650 GERAÇÕES – O BRASIL ANTES DOS EUROPEUS

650 gerações – o brasil antes dos europeus: comentários sobre o livro

No dia 17 de abril de 2024, na sede do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, foi lançado o livro “650 Gerações – O Brasil antes dos europeus”, dos autores Altair Sales Barbosa e Sandro Dutra e Silva. 

Por Altair Sales Barbosa 

O livro resulta de um esforço conjunto entre o Instituto Altair Sales, a e o Instituto Histórico e Geográfico de Goiás – IHGG. O texto a seguir é de autoria do professor Altair Sales Barbosa, Sócio Emérito do IHGG e membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri. O livro está sendo desdobrado em dez volumes temáticos diferentes, em forma de revista, para atingir um público mais amplo. 

Quando do primeiro contato com os indígenas , totalmente desconhecidos da comunidade científica brasileira e considerados isolados e hostis pelos conceitos da Funai, após muito tempo de espera nos acampamentos dos Planaltos de Alta Lídia, em Rondônia, fomos convidados a visitar uma aldeia com cerca de oito ocas, sendo que cada uma abrigava um clã. 

Ao adentrarmos na primeira oca, após dois dias de caminhada, um fato chamou a atenção: era tamanha a quantidade de panelas e outros utensílios de alumínio que causou surpresa em todos os componentes da expedição, por se tratar de um grupo considerado isolado, sobre o qual, até então, nada se sabia sobre a e outros costumes.

Aquela situação me causou uma série de indagações sobre conceitos, passado e futuro dos povos indígenas do Brasil, indagações estas que carrego comigo até hoje, sem possuir respostas nem uma visão clara sobre o assunto.

Tendemos a encarar determinados trabalhos de pesquisa como tarefas desagradáveis, apesar de a necessidade de resolver problemas intrincados constituir um desafio criativo. 

650 GERAÇÕES

Assim surgiram a necessidade e a ousadia de escrever este livro, cujo objetivo primordial é demonstrar que os povos indígenas que sobrevivem hoje são descendentes de populações que chegaram ao território brasileiro no final do último glacial, mas que tiveram que desenvolver processos culturais cujos esboços traziam do Velho e que foram adaptados às novas exigências de um novo e complexo ambiente.

A dimensão do desafio se torna maior quando temos o conhecimento de que somente uma cultura daria vários volumes e, da mesma forma, uma pequena área conhecida exigiria esforço muito grande para ser enquadrada no formato de um livro pequeno. 

Outro desafio de tamanha envergadura refere-se ao metodológico que a Antropologia define como analogia etnográfica, ou seja, buscar estabelecer as relações entre os povos da Pré- e os povos que sobrevivem atualmente, notadamente descentes diretos ou indiretos dos povoadores mais antigos.

Embora os dados concretos para ligar os fenômenos pré-coloniais com os coloniais ainda sejam muito escassos, há um fato que é de grande importância: seria difícil explicar que a população horticultora encontrada pelos primeiros bandeirantes, firmemente estabelecida no local, não fosse a que ali se desenvolveu nos séculos anteriores. 

Também não se pode aceitar o argumento de que a colonização do litoral pelos europeus já tenha afetado os grupos indígenas na sua estrutura demográfica e cultural, ou que os tenha tornado instáveis antes de os colonos os alcançarem diretamente. 

Rodolfo Amoedo Bandeirante
Caça aos indígenas pelos bandeirantes – Obra de Rodolfo Amoedo

O comportamento pacífico de alguns grupos interioranos, durante os contatos iniciais com o colono, poderia ser indício de que a instabilidade, e com isso o conflito, ainda não se tinham instalado como consequência da insegurança provocada posteriormente pelo branco. As bandeiras chegaram à região rapidamente em busca de mão de obra, ouro e pedras preciosas, não dando tempo de outra onda de desestruturação atingir o local antes deles.

Esses contatos diretos dos bandeirantes, que ainda encontram as tribos plenamente instaladas, com suas aldeias, seus roçados, seus campos de caça e coleta, como haviam sido em épocas anteriores, provocam não só uma desagregação social, mas também a diminuição da população por escravização, guerras, doenças, e ainda a deterioração econômica, com a ocupação de espaços vitais para os cultivos, com a pilhagem das roças, a desorganização dos espaços de cada aldeia, levando os grupos à guerra, primeiro contra os arraiais brancos, mas logo também entre si.

Se fosse possível ter uma etnografia das populações no momento inicial do contato, realizado pelos bandeirantes paulistas, certamente ter-se-ia uma visão mais completa da vida pré-colonial; a imagem que os e etnógrafos do século XIX oferecem das populações então sobreviventes, com absoluta certeza, já é falsa, porque o impacto violento da colonização, primeiro desestruturando e depois reestruturando a sociedade, a economia e talvez partes consideráveis da cultura, já havia sido absorvido. 

Fato é que os seus descendentes que hoje sobrevivem, na medida em que levam uma vida tribal, devem ter reorganizado mais de uma vez a sua sociedade e a sua cultura com os restos que salvaram do impacto colonial, readaptando-as dentro das novas condições e necessidades.

Por isso, mais que uma verdadeira continuidade cultural, deve-se imaginar uma continuidade populacional que em nenhum momento enfrentou maior desafio e foi obrigada a maior criatividade que nos séculos de expansão colonial.

Outro obstáculo, no sentido de construir uma correlação entre os grupos que constituem os povoadores mais recuados no tempo e os povoadores que conseguiram sobreviver até os tempos atuais, refere-se às denominações atuais, oficializadas pelos diversos órgãos governamentais, religiosos e, mais recentemente, por entidades da sociedade civil. 

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Homem Xikrin – Foto: Eduardo Pereira

Essas denominações foram atribuídas aos grupos por outros povos indígenas da vizinhança que as passavam para os colonizadores, para as frentes de atração ou para os primeiros viajantes e religiosos. E, na maioria das vezes, não refletem a verdadeira identidade do grupo. 

Da mesma forma, as autodenominações, chamadas de etnônimos, adotadas por povos cujos membros adquiriram razoável conhecimento histórico, não refletem a integridade dos povos, porque estão camufladas de dissidências internas, comuns a todos os povos, e ainda associadas à estrutura da organização social.

A solução encontrada foi utilizar os conceitos de períodos cronológicos e culturais. As configurações ambientais que caracterizam o final do Pleistoceno e sua evolução até os quadros paisagísticos atuais são colocadas nos primeiros capítulos, pois servem de embasamento para diversos entendimentos.

Por fim, são ressaltadas as populações que caracterizam os povos Indígenas atuais, agrupados em três tabelas: I – por Troncos Linguísticos; II – por localização geográfica; e III – por ordem alfabética. O objetivo dessas tabelas é demonstrar a complexidade e a variedade dos povos indígenas que habitam o território brasileiro no século XXI.

Notadamente, com o desenvolvimento da Arqueologia, da Etnologia, da História e das Ciências Ambientais, muita coisa será alterada com novos dados que possivelmente virão, mas certamente este livro constituirá num alicerce para uma compreensão global da cultura brasileira, pois a verdade deverá sempre ser mais estimulante que a fantasia.

Em síntese, este pequeno livro reflete o complexo povoamento do território brasileiro pelos povos indígenas, desde os primórdios até os tempos atuais. 

O Novo Mundo é um laboratório antropológico único, pois o processo de desenvolvimento cultural aborígene processou-se num quase isolamento, antes que ocorresse uma parada repentina com o fluxo de soldados europeus, sacerdotes, exploradores e colonizadores, após 1492. Em algumas regiões, tais como Grandes Antilhas, leste dos Estdos  Unidos e o Pampa argentino, o impacto foi devastador, e os habitantes indígenas foram rapidamente extintos. 

Em outras, particularmente nas montanhas mesoamericanas  e andinas, os indígenas continuaram a compor a massa da população rural, como ocorria nos tempos pré-hispânicos; sua cultura, porém, passou a ser uma mistura de costumes indígenas e europeus. Somente em poucas regiões inacessíveis,  o modelo aborígene persiste.

Nas planíces norte-americanas, onde antes pastavam mais de  50 milhões de bisontes, hoje 50 milhões de automóveis abarrotam as estradas. Rios foram represados, derrubadas e montanhas aplainadas, de tal forma que até a paisagem conserva pouca semelhaça com aquela de 400 ou mesmo 200 anos atrás. O hemisfério está dominado por gente que continua a traçar sua história  segundo a tradição europeia das antigas civilizações do Mediterrâneo e do Oriente Médio, apesar de meio milênio de residência no Novo Mundo.

Mas se penetrarmos além das aparências, torna-se claro que a civilização moderna seria diferente sem as descobertas dos indígenas  americanos. A borracha, um ingrediente crucial em milhares de inventos, desde os aviões supersônicos até os pneus, é uma planta do Novo Mundo. 

O fumo, que traz  satisfação para pessoas de quase todas as partes, foi domesticado nas Américas. O chocolate, um dos doces mais populares do mundo, era uma bebida Asteca. 

O milho é a base econômica para  milhöes de pessoas e a fonte alimentar de outros milhões, desde os fabricantes de cereais e produtores de ração até os vendedores de pipoca. Domesticado no México, já era conhecido por quase todos povos indígenas americanos desde seis mil anos A. P. 

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Milho crioulo – Imagem: Reprodução/Internet

A batata tornou-se tão importante na Inglaterra que era conhecida como batata inglesa, embora tenha sido domesticada no sul do Chile e cultivada por diversos  povos americanos, desde cinco mil anos A. P.  

Castanhas, amendoins, abacates, abacaxis, feijões, abóboras, batata-doce, tomates e pimentões estão entre as plantas americanas, incorporadas à dieta alimentar em todas partes do mundo; por fim, a mandioca, que pode ser consumida crua, cozida assada etc., com seus inúmeros derivados,  como a crueira, a puba, o polvilho, o beiju e a farinha, o primeiro alimento desidratato da humanidade.

A lista pode ser acrescida ainda com diversas plantas medicinais, incorporadas na famacopéia universal.  Tudo isso está completamente integrado de tal forma à civilização moderna que chegamos a esquecer que são contribuições dos povos indígenas.

Além desse impacto material em nossa vida cotidiana, a pré-história do  Novo Mundo oferece uma contribuição de mais  teórica, talvez, em última análise, mais significativa. Na medida em que a cultura mundial aumenta em complexidade, sua influência sobre a humanidade se torna mais crítica. 

As nações são impelidas a rumos que escapam ao contrle de seus líderes.  Ao mesmo tempo, grande contigente populacional se encontra envolvido nas trevas da falta de conhecimento.  

Nossa única esperança é estudar esse fantasma amorfo conhecido como “cultura”, desvendar seus processos de desenvolvimento e seu comportamento e, através desse conhecimento, influenciar nosso destino.

Para atingir esse propósito, devemos descobrir “como” e “por que” as coisas aconteceram, quando e onde tiveram lugar e se cada avanço foi um pré-requisito necessário ao subsequente. 

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Homem Pataxó – Foto: Eduardo Pereira

Para realizar tal estudo, precisamos conhecer tanto o Novo Mundo quanto o Velho Mundo, pois, examinando qualquer um deles isoladamente, poderemos incorrer em erro. Por exemplo: a escrita é geralmente considerada indispensável para atingir a civilização; porém, os Incas, que criaram um dos impérios mais notáveis da Antiguidade, a desconheciam. 

A roda, outra invenção sempre citada como essencial, nunca foi um elemento significativo na cultura aborígene do Novo Mundo. Os Maias, que possuíam o calendário mais exato do mundo em 1492, desconheciam, porém, a tração animal e o ferro. 

A comparação cuidadosa do desenvolvimento cultural nos dois hemisférios é, portanto, a única maneira pela qual os fatores decisivos podem ser isolados e julgadas as hipóteses sobre o significado relativo das diferentes situações ambientais, sociais e históricas. 

É lamentável que a importância da investigação arqueológica do Novo Mundo se torne flagrante, no momento em que as evidências vêm sendo eliminadas em ritmo acelerado. Em poucas décadas, a expansão das cidades, a agricultura, as barragens e as estradas terão destruído muitos sítios importantes. 

À medida que este processo avança, diminuirão as oportunidades de se reconstruir em detalhes a pré-história do Novo Mundo. Se os dados não forem coletados antes do registro se tornar muito fragmentário para ser lido com , a humanidade terá perdido uma das chaves mais preciosas de sua autocompreensão. 

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p style=”text-align: justify;”>altair salesAltair Sales Barbosa – Arqueólogo. Antropólogo. Sócio Titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Pesquisador do CNPq. Conselheiro da Revista Xapuri desde dezembro de 2014. Pesquisador convidado da Universidade Evangélica de Goiás.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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