Meu colega Abimael Guzmán e o Sendeiro Nebuloso
Um defunto na cadeia. Caso único de prisão perpétua além da vida. Mesmo depois de morto no sábado (11 de setembro), Abimael Guzmán, 86 anos, continua preso.
A notícia me toca de perto porque fui colega de Abimael Guzmán no Programa de Mestrado da Universidad Nacional de Educación, em Lima, onde ambos éramos professores.
Ao longo de três anos, mantivemos contatos formais e esporádicos, um deles em setembro de 1976, quando saí, como todas as sextas-feiras, para dar minha aula no prédio da av. Salaverry, em Lima.
Lá chegando, fui avisado que no lugar da aula haveria ato em homenagem ao líder chinês, Mao Tse Tung, falecido no dia anterior. Esse sim, enterrado com todas as pompas, depois de governar a China por 27 anos.
No pequeno auditório, luzes apagadas, apenas duas velas acesas iluminavam a sombra de Abimael Guzmán, que presidia a cerimônia e, no breve discurso de abertura, recordou sua primeira visita à República Popular da China, em 1965, em plena Revolução Cultural.
De volta ao Peru, fundou o Partido Comunista del Peru-Sendero Luminoso, que no início atuava abertamente, só cairia na clandestinidade em 1980 com o início da “guerra popular”, responsável em duas décadas de luta por 70.000 mortos, metade deles executados pelas forças da repressão e a outra pelos guerrilheiros. Dizem.
São Mao
Abimael deu a palavra a um aluno, que retratou para o público silencioso e reverente a vida exemplar de Mao, “um bebé prodígio, um gênio”.
A narrativa, que o canonizava, parecia extraída do Flos Sanctorum – o livro sobre a biografia sem mácula de santos e mártires do cristianismo, sempre olhada com desconfiança.
Confesso que, apesar de admirar Mao, eu assistia a tudo com distanciamento crítico, mas quando o orador interrompeu sua fala com um choro convulsivo, o grotesco se tornou sublime.
Ele soluçava, não conseguia mais falar. Lágrimas aos borbotões. Seu choro era verdadeiro, de quem perdia um pai.
Para substituí-lo, Abimael chamou outro ex-aluno seu da Universidad Nacional San Cristóbal de Huamanga em Ayacucho, no centro dos Andes, que deu continuidade ao ritual com leitura de frases do Livro Vermelho de Mao sobre a dialética e como identificar nas lutas sociais a contradição principal e a secundária. Equiparou o “catecismo vermelho” a uma arma revolucionária, uma “bomba atômica espiritual” capaz de operar milagres, ajudando veterinários a castrar porcos e camponeses a proteger plantações das pragas.
Lembrou que já idoso o “grande timoneiro” havia nadado 30 km no rio Yang Tsé num espetáculo demonstrador de sua forma física.
Abimael encerrou o ato com frase extraída do Siete Ensayos de interpretación de la realidad peruana, de autoria de José Carlos Mariátegui, que deu nome à facção: “El marxismo-leninismo es el sendero luminoso del futuro”.
Os mestrandos, em sua maioria senderistas, defendiam a revolução camponesa no molde maoísta, numa salada de Mao com Mariátegui temperada com doses de fanatismo. Semanalmente, o dogmatismo emergia na disciplina Metodologia da Pesquisa que eu ministrava. Os acontecimentos da semana sempre invadiam a sala de aula, como ocorreu em 1975.
Testemunhas de Mariátegui
Foi assim: o governo do general Juan Velasco Alvarado restabeleceu o diálogo com Cuba, oficializou a língua quéchua, reformou o sistema educativo e fez uma reforma agrária com o lema libertário de Tupac Amaru “Campesino, el patrón ya no comerá más tu pobreza”.
Apesar disso, era classificado pelos senderistas de “fascista”, termo usado como ofensa e não como categoria analítica. Um dia, dividi com um traço de giz o quadro negro. De um lado, coloquei: Fascismo.
De outro: Governo Velasco. Pedi que apontassem as características de cada um. Não souberam estabelecer a correlação entre um e outro. Um aluno chegou a dizer como um ato de fé:
– El Gobierno es fascista porque Mariátegui lo dijo.
Mariátegui, pensador peruano marxista conhecido internacionalmente por sua originalidade e morto em 1930, não podia tipificar algo que ainda não havia acontecido.
Argumentei que a fidelidade ao seu pensamento devia se centrar no método de análise, que ele soube usar para entender o Peru de seu tempo.
Tomá-lo ao pé da letra era agir como algumas seitas com a bíblia. Aliás, os críticos ao fanatismo do Sendero apelidaram seus militantes de “Testigos de Mariátegui” numa referência às “Testemunhas de Jeová”.
Na aula seguinte, copiei três frases no quadro e pedi que comentassem. Uma do Opinión Libre, jornal de ultradireita, outra do general Velasco, ambas criticadas com veemência pelos alunos senderistas por serem “produtos do fascismo”. A terceira frase atribuída a Mariátegui foi elogiada por sua “genialidade”.
Revelei então a troca proposital de autores: a frase elogiada era, na verdade, do general Velasco, em seu discurso no Congresso de Americanistas escrito com assessoria de Darcy Ribeiro. Já a atribuída ao jornal ultradireitista, que eles criticaram, era de Mariátegui.
– Haya de la Torre será portador de un fervoroso mensaje a la juventude – escreveu Mariategui sobre a rebelião estudantil na Universidade de Córdoba, Argentina, em 1918, quando Haya se preparava para presidir a Federação de Estudantes do Peru. Mas depois o velho político trocou de lado, o que tornava verossímil o uso da frase pela direita, em 1975, no contexto da propaganda de um comício por ele convocado.
A quarta espada
Minha relação com os alunos era tensa, mas relativamente amistosa.
Diante da sala calada, comentei que aquele era um minuto de silêncio pela morte do dogmatismo, mas o representante da turma provou que eu estava errado. A lição que ele tirou foi outra:
– Camaradas, isso prova que não podemos confiar em citações feitas por professores revisionistas.
No entanto, no intervalo, um aluno que não me viu entrar na cantina, comentava para seu colega:
– Hoy el maestro nos ha cagado.
Foi o maior elogio que ouviu sobre o meu trabalho docente.
A última vez que encontrei Abimael Guzmán ocorreu no Seminário de Pesquisa em Educação, final de 1976. Com outro colega, Carlos Kawata, apresentamos uma ponencia sobre Ciência e Ideologia. Um aluno senderista fez uma intervenção nos espinafrando. Propus:
– Vamos dividir o debate em duas etapas. A primeira para as ofensas, com as quais estou habituado. A segunda para discutir o conteúdo do nosso trabalho. Quem mais quer ofender? – perguntei, oferecendo o microfone aos participantes.
Não houve mais ofensas. Abimael, ali presente, se absteve de falar, com um ar enigmático que estimulava o culto à personalidade. Ele se autodenominou “a quarta espada do comunismo” atrás apenas de Marx, Lenin e Mao.
Depois disso, acompanhei sua trajetória através dos jornais. Levado ao tribunal dentro de uma jaula e condenado à prisão perpétua, permaneceu encarcerado 29 anos.
El Comercio comemorou a morte do “monstro” e o classificou como “o maior genocida da história do Peru”, ignorando e assim tentando apagar a memória dos massacres cometidos pelo poder político desde Francisco Pizarro, no séc. XVI, até as carnificinas de Barrios Altos e La Cantuta comandadas por Alberto Fujimori.
Chamar Abimael de “monstro” e cuspir sobre seu cadáver não ajuda a entender e mudar o Peru. Venerá-lo em romaria a um túmulo inexistente também não.
O “Sendero luminoso” errou no uso condenável do método terrorista, mas não na necessidade, que não pode ser desqualificada, de lutar contra a desigualdade social, a miséria, a injustiça e a violência do Estado responsável por desaparecimentos, assassinatos e violações dos direitos humanos.
Que o sendeiro nebuloso por ele trilhado seja efetivamente iluminado para a caminhada das novas gerações! Que o cadáver de Abimael possa, enfim, sair de sua prisão!
Mi colega Abimael Guzmán y el Sendero Nebuloso
Traducción: Maria José Alfaro Freire
Un difunto encarcelado. Caso único de prisión perpetua, más allá de la vida. Aún después de muerto el sábado (11), Abimael Guzmán, 86 años, sigue preso.
Su esposa Elena, también encarcelada, pidió que sepultaran su marido conforme la ley que determina entregar el cadáver a los familiares. Pero el jueves (16), el Congreso del Perú modificó de manera precipitada la legislación, promulgada al día siguiente por el presidente Pedro Castillo y publicada en el Diario Oficial.
Ahora, el cadáver de un terrorista puede ser cremado y sus restos mortales dispersados en lugar y fecha no revelados, evitando así peregrinaciones y romerías al túmulo. Las cenizas serán lanzadas al mar. ¿Cuándo? Una incógnita.
La noticia me impacta porque fui colega de Abimael Guzmán en el Programa de Maestría de la Universidad Nacional de Educación, en Lima, donde éramos profesores. A lo largo de tres años, mantuvimos contactos formales y esporádicos, uno de ellos en setiembre de 1976, cuando salí como todos los viernes, para dar clases en la av. Salaverry, en Lima.
Cuando llegué, me avisaron que, en lugar de clases,, habría un acto en homenaje al líder chino, Mao Tse Tung, fallecido el día anterior. Ese sí, enterrado con todas las pompas, después de 27 años de gobierno.
En el auditorio pequeño, luces apagadas, solo dos velas encendidas iluminaban la sombra de Abimael Guzmán que presidía la ceremonia y, en un breve discurso de apertura, recordó su primera visita a la República Popular de China, en 1965, en plena Revolución Cultural.
De regreso a Perú, fundó el Partido Comunista del Perú-Sendero Luminoso, que al inicio actuaba abiertamente, y a partir de 1980 pasó a la clandestinidad, con el inicio de la “guerra popular”, responsable en dos décadas de lucha por 70 mil muertos, mitad de ellos ejecutados por las fuerzas da represión y la otra por los guerrilleros. Dicen.
San Mao
Abimael cedió la palabra a un alumno, que retrató para un público silencioso y reverente la vida ejemplar de Mao, “un bebé prodigio, un genio”.
La narrativa, que lo canonizaba, parecía extraída del Flos Sanctorum – el libro sobre la biografía sin mácula de santos y mártires del cristianismo, siempre vista con desconfianza.
Confieso que, a pesar de admirar Mao, miraba a todo con distanciamiento crítico, pero cuando el orador interrumpió el discurso con un llanto convulsivo, lo grotesco se hizo sublime.
Lloraba y sollozaba, no podía hablar. Lágrimas a chorros. Su llanto era verdadero, de quien perdía a un padre.
Para sustituirlo, Abimael llamó a otro exalumno suyo de la Universidad Nacional San Cristóbal de Huamanga en Ayacucho, de los Andes centrales, que dio continuidad al ritual leyendo frases del Libro Rojo de Mao sobre la dialéctica y como identificar en las luchas sociales la contradicción principal y la secundaria.
Equiparó el “catecismo rojo” a un arma revolucionaria, una “bomba atómica espiritual” capaz de obrar milagros, ayudando veterinarios a castrar puercos y a campesinos a protegeren sus plantaciones de plagas. Recordó que ya anciano, el “gran timonero” nadó 30 km en el rio Yang Tsé, un espectáculo que demostraba su fortaleza física.
Abimael terminó el acto con una frase de Siete Ensayos de interpretación de la realidad peruana, de autoría de José Carlos Mariátegui, que dio nombre a la facción: “El marxismo-leninismo es el sendero luminoso del futuro”.
Los estudiantes, en su mayoría senderistas, defendían la revolución campesina, siguiendo el modelo maoísta, una mezcla de Mao con Mariátegui salpicada con dosis de fanatismo. Semanalmente, el dogmatismo emergía en su curso de Metodología de la Investigación. Los acontecimientos de la semana siempre invadían la clase, como ocurrió en 1975.
Testigos de Mariátegui
Así fue: el gobierno del general Juan Velasco Alvarado restableció el diálogo con Cuba, oficializó la lengua quechua, reformó el sistema educativo y realizó una reforma agraria con el lema libertario de Túpac Amaro: “Campesino, el patrón ya no comerá más de tu pobreza”.
A pesar de esto, era clasificado por los senderistas como “fascista”, término usado como ofensa y no como categoría analítica. Un día, en clase, separé en dos la pizarra y escribí a un lado “Fascismo” y al otro “Gobierno Velasco”. Pedí que presentasen las características de cada uno. No supieron establecer la correlación entre uno y otro. Un alumno llegó a decir como un acto de fe:
– El Gobierno es fascista porque Mariátegui lo dijo.
Mariátegui, pensador peruano marxista conocido internacionalmente por su originalidad y muerto en 1930, no podía tipificar algo que todavía no había ocurrido. Argumenté que la fidelidad a su pensamiento debía centrarse en el método de análisis, que supo usar para entender el Perú de su tiempo.
Tomarlo al pie de la letra era actuar como algunas sectas con la biblia. Además, los críticos al fanatismo de Sendero llamaron a sus militantes “Testigos de Mariátegui” en referencia a los “Testigos de Jehová”.
En la clase siguiente, escribi tres frases en la pizarra y les pedí que las comentaran. Una de Opinión Libre, diario de la ultraderecha, otra del general Velasco, ambas criticadas con vehemencia por los alumnos senderistas por ser “productos del fascismo”.
La tercera frase atribuida a Mariátegui fue elogiada por su “genialidad”. Revelé entonces el cambio intencional de autores: la frase elogiada era, en verdad, del general Velasco, en su discurso de apertura del Congreso de Americanistas escrito con asesoría de Darcy Ribeiro. Y la frase atribuida al diario de ultraderecha, que ellos criticaron, era de Mariátegui.
– Haya de la Torre será portador de un fervoroso mensaje a la juventud – escribió Mariátegui sobre la rebelión estudiantil en la Universidad de Córdoba, Argentina, en 1918, cuando Haya se preparaba para presidir la Federación de Estudiantes del Perú. Ya después, convertido en un viejo político, cambió de lado, lo que hacía verosímil ese discurso como de la derecha, en 1975, en el contexto de propaganda de un acto político convocado por Haya.
La cuarta espada
Mi relación con los alumnos era tensa, pero relativamente amistosa. Frente a una clase callada, comenté que aquél era un minuto de silencio por la muerte del dogmatismo, pero el representante de la clase sacó otra lección:
– Camaradas, eso prueba que no podemos confiar en citaciones hechas por profesores revisionistas.
Sin embargo, en el intervalo, un alumno que no me vio entrar en la cantina, comentaba con un colega:
– Hoy el maestro nos ha cagado.
Fue el mejor elogio que escuché sobre mi trabajo docente.
La última vez que encontré a Abimael Guzmán fue en el Seminario de Investigación en Educación, a fines de 1976. Con otro colega, Carlos Kawata, presentamos una ponencia sobre Ciencia e Ideología. Un alumno senderista hizo una intervención insultándonos. Propuse, entonces:
– Separemos el debate en dos etapas. La primera para ofensas, a las que estoy habituado. La segunda para discutir el contenido de nuestro trabajo. ¿Alguien más quiere ofender? – pregunté ofreciendo el micrófono a los participantes.
No hubo más ofensas. Abimael, allí presente, se abstuvo de participar, con un aire enigmático que estimulaba el culto a su personalidad. Él se autodenominó “la cuarta espada del comunismo” después de Marx, Lenin y Mao. Posteriormente, seguí su trayectoria a través de los diarios.
Lo llevaron al tribunal dentro de una jaula, fue condenado a prisión perpetua y permaneció encarcelado 29 años. El Comercio conmemoró la muerte del “monstruo” y lo clasificó como “el mayor genocida de la historia del Perú”, como un intento de apagar la memoria de masacres cometidos por el poder político desde Francisco Pizarro, en el siglo XVI, hasta las matanzas de Barrios Altos y La Cantuta comandadas por Alberto Fujimori.
Calificar Abimael de “monstruo” y escupir sobre su cadáver no ayuda a entender el Perú. Venerarlo en romería a un túmulo inexistente tampoco. “Sendero luminoso” se equivocó en el uso condenable del método terrorista, pero no en la necesidad que no puede ser descalificada, de luchar contra la desigualdad social, la miseria, la injusticia y la violencia del Estado responsable por desaparecimientos, asesinatos y violaciones de los derechos humanos.
¡Que el sendero nebuloso trillado por él sea efectivamente iluminado para el caminar de las nuevas generaciones! ¡Que el cadáver de Abimael pueda, por fin, salir de su prisión!