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Ameaças à natureza, ameaças à vida

Ameaças à natureza, ameaças à vida

A lição para a humanidade é não temer a natureza que nos mantém e de onde viemos, mas sim restaurá-la, abraçá-la e entender como viver e se beneficiar dela” (Thomas Lovejoy, 1941-2021)

Por Caetano Scannavino e Marcus Eduardo de Oliveira/Agência Envolverde

Diante da socioecológica, partamos de uma constatação óbvia: incapaz de reconhecer a realidade finita dos ecossistemas, parece mesmo que a nossa espécie se aperfeiçoou em interferir nas condições atuais de vida no planeta, “especialmente depois que entramos na fase capitalista”, parafraseando o filósofo alemão Anselm Jappe.

O motivo nunca foi tão atual: estão sendo ultrapassados os limites da sustentabilidade. Vale dizer, aumentamos a sobrecarga dos recursos da Terra, talvez porque, fazendo coro à ideia de modernidade, não deixamos de acreditar que a prosperidade das sociedades está diretamente ligada a mais crescimento econômico. Já um fato histórico.

Assim, a visão nacional de desenvolvimento, de forma particular, é a mesma de meio século atrás. Passa notadamente por superexploração de recursos naturais, , devastação; enfim, constitui um modelo que compromete tudo e todos para favorecer só alguns. Um modelo que, dada a relação conflituosa com a natureza (matriz de tudo), compromete o desempenho da vida contemporânea. Só no Brasil, em nome da civilização, cabe breve esclarecimento, já se devastou uma área igual a duas Alemanhas de floresta amazônica. Detalhe ardiloso, 63% dessa devastação foi ocupada por pastagens de baixíssima produtividade – com menos de um por hectare – e outros 23% em estado de abandono (TerraClass Amazonia / Embrapa e Inpe).

Todavia, para o assunto central aqui trabalhado, interessa dizer abertamente que nada mais além da crise ambiental e climática ameaça a vida neste planeta. Objetivamente falando, acumulam-se evidências de desequilíbrios ecológicos, com consequências globais. Seja no mundo das águas – especialmente nos oceanos (cada vez mais acidificados – redução do pH por longo período) e nas camadas de gelo polar (na Groenlândia e na Antártida)-, seja no sistema terrestre, e, claro, na biodiversidade, um dos pilares da vida na Terra.

De resto, sobram sinais de ruptura entre as sociedades humanas e o : (i) segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), o século XXI já conta com 16 dos 17 anos mais quentes desde que se começou a registrar as temperaturas, em 1880; (ii) um terço das terras aráveis do mundo estão improdutivas; (iii) “de trinta por cento a 50% da superfície terrestre já foi transformada pela ação humana”;1 (iv) hoje em dia, somente 23% das terras conhecidas do mundo moderno estão livres dos impactos da agricultura e indústria, e principalmente da imensidão de resíduos gerados; (v) mais de 4,2 bilhões de pessoas vivem sem acesso a básico, numa clara deficiência de política pública efetiva que cobra alto preço em termos de vidas humanas, especialmente devido a facilidade com que se propagam doenças (disenteria bacteriana, febre tifoide, cólera e assim por diante); (vi) a poluição do ar, quinto fator principal de risco de morte no mundo, e sempre um problema global que tantas doenças lega à humanidade, responde atualmente por 16% das mortes no mundo todo.

Realidade bastante dura, num recente estudo publicado na prestigiosa Nature Sustainability, conduzido pelos cientistas britânicos John Dearing e Simon Willcock, somos informados de que estamos acelerando o colapso de diferentes ecossistemas pelo mundo. O destaque negativo fica por conta do avanço da degradação amazônica. Para além de tudo, ali, na maior fronteira de recursos naturais que o mundo concebeu, a brasileira tem permitido que poucos se apropriem de riquezas que são de todos – o ouro, a madeira, as terras públicas. Nesse bioma que começa a sucumbir, o ponto é tão crítico hoje em dia que, de acordo com o estudo Amazonia as a Carbon Source Linked to Deforestation and Climate Change, publicado na Nature em meados de 2021, algumas regiões já estão emitindo mais gás carbônico do que conseguem absorver.

Questão de fundo, parece evidente, mas o conhecimento científico confirma o que não é novidade: já passamos o ponto crítico do aquecimento. Não há volta, e tecnologia nenhuma irá nos salvar.

Nesse triste momento presente de devastações visíveis, para piorar, pesa-nos admitir que ainda falhamos por não considerar a economia (corpo de produção) como o que de fato ela é, um subsistema da ecologia. Consequência direta da busca de um progresso irresponsável ecologicamente falando, desde que a sociedade humana inaugurou a mais influente ideia-síntese de modernidade, estamos presos ao culto do crescimento econômico. Razão pela qual prioriza-se o modo quantitativo (ideologia de acumulação) em detrimento à qualidade. Justamente por isso, cada um sabe, acelera-se de vez a devastação do natural.

Mais concretamente, que fique claro: alimentamos esse atual modelo de produção insustentável que usa 100 bilhões de toneladas de materiais (areia, pedra, cimento, materiais metálicos, biomassa e assim por diante) todos os anos. Em 2060, esse número pode chegar em 190 bilhões de toneladas. Atualmente, são 13 toneladas por habitante do planeta. Para todos os fins, de tudo o que produzimos e usamos, não é segredo, 91,4% se transformam em lixo. O índice de circularidade, isto é, o restante que sobra para reaproveitamento, tem sido cada vez mais baixo.

Daí em diante, as consequências falam por si: frente a uma economia plastificada usada para a construção da vida social, a sociedade humana manda todos os anos mais de 14 milhões de toneladas de plásticos para os oceanos, ameaçando sobretudo o equilíbrio trófico. De modo ainda mais direto, o que temos feito em detrimento da biodiversidade e do meio ambiente causa perplexidade: poluição atmosférica, eliminação de espécies da fauna e da flora selvagens, aumento de áreas desertificadas, destruição de colheitas, aumento dos deslocados (refugiados) climáticos.

Na ponta final, vários estudos e pesquisas confirmam o que começamos a dizer logo no início: em apenas 50 anos, da metade do século passado até o ano 2000, foram destruídas mais florestas do que em toda a história de evolução da humanidade. Isso quer dizer que, no ponto ecologicamente insustentável de agora, em meio às acirradas e a mais gritante perda de biodiversidade, “maldições gêmeas”, no anúncio feito pela consagrada primatologista britânica Jane Goodall, nunca, antes, havíamos invadido, destruído e diminuído os hospedeiros naturais. Nunca, antes, havíamos potencializado a destruição ambiental. Como ninguém ignora, ao longo dos últimos cinquenta anos, os cientistas confirmam, dobramos nossa pegada ecológica. Agora, para manter esse insustentável estilo de vida, a humanidade já excede em 50% a capacidade de regeneração e absorção do planeta.

Em outros termos, alimentamos de modo próprio (cultura do consumo) essa crise ambiental que se alastra pelas sociedades modernas. No horizonte crítico, dir-se-á concretamente que estamos fora do equilíbrio, e em meio a um sério conflito socioecológico. Seja como for, com o perdão da redundância, há provas inegáveis de que passamos a conviver com “(…) a mais perturbadora sensação de que estamos tirando o planeta do eixo”,3 ou seja, estamos alterando o mundo ecológico, transformando os padrões climáticos globais e ameaçando o equilíbrio da natureza.

Num termo decisivo, seguindo de perto o impactante relatório da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), haveremos de constatar que são cinco os principais impulsionadores da perda na natureza: mudanças na utilização da terra e do mar; mudança climática; poluição; exploração direta de recursos naturais; e espécies invasoras, notadamente animais, plantas, fungos e microrganismos que invadem um ambiente fora de seu habitat natural.

De toda sorte, diante de tudo o que foi colocado aqui mesmo, ainda que sumariamente, há uma certeza que precisa ser bem acolhida: é hora de reagir. Soluções existem. Elas vêm da academia, dos povos indígenas, de empreendedores responsáveis, do Terceiro Setor e, claro, de inteligências comprometidas com o futuro do planeta e da vida. Antes ainda, precisamos ter ciência daquilo que Helena Norberg-Hodge procurou destacar: “os passos que damos para curar o planeta são os mesmos que precisamos para curar a nós mesmos: ambos exigem que se reduza a escala da economia”.4

Posto num termo original, tudo indica que “a sorte da humanidade está ligada à integridade de seu meio de vida”.5 Por isso tem sido dito sem cerimônias que vida humana e qualidade ambiental são inseparáveis. Ter o meio ambiente limpo e saudável, como reconheceu o Conselho de Direitos Humanos da ONU, é um direito humano.

Fundamental para pensarmos o futuro próximo, proteger o Meio Ambiente e a Natureza, longe de uma visão romântica, tem a ver com a proteção das pessoas e de todas as formas de vida existentes. Desse desafio planetário, não podemos escapar. No final, é sempre assim: o que está em jogo é qual o modelo que queremos, se para muitos ou para poucos, se só para as atuais gerações ou as futuras, se para frente ou para trás.

Notas:

1. Conforme encontrado em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/607145-o-antropoceno-e-a-longa-batalha-pelo-amanha>

2. Disponível em <https://www.publico.pt/2020/09/22/ciencia/noticia/13-anos-terra-perdeu-quase-dois-milhoes-quilometros-quadrados-ecossistemas-intactos-1932316>

3. Al Gore, A Terra em equilíbrio. São Paulo: Gaia, 2008, p,230.

4. Ver “A economia da felicidade”, de Helena Norbert-Hodge, in Jackson et al (Org.), “A economia de gaia – viver bem dentro dos limites planetários”. Rio de Janeiro: Roça Nova Editora, 2010, p.209.

5. Bernard Perret, O é sustentável?, 2008, p.13.

CAETANO SCANNAVINO é empreendedor social, Membro da Coordenação do Observatório do Clima, além de coordenador da ONG Projeto & Alegria, com atuação na Amazônia.

MARCUS EDUARDO DE OLIVEIRA é economista e ativista ambiental. Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo – USP (2005). Autor de Economia Destrutiva (CRV, 2017) e Civilização em Desajuste com os Limites Planetários (CRV, 2018), entre outros.

Fonte: Agência Envolverde Capa: Toninho Tavares/Agência Brasil


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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