Noites Tortas
Brasília é uma cidade moderna que a seu modo sintetiza a diversidade regional brasileira, acumulando gírias, mesclando sotaques, fundindo as tradições em um movimento constante. Mercê de sua colonização, a realidade cultural da cidade é um amálgama envolvente que absorve tudo. A dinâmica urbana, embora limitada por paralelas e espaços vazios, promove contágios criativos que tendem à formação de cenas musicais mais ou menos duradouras.
Por Guilherme Cobelo
A noite brasiliense, apesar da pressão governamental no sentido de silenciá-la, ou talvez por isso mesmo, nos últimos anos vem sendo agitada por movimentos convulsivos que a levam a se tornar cada vez mais um espaço de convívio social. Se é verdade que as sentinelas do silêncio multam e lacram os estabelecimentos que ultrapassam a barreira da caretice instituída, por sua vez a juventude dá sinais de que o sono-dos-justos é um obstáculo e uma ofensa à saúde do som, do ruído e do barulho.
Inclusive, como a psicologia atesta, as interdições muitas vezes acabam estimulando a transgressão, conferindo ao ato rebelde um sabor de vitória e redenção. Levando em conta, por exemplo, a influência que as culturas do Norte e Nordeste têm sobre a cidade, sobretudo em relação à ala psicodélica da população, como esperar que o burburinho cesse quando chega a hora-de-dormir?
O coco de Pernambuco se espalhou entre os universitários com a força de uma epidemia. Os clássicos “ó mamãe eu quero eu quero brilhantina no cabelo” e “subi no olho da aroeira” estão na boca das meninas há anos, bem como o pandeiro anda de mão em mão nas rodas que se arrastam noite adentro, para o terror dos burocratas. As velhas conquistas são verdadeiras estrelas em Brasília. Dona Cila que o diga! Há muitos carnavais sua casa recebe as hordas de calangos que migram para Olinda em busca de sua atmosfera festiva.
O tecnobrega, típico do Pará, também parece ter espalhado suas raízes cafônicas na ilha de Brás. Não é raro ir a festas em que o gênero seja praticamente predominante. Hits como “Piranha”, de Alypio Martins, voltaram à tona da noite pro dia. O que a Gabi Amarantos tem a ver com isso eu não sei, mas é fato que a cidade está passando por uma renascença brega. Vide as roupas, vide os bigodes, toda a florescência das estampas e os apetrechos kitsch.
Bandas como Carol Ferraz e as Carambolas Reluzentes, Talo de Mamona, Muntchako, e a cantora Emília Monteiro, evidenciam o quanto uma nova cena tropicalista (ao pé da letra) está se desenvolvendo na capital. Apesar de toda a perturbação política e da truculência policial, ainda se ri e ainda se dança. Evoé! Os subterrâneos nunca adormecem, seja na cidade, seja na mente. Todo recalque se parte. Tapar garrafa com tampinha dá nisso: depois que agita, explode. O povo está no gás. E fim de papo.
Publicado originalmente em 07/03/2015