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Autobiografia pandêmica

Autobiografia pandêmica

 Waleska Barbosa/Armazém na Estrada

Fiel a uma lentidão intrínseca posso dizer que só agora chego a sentir os efeitos excruciantes que há muito, cientistas e jornalistas, valendo-se do que concluem os cientistas, deram conta como sequelas da pandemia por . Na mental das pessoas. Vivi, nesses quase dois anos, algumas fases, que nem sempre acompanharam, ou pelo menos não encarei assim, o que ia acontecendo mundo afora. Em todas elas preguei o meu bordão: a militância pela sanidade.

Fui no miudinho, restringindo e afunilando – para além do que obrigatoriamente ficou do outro lado da peneira. Retido. Como os abraços, os sambas, os encontros, as viagens, o em seu local original, a e as outras atividades de uma filha na pré-adolescência, os afetos em desfrute ao ar livre. As coisas da vida, enfim. Da vida como ela era. E seguia considerando que ia bem (dentro de um possível que tenho resistência em definir sem parecer leviana), no âmbito pessoal.

Aqui nas quatro paredes. Dendicasa. Ia bem. Mas não isenta, desinformada, omissa ao que a pandemia ia espraiando em um já combalido e que piorou tanto.

Ocorre que, agora, após esses quase dois anos, tenho declarado que meu , coitado, fracassou. Não de todo. Espero que não. Mas já não me sinto com total controle sobre o leme. Ando resvalando em tormentas, tsunamis, tempestades de areia, granito, neve. Ando perdendo a direção. Ando vulcão em erupção. Eventos climáticos extremos. Enxurrada. Seca. Mais intensos. Crise hídrica. Ando desmatada. Ando Cerrado queimando. Ando sem vaqueiros. Ou paraliso. Não ando. Deito e durmo. Vazio como o mundo em Big Bang. Ocaso.

Escreveria na minha pele. Cuidado. Frágil. Este lado para cima. Entanto, sigo chacoalhada. Virada. Revirada. Cabeça pra baixo. Sopapo. Solavanco.

Tenho precisado pedir compreensão às pessoas – quando perguntam por aquele projeto que eu tocava ou tocava com elas. Tenho solicitado que me digam as coisas com simplicidade e didatismo – se possível em tópicos ou como se falaria a uma criança bem pequena por que não deve atravessar a rua sozinha. Tenho confessado um autodiagnóstico – Síndrome de Burnout – por favor, me confirme se o que eu entendi foi o que foi dito. É isso? É isso mesmo? Tenho me desculpado por lapsos de memória, por desatenção, por atraso, perda de compromisso, perda de interesse. Tenho percebido aquele estado de que tanto vi minha vó entrar quando tinha mais ou menos o dobro da minha idade.

Surpreendo-me com um fone de celular no ouvido (só um lado, que o outro está quebrado), o computador com o som ativado, a tevê ligada, um documento no colo. Começo várias atividades ao mesmo tempo e vou passando de uma para outra. Me inscrevo em cursos que já não consigo acompanhar. Sou surpreendida por e-mails de aceites ou negativas para seleções de mentorias, treinamentos e afins, nos quais me inscrevo como que movida por uma descarga de adrenalina. Engulo vinte gotas do calmante Weleda que minha amiga me emprestou.

O que me fazia sorrir, não faz mais. A música que ouvia, não ouço mais. Minhas incursões amadoras na cozinha, não ocorrem mais. O livro que lia, não leio mais. As crônicas que escrevia, não escrevo mais. As selfies divertidas e os stories coloridos em madrugadas de “festa pessoal”, não posto mais. A cerveja que bebia (quase) não bebo mais. Amigues com quem falava, não falo mais. Visitas bissextas e proibidas para rever alguém, não faço mais. Ando pesada. Enxergando fardos. Talvez imaginários. Como vou saber? Discernimento também anda faltando. Procrastinação em alto nível. E eu nem tenho o poder/ de Margaret Atwood para anunciar ao mundo, com total auto acolhimento, como ela fez, que sou uma especialista em adiar tarefas.

Pois é. A pandemia em mim atingiu o nível máximo. Aquele que cientistas e jornalistas, valendo-se do que concluem os cientistas, deram conta – ligado a sequelas na saúde mental.

Sorte a minha que, ao sair das ausências, tal qual minha vó quando recobrava a fala e deixava a porta de vidro onde quedava-se olhando para o horizonte, consigo retomar as coisas da vida. Da vida como ela era.

E vou seguindo. Em estado de intermitência. Sorte a minha que nunca esqueço da força da amizade. E ela tem segurado as minhas mãos e me conduzido. Até aqui. Sorte a minha que, dentre todos os meus novos aprendizados online, um deles é que o estado de vulnerabilidade é tido como uma poderosa soft skill. E aqui estou. Desnuda.

Escreveria na minha pele. Cuidado. Frágil. Este lado para cima.

Waleska Barbosa é escritora e jornalista. Idealizadora do ‘Julho das Pretas que Escrevem no DF’ Autora de ‘Que o nosso olhar não se acostume às ausências’ (Arolê Cultural; 2021). Capa: Fotografia de Manuela Cavadas.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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