Da penitência ou autocrítica

Da penitência ou autocrítica

De pœnitentia vel propria reprehensione

Ainda está no ar a discussão sobre a sinceridade da mea-culpa do capitão Bolsonaro, pela qual ele supostamente teria recuado dos ataques ao Supremo Tribunal Federal…

Por Antônio Carlos Queiroz (ACQ)

Vejam bem, “está no ar” além das portas da minha casa. Julgo que a declaração do Bozo não passou de um solerte artifício de simulação, de hipocrisia, a expressão mal-ajambrada de um recuo tático, que obviamente serviu para tirá-lo das cordas do impeachment. Logo mais, não tenho dú, o genocida, seus filhotes e asseclas voltarão a afrontar as instituições do de Direito. Esses canalhas são de fascista!

Menciono essa questão como nariz de cera para levantar outra que me parece um obstáculo à formação da frente ampla necessária para afastar o Bozo da Presidência no domingo, 12 de setembro, em que ocorrem manifestações antifascistas em todo o País, dessa vez convocadas por movimentos e partidos da liberal. Refiro-me à exigência de parte de setores do campo progressista   de auto-crítica dos que apoiaram o golpe parlamentar contra a presidenta , uma espécie de salvo-conduto para poder participar da frente. 

Ora, uma frente desse tipo não inclui compromissos programáticos para o governo. Tendo em vista que o seu programa tem um único ponto – o afastamento do genocida da Presidência –,  essa frente não tem que ser formada exclusivamente por militantes democrático-populares nem por militantes convertidos aos ideais verdadeiramente republicanos auditáveis. Nessa aliança provisória cabem desde ativistas da comunista até políticos da “direita civilizada” (que valha o oxímoro!). 

Na guerra em curso parece lógica, sensata, a atitude pragmática de desfalcar ao máximo as hostes do inimigo. Quantos mais Alexandres Frotas e Kins Kataguiris se descolando do lado de lá para o nosso lado, melhor, com ou sem autocrítica!

Um cálculo frio – A aritmética do Poder Legislativo deveria ajudar no esclarecimento dos que exigem a pureza de Nossa Senhora da Conceição dos “companheiros de viagem”: para aprovar o impeachment, precisamos contar com 342 deputados, mas o diabo é que nós, a esquerda e a centro-esquerda, só temos 131: PT (53), PSB (31), PDT (25), PSOL (9), PCdoB (8), PV (4) e Rede (1).

Só pra lembrar, se e quando chegar a hora de impedir o impeachment do nosso futuro presidente, precisamos de pelo menos 171 votos. A Dilma só mobilizou 137 deputados, contra 367 e sete abstenções. Por isso não pôde impedir o golpe.

Obviamente, não é necessário de jeito nenhum estender o compromisso com a frente ampla, pontualíssimo, para as eleições do próximo ano. Não seremos obrigados a apoiar a candidatura do PSDB (Doria ou Eduardo Leite) nem a do PSD (provavelmente, Rodrigo Pacheco, saindo do DEM) nem a do DEM (quem sabe, Luiz Henrique Mandetta) nem a do MDB (Simone Tebet) nem a do Cidadania (Alessandro Vieira) ou a do PDT (Ciro Gomes). Antes, porém, precisamos garantir que haverá eleições em 2022.

Pessoalmente, eu apoio a candidatura do Lula, amplamente frentista, juntando desde o PCO até políticos do Centrão, parcelas dos evangélicos etc etc. 

Legado triste – A penitência, rebatizada de autocrítica, foi um dos legados mais tristes da Igreja Católica abraçados pela esquerda. (Pô, eu devia ter botado em latim o título dessa crônica, algo como De pœnitentia vel propria reprehensione). Não bastasse a sua imposição aos próprios militantes, os líderes da esquerda moralista costumam cobrar essa obrigação de pessoas e instituições que jamais abdicarão de suas identidades políticas.

Um exercício inócuo, aliás! De que adianta exigir da Folha de S. Paulo, por exemplo, a autocrítica pelo apoio que deu ao de 1964 e ao golpe parlamentar de 2016? A meu juízo, mais produtivo é valorizar criticamente a produção atual desse jornal, que em geral (nem sempre!) questiona o governo Bolsonaro. Imaginem como teria sido mais difícil a nossa luta contra a Covid-19 se não fosse a sistematização diária dos dados da evolução da pandemia feita pelo consórcio de imprensa que inclui a Folha. 

De que serve exigir autocrítica de ex-golpistas como a Míriam Leitão, o Reinaldo Azevedo e o Felipe Neto? A bem da verdade, os dois últimos até já explicitaram uma, mas o que importa mesmo é que os três têm combatido o governo do genocida todos os dias, às vezes de maneira entusiasmada. Por que excluí-los do esforço geral que visa derrotar o Bozo?

Uma nota engraçada: a Míriam Leitão não fez ainda a sua autocrítica mas guarda da época da militância de esquerda essa mania. Por isso ela fica pedindo uma autocrítica do PT. Um porre!

Eu sempre gosto de lembrar, nessa discussão, o exemplo de um militante da direita que passou para o nosso lado a ponto de conquistar um lugar no panteão dos nossos heróis: o senador Teotônio Vilela! Antes de ser o Menestrel das Alagoas, Teotônio havia apoiado o golpe de 64. Só durante o governo Geisel mudou de posição, aderiu ao MDB, em 1979, e passou a percorrer o País na luta pela anistia. O Teotônio fez uma autocrítica prática, não declarativa, como se fosse um católico praticando a autoflagelação.

Paixão ou virtude? – Seria a penitência uma paixão ou uma virtude, discutiu Tomás de Aquino na Questão 85 da parte III da Suma Teológica. Tomás chegou à conclusão de que pode ser uma paixão ou uma virtude, nesse caso, quando implica a escolha pela reta razão.

Já o filósofo holandês Bento de Spinoza considerou que a penitência (arrependimento) não tem nada de virtuosa, sendo uma paixão triste, derivada da ilusão de que nossos atos deploráveis no passado foram tomados por livre decisão da mente. Daí, disse ele, que os arrependid, coitados, sofrem duas vezes,!

Se eu fosse padre ou pastor, eu escolheria, nessa discussão teológica, o partido de Tiago, defensor da tese de que a salvação exige obras além da fé, contra o partido de São Paulo, segundo quem só a fé garante a salvação. Em se tratando da salvação política, terrena, podemos trocar aqui a fé pela declaração de princípios. A questão é que os atos são mais fáceis de averiguar, como sabia Tiago. As declarações de fé, porém, podem ser disfarces da hipocrisia dos fariseus, como sabia São Paulo.

O sociólogo alemão Max Weber discutiu a questão da crítica e autocrítica na conferência A Política como Vocação, quando opôs a ética dos fins (os princípios morais atemporais que norteiam as ações dos “puros” supostos) à ética da responsabilidade (os princípios seguidos pelos políticos vocacionados, que devem prestar contas das consequências de suas ações).

Ora, diz Weber, “(U)ma ética preocupada em lançar o peso de responsabilidades a atos cometidos no passado cria uma questão insolúvel, porque estéril, despreocupando-se com aquilo que interessa ao politico de vocação – o futuro e a responsabilidade perante este. Atuar dessa forma é politicamente condenável”.

Como não existem militantes ontologicamente puros, como as pessoas são muito complexas, racionais e emocionais ao mesmo , é prudente calibrar o melhor das duas éticas, evitando os extremos. Nem principismo nem oportunismo sem princípios, é o que eu acho, pois um nos conduz ao fanatismo, e o outro, à depravação da política.

Eu sei que é limitada a minha responsabilidade de palpiteiro sem filiação partidária. Antes, porém, de livrá-los desses comentários  semianarquistas, permitam-me sugerir a audição no YouTube da sensacional Sinfonia nº 5 de Dmitry Shostakóvich (1937), um dos maiores exemplos do classicismo heroico. Dou a dica porque a obra é um monumento de ironia aos burocratas. Após ter sido esculhambado por sua ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk (1934), Shostakóvich descreveu sua Quinta Sinfonia como a “resposta criativa de um artista soviético a uma crítica justa”. Desde então, a obra do genial compositor trilhou multidimensionalidades, como dizem os críticos russos. 

Antônio Carlos Queioz – Jornalista.

ACQ Os tres grandesA frente ampla do Stalin, Roosevelt e Churchill derrotou o Nazismo! (@ Suzanne White)


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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