Fragmentos de Mitologia Grogue

Fragmentos de Grogue

NO INÍCIO era uma folha em branco, um espaço alvo prestes a transbordar. Por quais lados movimentaria meu cortejo gramático, com que botas pisaria neste deserto para não perder meu contingente com ferrões ocultos de aranhas, víboras e escorpiões?

Por Guilherme Cobelo

Sem ter mapa, sem ter sequer a nos guiar, avançamos sem retroceder rumo a qualquer paragem, sem carregar nossas íris com premeditadas paisagens e até mesmo sem a de encontrar algum oásis. Talvez em fuga, talvez em busca, acaso somos levados em caravana?

Se assim o for, constato que fomos feitos reféns de um cerco anterior à nossa partida. Ainda assim, de onde viemos, nós que não temos , nós que somos mudos quando o assunto é lar?

Lançados neste nada prenhe, sabemos contudo a fonte de nossos tormentos: ecos noturnos lembram-nos constantemente de que há uma canção a ser parida, um hino quiçá, uma cantilena desvairada com que remendar nossos arquipélagos viventes…

Ouve-se um lamento, não, um grito, sim, um lobo uiva próximo aos nossos mais que exaltados sentidos. Fugiríamos dele não fosse o espanto um deleite para essa oca trajetória.

Agora que estamos a cavalo, ou melhor, sentados languidamente sobre o dorso de cem camelos, apontamos com os dedos tortos um quê de estrela a despontar na escuridão. Seria Vênus que se antecipa à Lua? Ou seria um negro ciclope a nos espreitar desde o infinito?

De qualquer forma, para lá nos movemos, sim, uma primeira noção de sentido se esboça confusamente em nossos órgãos. Agora, não somos tantos em debandada, sumiram nossos algozes, e uma viola de aço estala um primeiro acorde na amplidão: sol.

Eis que uma fonte se ergue do meio de nosso encanto, não balbuciamos ou vomitamos versos em línguas mortas… são sete cavalos galopando ao sol… Com um misto de euforia e terna complacência, admitimos em nossa rota o espectral soluço dos pássaros que, em breve, transportarão a Aurora ao cume de nosso pálido semblante.

Ainda mortos, contudo, esprememos entre os dentes a carne insossa deste misterioso deserto e, delirando, assistimos com estupefação ao desabrochar telúrico de uma flor impossível. Ó, ao revés, consentiríamos no absurdo de espichar nossos troncos vazados sobre este ilusório colchão?

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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