Procura
Fechar esta caixa de pesquisa.

CNS 38 anos: uma história de luta e resistência

CNS 38 anos: uma história de luta e resistência

Há 38 anos, as veias ardentes de um combativo movimento extrativista amazônico saltaram as fronteiras da floresta para, em Brasília, durante o I Encontro Nacional dos Seringueiros, mostrar ao Brasil e ao mundo a força de uma voz coletiva em defesa das populações extrativistas da Amazônia. Ali surgia, em 17 de outubro de 1985, o Conselho Nacional dos Seringueiros, o CNS.

Por Fátima Cristina da Silva, Marcos Jorge Dias e Zezé Weiss

Foi também ali que, em nome do recém-criado CNS, um ousado seringueiro acreano apresentou, pela primeira vez, a proposta dos próprios povos da floresta de uma reforma agrária ecológica para a Amazônia. A proposta era a das Reservas Extrativistas, que permitem às famílias da floresta a posse da terra e o usufruto das riquezas da floresta, sem a ela causar danos ambientais. O seringueiro era Chico Mendes.

Desde então, em memória e respeito ao legado de Chico Mendes, o CNS, que em 2009 passou a se chamar Conselho Nacional das Populações Extrativistas, para abrigar o vasto mosaico de entidades extrativistas que se espalharam por todo o território brasileiro, representa as posições mais avançadas do movimento social das populações extrativistas do Brasil. 

Ao realizar seu VI Congresso Nacional, entre os dias 13 e 17 de novembro, outra vez em Brasília, o CNS reafirma a resiliência da caminhada de um movimento que começou no chão da floresta, bem antes de 1985, em meados da década de 1970, nos empates de derrubada do Vale do Acre. 

Em depoimento gravado por Lucélia Santos na primeira semana do mês de maio de 1988, Chico Mendes registra em detalhes a trágica destruição a mando dos “paulistas” (fazendeiros vindos do sul do País) de grandes áreas de floresta para, sobre a terra arrasada, implantar grandes fazendas de pecuária: 

ATAQUE À FLORESTA

Essa luta da gente é uma história meio assim, meio comprida. Começou a partir de todo o movimento dos empates pela defesa da floresta, principalmente em 76. Em 76, a gente [es]tava no auge, no momento mais acirrado, no momento mais difícil, no momento mais de desespero que já ocorreu nesse Acre. 

Na época [em] que os fazendeiros começaram a chegar, a partir de [19]70, começa então a expulsão em massa dos seringueiros. Os seringueiros foram expulsos, [viram] seus barracos queimados, suas casas… de repente, os jagunços cercavam, tocavam fogo nos barracos. 

No Seringal Albrácia, em 72, tinha nove pistoleiros. 

O seringal foi comprado por um paulista por nome Vilela, ele trouxe nove pistoleiros, expulsaram todos os seringueiros dessa região. (E o que é que eles queriam, eles queriam expulsar vocês da região, dos seringais, botar o que no local, eles queriam…)

 (Botar o boi [eles queriam destruir a floresta, desmatar pra botar o boi, é isso?) Eles conseguiram destruir a floresta, tirar o seringueiro, tirar a seringueira, a castanheira, as riquezas que existe[m] lá dentro em troca do boi, [de] colocar o boi lá dentro. Ou seja, a substituição do homem na floresta pelo boi. A Bordon nesse momento compra uma grande área no rio Xapuri. 
unnamed

A Bordon expulsou em massa e tocou fogo em barraco de seringueiro, matou mulher de seringueiro, queimada. Os outros fazendeiros também reagiram [da mesma forma] e toda a região de Xapuri foi bombardeada. Mais de 70%, naquele momento, dos seringueiros, em desespero, são expulsos dessa região aqui e se mandam pra Bolívia, e outros pra Rio Branco, pra periferia da cidade, lá. 

[É] um momento de grande desespero. [Em] 76, eu assumo a diretoria do Sindicato em Brasiléia, no Acre. Começa a primeira implantação do Sindicato lá. Em 76, nós sentamos e pensamos: como, como vamos barrar esse processo de desmatamento? 

Apelamos pra justiça, pro advogado, porque o Estatuto da Terra dá o direito ao posseiro, lá na sua colocação não poderia ser expulso. Mas isso, naquele momento, prevalecia a força e o dinheiro. A força policial já vinha em cima do dinheiro do latifúndio. 

Naquele período de 70 a 76, eles compraram, aqui nessa região, seis milhões de hectares de terras, não tiraram um tostão [do bolso], não venderam um boi no Sul pra comprar essas terras… (A Bordon?) A Bordon e outros fazendeiros que vieram do sul do País. 

Essas terras foram compradas todas com o apoio dos incentivos fiscais da SUDAM. O governo abriu as pernas pra esses latifundiários e, nesses seis anos, nessa nossa região foram destruídas 180 mil árvores de seringueira, 80 mil castanheiras e, entre madeira de lei e cedro, o abio, o cumaru-de-cheiro, o cumaru-ferro, o amarelão, foram destruídas mais de 1 milhão e duzentas mil árvores, fora as árvores médias que [es]tavam crescendo.

porongas catedral
Foto: Divulgação/ Nicole Angel/ G1

COMO NASCE O CNS 

Nas gravações que fez com Lucélia Santos, em 1988, Chico Mendes explica o surgimento do CNS como uma entidade de articulação e reivindicação de políticas públicas que possam garantir a sustentabilidade econômica, social, ambiental e cultural dos povos da floresta:  

Xapuri, que [es]tava caminhando, engatinhando naquele tempo, retoma com força o movimento com uma experiência diferente: a liderança, nós não devemos ter uma liderança única, mas todos os trabalhadores devem ser líderes. 

Agora, como sempre acontece no movimento dos trabalhadores no Brasil, o pessoal começa a centrar força mais num nome, e esse nome ou por sorte ou azar caiu em cima de mim. É o Chico Mendes que começa a liderar o movimento. 

Então, nós começamos a pensar o seguinte, começamos a montar as escolas, começamos a construir novas lideranças, com as escolas, em cada escola começam a surgir lideranças porque o seringueiro começa a ter uma visão e começa a participar mais ativamente do movimento. Isso começou a chegar lá fora, a imprensa começa a dar um maior destaque nessa luta de Xapuri. 

E aí nós pensamos numa ideia, ora, o seringueiro não é reconhecido como classe, poxa, então nós vamos ter que encontrar uma forma de pressionar as autoridades federais, lá em Brasília, que tá o foro das decisões, o seringueiro nunca foi a Brasília e nós vamos ter que defender agora uma forma do seringueiro ir a Brasília e contar a sua história lá. 

A Mary [Allegretti] começa a articular com algumas entidades, me chama, eu vou a Brasília em maio de 85, e se começa a articular então o Encontro Nacional dos Seringueiros em Brasília. 

E aí em [17 de] outubro de 85 a gente marca na história da luta do seringueiro da Amazônia o I Encontro Nacional dos Seringueiros da Amazônia. E isso foi um encontro que ficou histórico na luta dos seringueiros, em toda a história desde 1870 pra cá, aí começa a aparecer os aliados, começa a engrossar a luta nos empates, começamos a ter vitórias.

Imagem do WhatsApp de 2023 10 13 as 20.12.05 fb126fe5
Foto: Divulgação/ Carlos Carvalho

BASTIDORES DO ENCONTRO 

Em entrevista concedida durante a VI Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (ReACT), realizada no Instituto de Estudos Brasileiros, em São Paulo, em maio de 2017, o antropólogo Mauro William Barbosa de Almeida explicou como aconteceu o encontro de Brasília: 

Foi a Mary Allegretti quem, em 1985, durante o governo Sarney, organizou uma reunião de seringueiros em Brasília. Havia uns 120 participantes nessa reunião. 

Do ponto de vista de um movimento rural, a proposta dos seringueiros que apareceu nesse encontro de 1985, em Brasília, era parte de um programa de reivindicações deles de políticas públicas para uma população que era completamente invisível, ninguém sabia que existia.

Em Brasília, nem sabiam o que era seringueiro, eles pensavam que eram seringalistas. Era uma invisibilidade completa. E o Paulo Nogueira Neto (um dos grandes biólogos conservacionistas, um dos responsáveis pela indicação e seleção de áreas de conservação em sentido estrito na época do governo militar) ouviu falar de um seringueiro de Novo Aripuanã, o Jaime da Silva Araújo, que foi escolhido pelo grupo como o presidente do Conselho Nacional de Seringueiros.

[O CNS foi] uma entidade criada lá em Brasília, quando esse mesmo grupo teve a entrada vetada, no prédio da Superintendência da Borracha (Sudeb), que recebia enormes recursos do governo.

Os seringueiros, expulsos daquele ambiente, criaram ali na frente, no gramado, uma alternativa para o Conselho Nacional da Borracha, que estava se reunindo e do qual eles queriam participar. “Então, vamos criar o Conselho Nacional dos Seringueiros”, e surgiu esse nome.

Praticamente uma década depois de uma luta cruel, incessante e violenta contra o desmatamento na Amazônia, surgia o CNS, com a missão de representar e organizar não somente os seringueiros e seringueiras do Acre, mas todas as populações extrativistas da Amazônia. 

UM EVENTO HISTÓRICO

O Instituto de Estudos Amazônicos (IEA), criado em 1986 pela antropóloga Mary Allegretti para apoiar o CNS no desenvolvimento, criação e implementação de Reservas Extrativistas, registra em sua página na Internet, Instituto Estudos Amazônicos, o momento histórico da fundação do CNS: 

Foi um evento histórico realizado na Universidade de Brasília, com a presença de mais de 100 representantes de seringueiros, castanheiros, pescadores dos estados do Acre, Rondônia, Amazonas, Pará e Amapá. Muitos deles saíram da floresta pela primeira vez e levaram vários dias para chegar em Brasília vindo dos lugares mais distantes da Amazônia.

O evento foi uma iniciativa do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Acre, uma promoção da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Acre, dos seringueiros do Amazonas, da Associação dos Seringueiros e Soldados da Borracha de Rondônia, com apoio do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), do Ministério da Cultura/Fundação Pró-Memória e da Universidade de Brasília.

A convocação do líder sindical Chico Mendes foi baseada em uma pauta de grande relevância para o momento em que se iniciava o processo de redemocratização no país: reforma agrária apropriada aos seringueiros, educação, saúde e política de valorização da borracha nativa. 

Foi durante esse evento que o CNS formulou o conceito de Reserva Extrativista como a reforma agrária dos seringueiros tomando como inspiração as Reservas Indígenas.

Imagem do WhatsApp de 2023 03 14 as 14.11.26Fátima Cristina da Silva – Educadora, com especialização em Metodologia de Ensino e Gestão Descentralizada. Sócia-Educadora da Rede Mulher de Educação. Integrante do grupo da Terra. Assessora Técnica do CNS e Coordenadora dos Projetos nas Áreas de Comunicação, Educação em Saúde e Gênero. 

 

 

Marcos Jorge

 

Marcos Jorge Dias Escritor. Estudante de Jornalismo. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri

 

zeze

 

Zezé Weiss – Jornalista. Editora da Revista Xapuri. Com as contribuições imprescindíveis de Fátima Cristina da Silva e Marcos Jorge Dias. 

 
 
porangas caminham congresso
Foto: Divulgação

 

[smartslider3 slider=43]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

PARCERIAS

CONTATO

logo xapuri

posts relacionados

REVISTA