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500 línguas nativas correm perigo na América Latina

500 LÍNGUAS NATIVAS CORREM PERIGO NA AMÉRICA LATINA

500 línguas nativas correm perigo na América Latina

Da Patagônia à América Central, um atlas registra os idiomas originários que os povos indígenas, ameaçados hoje por pressões econômicas e culturais, lutam para manter vivos

Por: Carlos Herasbrasil.elpais.com

Das comunidades mais recônditas da Amazônia aos bairros de grandes cidades sul-americanas como Lima e Buenos Aires, as nações originárias e seus idiomas nativos atravessam todo o território da América Latina. viva de saberes que sobreviveram ao pior das conquistas europeias, as línguas originárias sobrevivem ameaçadas pela pressão econômica sobre seus territórios, pelo êxodo rural e pela falta de apoio público.

Devido ao cultural que representam e à vulnerabilidade que chega ao perigo de extinção iminente em muitos casos, a Unesco declarou 2019 como o Ano Internacional das . Para a instituição, o direito de uma pessoa utilizar o idioma que prefere é “um pré-requisito para a liberdade de pensamento, opinião e expressão”.

A América Latina não é a região com maior número de línguas, nem de falantes de idiomas nativos − segundo uma estimativa muito aproximada, seriam 25 milhões −, mas é a que apresenta mais diversidade.

As 500 (mais ou menos) línguas nativas faladas estão agrupadas em 99 famílias que se estendem da Patagônia até a Mesoamérica, segundo o Atlas Sociolingüístico de Pueblos Indígenas en América Latina (“atlas sociolinguístico de povos indígenas na América Latina”), publicado em 2009 sob o auspício do Unicef e da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (Aecid), que continua sendo um dos trabalhos mais completos para localizar essa realidade.

Essa diversidade é a principal riqueza linguística da região, pois é um reflexo da e étnica de seus povos e permite investigar a história do povoamento do território ao longo dos milênios, como explica Inge Sichra, sociolinguista austríaca radicada em Cochabamba (Bolívia), coordenadora do Atlas e fundadora do Programa de Formação em Educação Intercultural Bilíngue para os Países Andinos (Proeib Andes).

LÍNGUAS SEM ESTADO

Para a escritora mixe e linguista Yásnaya Elena Aguilar, não existem características linguísticas comuns a todos os idiomas originários, mas sim uma sociopolítica. “São línguas de povos que sofreram colonização, mas não formaram um Estado próprio”, explica.

Aguilar, que recentemente fez um histórico discurso em mixe no Congresso mexicano, destaca que na época independência, em 1810, cerca de 65% da população do México falava uma língua indígena, mas hoje esse índice é de apenas 6,5%.
 
Houve todo um processo de homogeneização cultural, que se apoiou no sistema educativo dos tempos da Revolução Mexicana (1910-1921) e continua até hoje no trato com as instituições públicas, que funcionam quase exclusivamente em espanhol.

Para Aguilar, os casos mais graves só o setor de saúde e o sistema de Justiça, que quase nunca contam com intérpretes, algo que põe em risco a liberdade e a vida das pessoas.

Não foi sempre assim. Diante de um Estado “que se comporta de forma monolíngue”, Aguilar lembra a experiência histórica de Oaxaca − o Estado do sudoeste mexicano onde vive o povo mixe −, onde no século XIX os professores das escolas municipais eram funcionários das comunidades e ensinavam nas línguas próprias.

Na época da independência, em 1810, cerca de 65% da população do México falava uma indígena, e hoje são apenas 6,5%.

Quando a oficial é escrita apenas em espanhol e quase não existe educação formal fora desse idioma, escrever contemporânea em uma língua originária é quase um ato de heroísmo. É isso que a poeta maia Briceida Cuevas Cob faz desde o início dos anos noventa.

Sua poesia se concentra “nas coisas simples que vão nos deslumbrando”, como “um amanhecer, que é um processo” ou “o comportamento de uma árvore”, explica em uma entrevista. Seu método de criação é bilíngue: primeiro escreve em maia e depois, em espanhol, dando vida a um segundo processo criativo que também é “uma ponte” para alcançar aqueles que não podem ler os originais.

Cuevas Cob é originária da comunidade de Tepakán, no sudeste do México. Nessa área, participando de oficinas de escrita e criando uma espécie de movimento cultural, formou-se um grupo de autores maias no final do século XX. “Falar da importância da escrita em língua originária é falar desse processo e de seu resultado, que se vê por meio do grande número de autores que escrevem atualmente [em idioma nativo]”, explica.

RECURSOS E ÊXODO RURAL

O bastião das formas de vida indígenas é tradicionalmente o meio rural, com populações culturalmente mais homogêneas. Hoje, a sobrevivência dessas culturas e de seus meios de expressão está ameaçada pelas pressões econômicas sobre os territórios e pela migração para as cidades.

Segundo Aguilar, “o maior desafio para os povos indígenas é o neoextrativismo”, já que a luta por recursos produz ataques contra seus territórios e seus bens comuns. A ativista lamenta que enquanto as instituições e a sociedade do México aplaudem as expressões culturais dos indígenas, aqueles que se envolvem nas lutas em defesa do território são reprimidos e até mortos.

“Os ativistas assassinados no México em defesa do território e dos recursos eram, na maioria, ativistas de povos indígenas”, assinala. Segundo a ONG Global Witness, a agroindústria e a mineração são os principais negócios vinculados ao assassinato de líderes ecologistas no mundo, e a América Latina é a região que mais sofre esse tipo de ataques.

Os cerca de 500 idiomas nativos falados na América Latina se agrupam em 99 famílias, que se estendem da Patagônia à Mesoamérica.

Outra ameaça para a diversidade linguística é o êxodo rural, que faz com que até alguns idiomas tão falados como o quéchua e o aimará estejam em perigo. Sem as políticas adequadas para reforçar o bilinguismo, a vida na cidade interrompe em muitos casos a transmissão da língua de mãe para filho.

Para Sichra, os idiomas originários mais falados devem ser oficializados e equiparados ao espanhol, mas isso deve envolver políticas efetivas: é necessário que o bilinguismo funcione nas instituições públicas, que ele seja utilizado na educação de forma integral, e que os funcionários tenham as capacidades necessárias.

Cuevas Cob também pede que nas comunidades indígenas o idioma próprio seja a língua veicular da educação, mas reconhece que estudar em maia não traz automaticamente melhores condições de vida, ressaltando que a promoção da linguagem originária e de oportunidades de desenvolvimento para seu povo têm de andar de mãos dadas.

Nesta época de globalização e Internet, o espanhol se torna mais atraente. “É complicado, porque uma cresce, está no Face, nas redes sociais, e poucas vezes se interessa por um texto em ”, diz a escritora. “Quando cursei o ensino básico, nos anos setenta, todas as crianças falavam em maia, não podíamos falar em espanhol porque nos dava risada e não sabíamos”, lembra.

O DIGITAL E AS BOAS PRÁTICAS

Talvez uma forma de revitalizar os idiomas originários seja levá-los ao mundo digital, concordam alguns especialistas, e são muitas as iniciativas para isso. Em El Alto (Bolívia), os jovens bilíngues do coletivo Jaqi Aru traduziram o Facebook, estão desenvolvendo um curso de aimará para a plataforma Duolingo e criam artigos para a versão da Wikipédia em sua língua, que já tem 4.410 entradas.

Além disso, existem versões da enciclopédia digital em quéchua (com mais de 21.000 artigos), náhuatl e guarani, assim como projetos para desenvolver versões em maia e wayuunaiki. O mesmo está sendo feito com o Firefox, o navegador de Internet de código aberto.

Sob o projeto Mozilla original, vários grupos trabalham na tradução de seus aplicativos para os idiomas CH’ol (México), mixteco, paipai purépecha, tének, triqui, tojolobal, tostil, zapoteco e duas variedades de náhuatl no México, assim como para o guarani no Paraguai, o ixil e o kaqchikel na Guatemala e o náhuatl pipil em El Salvador.

Também há experiências positivas por parte do Estado. O Paraguai se aproxima de uma situação de bilinguismo total com o ensino de guarani nas escolas e seu uso habitual nas instituições públicas, nos negócios e na vida cotidiana. Segundo o censo de 2012, 77% de seus habitantes falam guarani paraguaio, uma variedade utilizada pela maioria criolla (descendente de europeus) e mestiça do país, de modo que algumas classificações não a consideram uma língua originária.

Sichra destaca o bom exemplo do Peru, onde o Ministério de Cultura está apoiando ações da comunidade, promovendo a maior participação dos falantes e criando políticas de incentivo para que os funcionários públicos aprendam e usem o quéchua. No Peru também foi lançado em 2017 o filme Wiñaypacha, o primeiro do país rodado totalmente em aimará.

ALGUMAS DAS LÍNGUAS MAIS FALADAS

Quéchua: falado no Peru, Bolívia, Equador, e, em menor medida, na Colômbia, Argentina e Chile. O Atlas Sociolingüístico de Pueblos Indígenas en América Latina, de 2009, estima que na área andina vivam mais de seis milhões de quéchuas, embora nem todos sejam falantes do idioma.

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Aimará: falado principalmente na Bolívia e no Peru. O Atlas estima que quase dois milhões e meio de aimarás vivam na zona andina.

Assim como o quéchua e outros idiomas nativos da América do Sul, essa língua foi um meio de evangelização do século XVI até o fim do século XVIII, o que contribuiu para uma normatização rápida, explica a sociolinguista Inge Sichra.

“As leis da Coroa [espanhola] e os afãs republicanos logo foram contra essas línguas gerais e a favor da espanholização. Essa força normativa desapareceu e as línguas voltaram ao seu estado natural de alta variabilidade”, explica.

No México são falados 55 idiomas originários distintos, segundo o Atlas. Entre eles se destacam, pelo número de falantes, o náhuatl (1,3 milhão), o maia (759.000), as línguas mixtecas (423.000) e as zapotecas (411.000), entre muitas outras.

O guarani: existem povos que falam idiomas da família tupi-guarani na Bolívia, Brasil, Paraguai e Argentina, mas a variedade mais falada é o guarani paraguaio. No censo paraguaio de 2012, o número de habitantes que declararam falar essa variedade guarani foi maior do que o das pessoas que afirmaram falar espanhol.

LÍNGUAS (E POVOS) EM RISCO

Muitos dos idiomas originários têm poucas dezenas ou centenas de falantes, ou já se extinguiram e só deixaram registros. Segundo o Atlas, há 122 idiomas com cem falantes ou menos nos países da América Latina, como o chortí em Honduras, o paraujano na Venezuela, o culina no Brasil e o leco na Bolívia.

Na Amazônia, onde vivem cerca de 800.000 indígenas de quase 250 povos ou nações, sobrevivem muitas das línguas em perigo. Muitas de suas comunidades, principalmente as que vivem de maneira mais tradicional ou em isolamento voluntário, são as mais vulneráveis à petroleira, mineração ilegal, exploração florestal e construção de infraestrutura viária e energética. As mesmas forças que ameaçam acabar com sua biodiversidade são um grave risco para suas culturas originárias.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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