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Duas mulheres velhas e a Academia Brasileira de Letras

Duas mulheres velhas e a Academia Brasileira de Letras

É preciso questionar: por que uma das candidatas, Conceição Evaristo, teria que fazer campanha enquanto a outra, Fernanda Montenegro, já está eleita na Academia Brasileira de Letras? Por que se rejeita uma escritora consagrada pela crítica e pelo público?

Por Celina Dias Azevedo

Na gerontologia costumamos nos referir a velhices, no plural, ao invés de velhice, no singular, para denotar o quanto o envelhecimento é um processo individual e sujeito a questões diversas para além do biológico.

Assim, reforça-se, também, a ideia de que não existe um “modelo” que deva ser seguido para envelhecer, a tal “boa velhice”, seja lá o que signifique, não será a mesma para todes. Por outro lado, diversas pesquisas comprovam que na contemporaneidade a cor da pele de quem envelhece, essa sim, promove diferenças em como os seres humanos vivem sua velhice.

Investigações já escancaram para toda sociedade, como a raça/cor estão relacionadas a desigualdades na saúde, por exemplo, e como o  e a iniquidade as explicam.

O Mapa da Desigualdade de São Paulo, da Rede Nossa São Paulo, mostra como os dois distritos com maior proporção de população negra entre seus habitantes, Jardim Ângela (60%) e Grajaú (57%), apresentaram alto número de óbitos por Covid (507) em contraposição aos dois distritos com menor proporção de população negra entre seus habitantes, que são Alto de Pinheiros (8%) e Moema (6%), e acabaram por registrar baixo número de falecimentos por Covid (110).

Poderíamos trazer aqui outras tantas investigações que apontam para essas “diferenças” no processo de envelhecimento. Mas, não é o tema principal que nos estimula e, por isso, depois deste introito convido minhes leitores a me acompanharem nesta reflexão que, a princípio, não tem ligação com o que está posto acima, mas, peço, por favor, um pouco de paciência, ainda!

A mídia nos deixa saber que está em andamento a eleição em que preencherão vagas para a ABL – Academia Brasileira de Letras – instituição literária fundada no século XIX, que teve como primeiro presidente Machado de Assis, um dos maiores escritores da literatura universal, escritor negro nascido no .

Como candidata a uma das cadeiras encontra-se a atriz de teatro, cinema e televisão Fernanda Montenegro. Figura valorosa de nossa , de nosso país e, sem dúvida, admirada e amada. Além de Fernanda há outros candidatos às cadeiras vagas, mas o que chama a atenção e aqui, cares leitores, chego ao ponto que gostaria de expor e refletir com todes.

Em 2018 a escritora Conceição Evaristo, mestre em pela PUC do Rio de Janeiro, Doutora em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense, também se candidatou a uma cadeira na ABL. Na ocasião, saudou-se a possível entrada da primeira mulher negra na academia.

CONCEIÇÃO NÃO FOI ELEITA, EM 2018!

A não eleição de Conceição e as vagas disponíveis para este ano de 2021 voltaram aos principais noticiários no Brasil.  Em entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, Conceição, instada, falou sobre a ABL, sua candidatura, sua não eleição.

Em matéria publicada em importante veículo da imprensa sobre as eleições de 2018, me chamaram a atenção as respostas de alguns membros da ABL sobre o episódio.

Conceição não teria seguido alguns “rituais” como, por exemplo, procurar apoio entre os “imortais” para obter votos para si, promover seu marketing pessoal ou, ainda, que teria “forçado” sua candidatura. “Nunca recebi um telegrama dela” informa outra “imortal” e, agora sim, cares leitores, chego ao ponto de minha reflexão.

A mesma matéria apresenta a fala de outro “imortal” sobre como Fernanda, candidata para a eleição de 2021, não precisaria nem ao menos fazer “campanha”, porque já estaria eleita.

Para comprovar tal afirmação, outro veículo nos anuncia que “Em sinal de respeito, não houve inscritos para disputar a cadeira 17 da ABL com a atriz”, em um gesto que pode ser entendido como uma , ninguém se inscreveu para disputar a vaga com ela e o prazo para novas candidaturas já teria expirado.

Não colocamos em discussão aqui o talento para dramaturgia de Fernanda, tampouco o reconhecimento de Conceição como importante premiada escritora contemporânea. Estamos diante de duas mulheres velhas, potentes, criativas, que transformam suas vidas em obra de arte. Não, não é essa discussão.

O que queremos colocar em evidência e refletir é como duas mulheres velhas – uma negra e outra branca – ocupam, devido ao racismo estrutural, lugares diferentes nesta sociedade racista, machista e gerontofóbica. Não fica evidente que esses sistemas de opressão se articulam e atuam conjuntamente, nesse episódio? 

Refiro-me aqui, rapidamente, à interseccionalidade que nos aponta como múltiplas formas de opressão impõem-se às devido a condições de vida e relações de poder, por isso a importância de olharmos e analisarmos essas questões de maneira interseccional e não isoladamente.

Certamente, há outros elementos que não são divulgados e/ou expostos – sobre a eleição da ABL –, mas o que podemos perceber no que está visível suscita perguntas: por que uma das candidatas teria que fazer campanha enquanto a outra já está eleita? Por que se rejeita uma escritora, autora de diversas obras consagradas pela crítica e pelo público?

Sendo ambas artistas, atriz e escritora, o que faz com que uma delas receba todas as mesuras, cumprimentos repletos de delicadeza e de cortesia, salamaleques, enquanto para a outra prega-se que não “acompanhou os rituais”? O que as diferencia para que uma tenha que esforçar-se para conquistar algo e a outra receba como homenagem e cortesia a ausência de adversários, oponentes, para que fique tranquila e conquiste seu objetivo?

Precisamos, devemos parar e refletir acerca dos valores que cercam tais episódios em nossa cultura. É preciso ter olhos para ver. É preciso questionar a todo momento. São esses exemplos no cotidiano que nos apresentam e deixam entrever como os mecanismos de exploração são reinventados, são revestidos de outras roupagens, mas continuam a ferir e a oprimir.

Fica aqui um Salve! para Conceição e Fernanda: duas mulheres velhas!

Celina Dias Azevedo – Socióloga.

Matéria publicada originalmente no Portal do Envelhecimento https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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