A LENDA DO CÉU
Andorinha… andorinha... andorinha voou… andorinha caiu… curumim carregou.
Por Mário de Andrade
– Piá, não me maltrata não, que eu levo você pro mato, enxergar bichos tamanhos e correr com os guanubis.
O menino brincava… andorinha sofria… de um lado pra outro atordoada gemia.
– Piá, não me maltrata não, que eu levo você pro mar, ver as ondas, ver as praias, ver os peixinhos do mar.
O menino malvado machucava e, já morre morrendo, a coitada falou:
– Piá… não me maltrata não, que eu levo você pro céu e nunca ninguém não cansa de ver as coisas no céu, é um sítio bonito mesmo, beradiando o trem de ferro, lá você acha a sua gente, que faz muito que morreu, assegura em minhas penas, vamos embora com Deus.
Andorinha… andorinha… foi voando pro céu… curumim carregou.
– Assegura bem, menino, não tem saudade do mundo, que o mundo é só perdição.
Avoou… avoou… afinal se chegou. Andorinha desceu, curumim apeou, abriu os olhos e viu, era o céu… Ô boniteza… tinha espingarda, gangorra… estilingue, tantas surpresas que era mesmo um desperdício.
– Olha o cachorro jaguar… olha aquela siriema… olha as três Marias… da gente bolear andus, era que nem um pomar, com tanta fruta aromando que o ar ficava… que ficava… bonzinho de respirar.
O menino caminhava pelos postes da linha e lá pelo varjão se ouvia, de uma fordeca xispada, um aboio, tão chorado… que acuava, no corpo doce, o sono do brasileiro.
Tinha mandioca e açaí, mate, cana, arroz, muita banana e feijão, milho, cacau. Tinha até pra lá do cercado novo, cheio de taperebás, um rancho do nosso povo com seu mastro de São João e no galpão um homem comprido de uma quente morenês, com a pele bem sapecada pelo sol desse país, tocava uma sanfona, uma mazurca tão linda que se parava um bocado o ouvido cantava ainda.
O menino olhou pro homem e disse:
– Bastarde, tio…
– Meu sobrinho… entra no rancho, nossa gente já está lá.
E o menino se rindo, matava a saudade do coração… tomava a benção da mãe… do pai… abraçava o irmão…
Afinal topou com o primo que era unha e carne com ele e comovidos os dois se deram as mãos e foram brincar pra sempre pelos pagos abençoados do meio-dia do céu.
No céu, é sempre meio-dia, não tem noite, não tem doença e nem outra malvadez, a gente vive brincando e não se morre outra vez.
Mário de Andrade – (1893-1945), Escritor modernista, crítico literário, folclorista, musicólogo e ativista cultural. Lenda enviada por Altair Sales Barbosa.