Sem afeto
E no papo reto
Descubro
A arte de embromar
Adiar
Esperar o bolo crescer
Pra depois distribuir
Ou tudo pode ruir
Na cabeça
De quem se revoltar.
Na terra que
A bola rola
Tem quilombola
Comparado a porco
Pesado em arroba
Espancado em vielas
Amontoados em favelas
Como se não pertencessem
A esse mundo.
Os navios negreiros
Flutuam nos trens
De uma central
Chamada Brasil
Varonil
Com um céu azul
De anil e monóxido
De carbono
E lá se vai meu sono
Pensando no abandono
Que muitos não querem ver.
Vou acordar tarde
Ir pra faculdade
Estudar a revolução Francesa
Brioches e guilhotinas
E testar minha resistência
Caipira
Essa cabeça que pira
Pensando em você.
Por que será que eu penso tanto em você?
Alguém me diz
Que devo sossegar
Aproveitar o que a vida me deu
Que não tenho que me preocupar
Com o que se passa do outro
Lado da vida
Com a outra margem do Rio
Dizem também que cada um
Tem aquilo que merece
Que grama ruim não cresce
E que não adianta
Dar pérolas aos porcos
Murro em ponta de faca
Que eu preciso fazer terapia
Ou qualquer dia
Posso enlouquecer.
Fui criada pra casar
Cuidar de marido
Me anular
Afogada nas prendas do lar.
Cuidar dos filhos
Dormir olhando pro teto
Esperando os netos
Ter olhares discretos
E não pensar no mundo
Vasto mundo
Delineando meus olhos
Me ensaboando em cremes
Da eterna juventude
E por pensar demais
Tomei outra atitude
Não posso voltar atrás.
Onde existir luta
Eu vou
Vou para lutar
Lutar por minoria
Democracia
Liberdade de expressão
Levantar quem está no chão
Combater a opressão e a tirania
Inimigas da alegria
Comparsas do horror.
Vem de longe a covardia
Do tempo das sesmarias
Dos escravos
Da escravidão.
O chicote e o açoite
Me açoitaram também.
Lembranças amargas
Da ditadura de Vargas
Um Estado Novo
Controlando o povo
Consolidando leis
Trabalhistas
Para que os elitistas
Industriais
Pudessem escravizar
O trabalhador
Coberto de razões legais.
Foi criado
O salário ínfimo
A siderurgia
A mesma que um belo dia
Azedou as águas
Do Rio Doce
E enterrou Brumadinho.
São essas pedras
Que pavimentam meus caminhos
Não consigo fingir
Que nada disso aconteceu.
Por isso penso em você
Todos os dias
Todas as tardes
Todas as noites.
É gigantesca
A paixão
Que tenho pela vida
É gigante
Meu amor pelo Brasil.
Independência ou Morte
Entradas e Bandeiras
E a morte vindo na esteira
Dizimando
Gente e matagal
Por ordem de Portugal.
A corda que enforcou
Herzog
Fiada em tecido
E farsa
Foi testada em Tiradentes
E em muitos
Pescoços valentes
Que não se renderam
Nem se rendem
E não param de perguntar:
Por que tem que ser assim
Se tudo pode mudar?
Pau que nasce torto pode se endireitar.
Pra quem quer viver de ciclo
Replico que chegou a hora
De desfazer os enganos
Os planos mirabolantes
Que mudam a todo instante
E mais destroem
Do que resolvem.
Ciclo do ouro
Do café
Da borracha
Da indústria
Do petróleo
Avós do vale do silício
Enquanto o sacrifício
Termina nos mesmos ombros
A carga nos mesmos lombos.
Quem somos?
Quem somos?
Por que me preocupo
Tanto com você?
Você que morreu
Na guerra do Paraguai
Lutando pelo Brasil
Escravo da Inglaterra
Que deu a vida
Em troca da alforria
E era quem primeiro morria
Nas batalhas sangrentas
Acreditando em promessas
Nojentas
Que jamais foram cumpridas
Nações desunidas
Negros matando índios
Avaí
Tragédia tupi-guarani
Tropical Haiti.
Vamos minha gente
Colher banana
Moer a cana
Erguer a oca
Comer mandioca
Tudo que o mestre
Mandar fazer
Faremos
Darei minha vida
Por minha casa
Minha vida
Por um prato de comida
E se tudo for mal
Aceito
Auxílio emergencial
A alma nacional
Dilacerada
Nossa historia
É uma emboscada
Um trinta e hum de março
Fantasiado
De primeiro de abril.
A voz do Brasil
Informa
Que somos a terra
Da reforma
Da protofonia
Das bachianas
Do Aquífero Guarani
Somos o instável
O que balança, mas não cai.
Menina vai
Com jeito vai
Olha a reforma do ensino aí
Gente.
Reforma agrária
Tributária
Fiscal
Reforma da tapera
Da telha de amianto
Do diabo
E do santo
Rezando na mesma cartilha
Seguindo a mesma procissão.
Por que eu penso tanto em você?
Por que você não se endireita
Ou pelo centro ou pela esquerda
Pode escolher
Só queria uma trégua
Um período de paz
De justiça
De contentamento.
Me diz
Paradisíaca criatura
Que tem terra, ar e mar
Por que tanto apego
Ao sofrimento
Ao massacre de si mesmo?
Merece uma sova
Quem criou a Bossa Nova
O cinema Novo
Que tem Pele e Garrincha
Oscarito e Grande Othelo
Feijoada e caipirinha
Vila Lobos
Machado e Drummond
Corcovado
E Pantanal
E com tanta riqueza
Faz da pobreza
Seu cartão de visita
Sua dor infinita
Sua vergonha nacional.
Sem renda
O melhor da escola
É a merenda
E na ficha cadastral
Pode escrever
Analfabeto funcional.
Não sei usar
Compasso
O melhor que faço
É lubrificar um fuzil
Derreter barra de ouro
Alterar chassis
E escapar por um triz
Dos perigos que herdei.
Juventude
Sem atitude
Tem vida curta
Morte breve
Vivendo em greve
Contra o futuro.
Por que me preocupo tanto com você?
Terra do faz de conta
Terra do pendura
Casa da fartura
Só pode ser loucura
Ver essa agua mole
Que nunca fura
A pedra dura
Que desaba sobre nós.
O Bruxo do Cosme Velho
Veio do Morro da Providencia
E por essas coincidências
Por aqui
Tudo se cruza
Nasce uma Lua cafuza
E um sol miscigenado
Misturado
Raoni com olhos de japonês
Uma coisa de cada vez.
Quero sair daqui
Fugir desses viadutos
Procurar um companheiro
Em que eu possa acreditar
Salve Antônio Conselheiro
Uma agulha no palheiro
Que cansado dos absurdos
Fez do sonho de Canudos
Uma utopia tropical
Um sertanejo sofrido
Com traições amorosas
Se embrenhou no interior
Da alma e do sertão
Mais uma luta em vão.
Virou enredo
De Escola de Samba
Corda sem caçamba
Na terra da corda bamba
Vítima de fake News.
Acusado de monarquista
No tempo em que a República
Conquista
O direito de governar.
Velha República
Nova república
Que faz da rés pública
Capital particular.
De lá pra cá
Tristezas e desenganos
Sem ordem
Sem progresso
O que resta é recesso
Dor que arrebata
Revolta e Chibata
Tragédias colossais.
Minha alma grita
Desde o tempo
Da anistia ampla
Geral e irrestrita
Das diretas já
Movimentos lindos
Sonoros
Feito ciranda
De Lia do Itamaracá.
Por que penso tanto em você?
Moeda mutante
De valor flutuante
Muda de nome
De tamanho
De cor
A cada golpe
Do impostor
A cada ataque
Do capital
Internacional
Foi Primeiro Real
Por trezentos anos
Depois os desenganos
Cruzeiro antigo
Cruzeiro novo
Cruzado brasileiro
Cruzado Novo
Terceiro Cruzado
Cruzeiro Real
Segundo Real.
Tudo bem ou tudo mal?
Viva o feriado
A sexta feira santa
A buchada de bode
Viva o Carnaval.
Dez
Nota dez
Viva o centavo
Viva os mil réis.
Revolução de trinta
Tenentismo
Dezoitos do forte
Tudo cheira a morte
A golpe
Violação.
Tem caçador de marajá
Tem mensalão
Tem mensalinho
Rachaduras e rachadinhas
Patrulhinha e petrolão
Esse chope tá aguado
E a farra do guardanapo
Ainda não acabou.
Por que penso tanto em você?
Terra do suicídio
Do presídio superlotado
Do trafico e da milícia
Da ginga e da malicia
Onde a notícia
Chega antes do fato
Paraíso do boato
E do crime passional
Pasto bom pra amador
De mutreta oficial.
João Pessoa
Tomou tiro na Paraíba
Dizem que numa briga
Recheada de ciúmes.
Quando o sangue chegou
Nas águas do Guaíba
Determinou
A saída
De um golpe
Invadiu o Sul e o Norte
E a ditadura se instalou.
Cavalos no obelisco
Flerte com Mussolini
Piscadelas para Adolfo
Censura
Porrada
Morte
E um Anjo Negro
Resguardando um suicídio.
Tem Frente Ampla
Vassourinha
Tem corvo
E lacerdinha queimando
Os olhos da gente.
O Rio Guandu
Esconde o destino
Final da mendicância
Instalou-se a intolerância
Com os que não
Sabem enriquecer.
Favelas queimadas
Vidas dizimadas
Vai ficar tudo um brinco
Cinquenta anos em cinco
Isso aqui vai florescer.
Por que me preocupo tanto com você?
Nos templos e nos terreiros
Vão rezando os brasileiros
Com dízimos e oferendas
Parindo fé
Criando lendas
Pagando mico
Ganhando prendas
E ainda que se machuquem
Entoam um triste batuque
Que anima seguir em frente
Mesmo que descrentes
Com o fim das tempestades
Antes nunca do que tarde
Não desiste nunca
Ate chegar a hora de desistir
E acreditem
Este tempo esta por vir.
Vou terminando o manifesto
Contra tudo o que detesto
Um gemido de protesto
Uma gota no oceano
Quem sabe no próximo ano
Meu canto mude de tom
E eu possa entender
Por que penso tanto em você, Brasil.
Stepan Nercessian -Ator. Escritor. Poeta. Colaborador da Campanha SOS Xavante: www.captar.info/campanha/sosxavante/