“A guerra é sobretudo o produto de uma relação malsucedida com o outro. Isso geralmente ocorre quando uma das partes entende que foi trapaceada ou que não foi suficientemente valorizada.”
Por Leandro Altheman
Poderia o xamanismo lançar alguma luz sobre o fenômeno geopolítico mundial?
À primeira vista, deve parecer à maioria das pessoas que o xamanismo seria um sistema de pensamento por demais ‘primitivo’, para oferecer quaisquer contribuições para pensar as recentes crises geopolíticas e sua derivada, a guerra.
No entanto, provou-se também recentemente que as cosmovisões nativas ofereceram um interessante viés interpretativo para a pandemia mundial.
No artigo A Vingança do Povo Morcego, Els Lagrou trata de como o conceito de Nisun, usado pelos Huni Kuin do Acre para explicar a origem de certas doenças, poderia ser utilizado no caso da pandemia. Abreviando ao máximo a explicação: os povos indígenas concebem que o espírito do animal pode se vingar de seu predador humano, por meio da doença. O artigo demonstra que as razões biológicas atribuídas ao surgimento do coronavírus 19, podem ser interpretadas por esse viés.
Dentro da cosmologia nativa, o xamanismo é que assume a função de negociação entre os diferentes seres e mundos, cujo equilíbrio rompido seria a causa das doenças. Já vem sendo dito por diferentes autores que o xamanismo funciona como uma espécie de diplomacia entre mundos.
Segundo uma visão aceita sobre as cosmovisões nativas ameríndias, a guerra seria uma aliança ou troca fracassada. O mundo social é dividido entre parentes e afins. Parentes são aqueles que dividem o mesmo sangue, sendo concebidos partes de um mesmo corpo. Daí por exemplo a coincidência entre maioria dos falantes Pano, da palavra para corpo ou família: yurá.
Yurá é a palavra utilizada para definir tanto corpo quanto família. Entre os parentes Yurá, não é possível haver casamento. Sendo sangue do mesmo sangue, corpo do mesmo corpo o casamento entre estes seria um tipo de incesto. Essa noção afeta mesmo as relações sociais. Não é possível haver troca entre parentes cujas relações são definidas pelas obrigações familiares.
A troca, incluindo aí o casamento deve se dar com o outro. Esse outro vem sendo caracterizado pela antropologia como um espaço destinado tanto às alianças quanto à guerra. O txai, palavra que no Acre ganhou outras conotações, é esse outro, aliado em potencial, mas também inimigo em potencial. Não sendo parte do mesmo corpo, esse txai, deve ser antes “amansado”, ou seja, aproximado, feito amigo ou aliado. É com estes que as trocas, inclusive a de matrimônio, são realizadas.
A guerra é sobretudo o produto de uma relação malsucedida com o outro. Isso geralmente ocorre quando uma das partes entende que foi trapaceada ou que não foi suficientemente valorizada.